Flávio Amaral é formado em Jornalismo pela Facha (Faculdades Integradas Hélio Alonso) e pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte no IGEC.

Nos últimos anos, sua atuação profissional tem estado voltada para a produção de conteúdo esportivo. Foi diretor de Jornalismo no portal Jogada Ensaiada, iniciativa que prepara jornalistas para o mercado do esporte, e assessor de Comunicação da Aglae Desenvolvimento.

Atualmente é professor-tutor no EaD da Facha e compõe o BeesCats, time gay de futebol que representou o Brasil no Gay Games 2018 na França.

 

Para começar, você poderia nos contar o que o elevou a escolher o jornalismo esportivo como área de atuação? Como foi atuar no portal “Jogada Ensaiada” e em que consiste essa iniciativa?

Jogada Ensaiada
Fonte: Twitter do projeto Jogada Ensaiada

O futebol está presente na minha vida desde os meus 7 anos de idade, quando comecei a frequentar uma escolinha no Colégio Zaccaria, onde estudava, e essa paixão me acompanha desde então. Criado por mulheres, nunca tinha ido a estádio na infância, fui pela primeira vez aos 14 anos. Treinei em um clube de Teresópolis, onde morei por dois anos, em um núcleo do Botafogo e no futsal do América e, parando para me dedicar ao vestibular, percebia que precisava manter o contato com o esporte mesmo fora de campo. O amor pela escrita e pela cobertura esportiva me inclinou ao Jornalismo, então costumo dizer que foi o esporte que me trouxe ao jornalismo.

O capítulo mais feliz da minha graduação – e também do qual mais gosto de recordar – é o Jogada Ensaiada, projeto de capacitação de alunos de Comunicação Social para o trabalho em redação de esportes através de uma simulação de redação em ambiente virtual. Os alunos vivenciavam uma imersão na rotina do jornalista esportivo, que começava com um curso no qual aprendiam a técnica e debatiam questões éticas ligadas à carreira – a Oficina Jogada Ensaiada de Jornalismo Esportivo – e era completada pela participação no processo de produção da notícia. Eu e mais um parceiro fazíamos a gestão editorial, planejando coberturas e dando feedback periódico a cada aluno sobre sua participação; alunos de períodos avançados eram editores de núcleo e o Facebook era a nossa “intranet”, onde eram realizadas as reuniões de pauta e onde se dava a comunicação interna em geral.

Mais de 200 estudantes de 10 instituições de ensino do Rio de Janeiro passaram pelo “JE”, projeto no qual apliquei referências de gestão de pessoas e de conteúdo, dividindo os alunos em editorias a partir de um planejamento estratégico. Foi um enorme aprendizado, tanto em termos humanos – relacionamento profissional – como no que diz respeito a gestão de conteúdo jornalístico.

Entre 4 e 12 de agosto foi realizada a décima edição dos Gay Games. Como foi para você realizar a cobertura do evento? Quais experiências positivas e negativas você já viveu nessa e em outras coberturas esportivas?

Sim, esta última foi a décima edição do evento, considerado a Olimpíada LGBT+. Há alguns meses, venho gerando conteúdo sobre o BeesCats no modelo de jornalismo vivencial, atrelando a visão do atleta aos relatos jornalísticos sobre competições, eventos e ações de marketing de que participamos. Um exemplo é a coluna Orgulho em Campo, que assino semanalmente no site PopBola, da Rádio Globo.

Algumas semanas antes de nossa viagem a Paris, decidi estender essa geração de conteúdo à delegação brasileira como um todo, iniciando com a preparação para essa empreitada internacional. Fiz um guia da delegação, apresentando pequenos perfis dos atletas, produzi conteúdo diário desde os dias que antecederam o embarque e apresentei resultados e provas do dia seguinte em posts no Instagram e Facebook, além de mostrar a emoção de contar com a torcida dos amigos que ficaram no Brasil e da repercussão pós-participação.

Foi muito positivo principalmente o contato com os companheiros de delegação. Conheci histórias de pessoas que são vencedoras dentro e fora do esporte. Que superam diversos obstáculos sociais e materiais para representar seu estado, seu país em eventos nacionais e internacionais, que driblam preconceitos diariamente para fazer valer sua paixão pelo esporte e ainda conquistam resultados tão expressivos para o Brasil.

A imagem pode conter: 12 pessoas, incluindo Flávio Amaral, pessoas sorrindo, céu e atividades ao ar livre
Equipe BeesCats. Fonte: Facebook do entrevistado

De negativo nessa cobertura, é marcante a falta de visibilidade do esporte LGBT+ brasileiro. Muitos atletas infelizmente não conseguiram recursos para a viagem – até mesmo por isso é importante trazer essa visibilidade através de coberturas mesmo que partindo de ideias individuais, como no meu caso. Essas ações em conjunto à visibilidade na grande mídia podem ajudar a atrair mais investimento, para que possamos enviar cada vez mais atletas para os jogos e buscar resultados ainda melhores para nosso país.

Particularmente, eu também gostaria muito de conseguir acompanhar as provas dos companheiros de delegação. Minha vontade era me multiplicar e estar, além do futebol, nos demais locais de competição, para que eu pudesse fazer um relato mais detalhado, mais completo de cada resultado, cada conquista. O fato de o futebol ter sido disputado fora de Paris, mais afastado em relação aos locais de outros esportes, prejudicou um pouco a cobertura. Foi complicado conciliar jogos e deslocamentos com o acompanhamento das novidades da delegação no grupo e a produção de conteúdo, mas, dentro do que foi possível fazer, fiquei satisfeito. Foi uma experiência incrível também no sentido profissional.

Agora, nos fale um pouco sobre como é construir um time de futebol gay no Brasil? Como surgiu esse desejo, quais as motivações e qual a importâncias vocês enxergam nela?

A iniciativa partiu do nosso líder André Machado, jornalista nascido em São Paulo e que mora no Rio há alguns anos. Ele jogava futebol na capital paulista, mas, tendo poucos amigos gays no Rio, decidiu criar um encontro entre gays para jogar bola. Despretensiosamente, o evento foi reunindo cada vez mais pessoas, até que foi montado um time que foi campeão logo na estreia em competições, na Taça Hornet da Diversidade 2017, em São Paulo, e conquistou a prata nas duas edições da Champions LiGay – principal torneio do segmento, criado pela LiGay Nacional de Futebol – e na Taça Hornet da Diversidade, além dos Gay Games, mais recentemente. São cinco finais em cinco competições LGBT+ disputadas, um resultado muito expressivo para nós.

As motivações de criar o BeesCats foram reunir amigos gays que gostariam de retomar um contato com o esporte, unindo a isso a sociabilidade – com a chance de fazer novos amigos – e a diversão. Com o passar do tempo, pessoas curaram traumas de infância e adolescência que as afastaram do futebol por episódios de preconceito e homofobia, um dos principais ganhos desse projeto. Pessoas que jamais se conheceriam no mundo LGBT+ se tornaram grandes amigos graças ao time.

Hoje temos pessoas que estavam prestes a deixar o Riopor falta de convívio social e fizeram muitos amigos na equipe. Temos um jogador que foi goleiro do Madureira e do Botafogo até os 21 anos e abandonou o futebol profissional por sentir que, nesse ambiente, precisava esconder quem era de verdade. Temos atletas que sempre jogaram com heterossexuais, alguns dos quais já sofreram preconceito em campo. Todos se orgulham de fazer parte de uma iniciativa que vem quebrando paradigmas na cidade – recebemos em maio uma Moção de Louvor e Congratulações na Câmara Municipal do Rio de Janeiro por promover a inclusão e a diversidade no esporte na cidade.

Como vocês do BeesCats conheceram o Gay Games e o que foi necessário fazer para participar do torneio?

Os Gay Games realmente não contam com boa divulgação no Brasil – e percebemos que na França se dá da mesma forma. Soubemos através de um amigo do grupo que competiu no vôlei na edição de Cleveland, em 2014, e, então soubemos que uma delegação estava sendo organizada para reunir os atletas.

De todo modo, a busca por patrocínio, fundamental para que conseguíssemos participar, foi pelo esforço do André Machado, que foi a diversas reuniões buscar investimento, que, finalmente, veio com duas empresas do segmento: o hotel Chili Pepper e o aplicativo Hornet. Mesmo assim, todos os jogadores precisaram se planejar com muito cuidado para tornar esse sonho possível.

André cuidou também das nossas inscrições e, por ter experiência em viagens internacionais, ao contrário de muitos na equipe, nos assessorou nas informações que precisávamos quanto a documentação, o que levar e dicas para agilizar procedimentos.

Qual a relevância desse evento, a nível mundial, na promoção do debate e da representatividade LGBT+ no esporte?

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Fonte: Facebook LiGay Nacional de Futebol

Por se tratar de uma espécie de Olimpíada do segmento, os números impressionam. Foram mais de 10 mil atletas de 91 países diferentes em 36 modalidades esportivas e artísticas, então o impacto é indiscutível. O próprio fato de hoje ainda ser necessário um evento desse voltado apenas para o público LGBT+ mostra que o ser humano precisa avançar muito em termos de aceitação, compreensão, respeito às diferenças… em termos de humanidade, mesmo.

Em Paris, entramos em campo com camisas de diversos times da LiGay Nacional de Futebol por cima do uniforme exatamente para mostrar que não representamos um time apenas. Jogamos por 42 equipes LGBT+ que hoje tomam o Brasil em um movimento sem volta. Quando o BeesCats nasceu, o país tinha apenas 6 equipes do segmento. Hoje são 42, num processo que explodiu através das redes sociais. E pensando de forma ainda mais macro, representamos milhares de pessoas que buscam praticar seu esporte de forma livre e sendo respeitados. Isso envolve fatores psicológicos, emocionais, valores de fato. Está muito além do puramente técnico. Esporte é muito mais que isso. Esse panorama como um todo necessita ser trazido a debate.

 

 

 

Como foi representar o Brasil e viver a experiência dos Gay Games na França?

Como jogador e como jornalista, foi uma experiência incrível. Um sonho realizado, de fato. Não há adjetivos suficientes para descrever. Ao decidir seguir no esporte fora de campo, como jornalista, jamais imaginei poder representar o Brasil dentro de campo. Mas a oportunidade veio, logo num evento tão importante pela mensagem que deixa: de união, inclusão, representatividade, parceria entre os povos.

A interação com pessoas de todo o mundo foi, para mim, um dos grandes destaques dessa experiência. Aproveitando para desenferrujar um inglês que estava guardadinho há tanto tempo (risos), conheci culturas e modos de agir tão únicos, refletidos em pessoas de todo o planeta.

Em nossos contatos durante os jogos e as cerimônias e no Village, “point” do evento onde se reuniam atletas, voluntários e organizadores, posso dizer que saímos do Brasil, passamos pelo Chile, visitamos os três países da América do Norte, demos um giro pela Europa, cruzando o mundo até chegar à Tailândia, terra da simpática equipe finalista de vôlei que encontramos num café no dia de uma ação de marketing que fizemos no bairro gay de Paris, o Marais.

A experiência foi muito além do esporte: passou por se virar sozinho em um país com idioma totalmente diferente, onde você precisa buscar soluções para se comunicar – inclusive resolvendo “pepinos” em inglês, por exemplo (risos), desbravar o transporte público local através de uma série de mapas, que, felizmente, ajudam muito, e se acostumar a dez dias sem arroz e feijão, uma combinação da qual nunca imaginamos sentir tanta falta. É realmente uma experiência de vida e para guardar por toda a vida, que recomendo a qualquer pessoa.

Como era a relação entre as delegações e como era a relação do evento com o público?

Entre as delegações, reinava a amizade, a parceria, a cumplicidade. A competição só existia dentro de campo – e, ainda assim, o respeito era uma marca dos jogos. Não vimos qualquer lance mais violento durante as partidas. Fora de campo, os intervalos dos jogos eram marcados por confraternizações entre equipes, com atletas que falam outros idiomas ajudando na interação. Adversários nossos da primeira fase e das eliminatórias diziam que torceriam por nós na final, pediam para tirar fotos conosco e com a bandeira do Brasil, trocavam conosco lembrancinhas, como pins.

O verde e amarelo dos tênis da nossa delegação evocava a bandeira brasileira, fazendo com que fôssemos parados na rua com gritos de “Brasil! Brasil!” e, quando dizíamos que fomos competir no futebol, nos perguntavam sobre Neymar e o desempenho da Seleção Brasileira na última Copa do Mundo – afinal, estávamos no país campeão do último Mundial.

Os Gay Games estão em sua décima edição e possuem as dimensões de um megaevento. Em Paris/2018, por exemplo, foram 36 esportes e mais de 10 mil atletas inscritos. Isso posto, como é o reconhecimento do torneio perante outras instituições/organizações mundiais esportivas, como o COI ou a FIFA? Há algum tipo de apoio ou cooperação?

Para os Gay Games se consolidarem de fato como megaevento, acredito que a visibilidade midiática deveria ser impulsionada. Tanto na França como no Brasil, muitas pessoas – inclusive LGBT+ – não sabem da existência do evento – isto porque até mesmo no metrô de Paris havia divulgação da Cerimônia de Abertura, por exemplo.

Essas parcerias acontecem com federações específicas de cada esporte. Por exemplo, o torneio de futebol foi organizado por uma parceria entre a FFF (French Football Federation), a IGLFA (International Gay Football Association) e duas equipes inclusivas locais (Panamboyz United e FC Paris Arc-en-ciel). A FFT (French Tennis Federation) organizou o torneio de tênis e a competição de judô foi organizada por uma parceria entre a FJFAD (French Judo Federation and Associated Disciplines), a IAGLMA (International Association of Gay and Lesbian Martial Artists) e outras instituições. Isso também ocorreu em outros esportes, mas não todos. Em relação a COI ou FIFA, nenhuma menção ou comentário.

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Imagem de divulgação. Fonte: Liberátion

Qual é a visibilidade dada pela mídia aos Gay Games? Você a considera suficiente? Conte-nos o que você sobre isso.

Como jornalista, avalio a atenção dada pela grande mídia aos Gay Games como muito aquém do esperado para um megaevento. Aprendi a trabalhar com grandes coberturas com matérias pré, pós e um acompanhamento em diferentes nuances durante o evento, mas sabemos que isso depende também de recursos técnicos e tecnológicos e de um enquadramento no processo produtivo das redações.

No entanto, um evento para o qual nos preparamos desde novembro de 2017 só passou a pautar a mídia de forma mais efetiva na semana de nossa viagem. As matérias de fato transmitem o propósito de nosso time: inclusão, respeito às diferenças e representatividade, uma forma de militância mesmo. Posso estar “puxando a brasa para a nossa sardinha”, mas acredito que a primeira participação brasileira com uma delegação de fato e com o maior número de atletas na história dos jogos merece um acompanhamento mais próximo dos veículos.

Por que o debate do esporte como elemento de inclusão social acaba ficando restrito a espaços e eventos segmentados e muitas vezes não consegue inserção naqueles de maior alcance?

Voltamos à questão da mentalidade do ser humano, que, infelizmente, impede que debates como este estejam presentes com a devida frequência na agenda dos espaços não-segmentados. Por isso, é importante aproveitar espaços de reflexão e construção do conhecimento, como as universidades, para trazer esses assuntos à tona. Essa abordagem, no entanto, não deve ser limitada ao meio acadêmico, devendo atingir a sociedade como um todo. É a única forma de, em um trabalho de formiguinha, como ressaltamos ser feito o trabalho do nosso time, transformarmos essa mentalidade do senso comum de que “futebol é para macho”. Não, futebol – e qualquer outro esporte – é para todos.

Qual a importância de ídolos do esporte assumidamente LGBT+? Como figuras assim poderiam contribuir para a promoção de visibilidade e combate aos preconceitos?

Ídolos e figuras de representatividade midiática possuem influência junto à opinião pública. Infelizmente ou não, eles ajudam a moldar a forma de pensar, fazem parte da formação do cidadão, apesar de poucas vezes utilizarem essa visibilidade para o bem, ou mesmo não exemplificarem seus discursos com atos tão positivos assim. Não precisa nem ser um ídolo, por exemplo. Um jogador profissional de futebol sair do armário de forma “oficial” certamente já seria um passo além para essa transformação. Mas sabemos que isso não acontece porque, em um mundo como o de hoje, o atleta infelizmente seria forçado a encerrar sua carreira e poderia até correr risco de vida – vide o ocorrido com Richarlyson, que foi recebido no Guarani (SP) com bombas no entorno do clube durante sua apresentação. Enquanto ídolos do esporte brasileiro não se assumem, nós, anônimos, tocamos essa missão de tornar o futebol um espaço mais leve, harmônico, inclusivo e respeitoso.

Por fim, qual você acredita que é o legado dos Gay Games para a cidade-sede?

Um evento com essa proporção nunca passa em branco para uma cidade, muito menos para uma metrópole internacional, como Paris. Ao receber mais de 8 mil visitantes de outras regiões da França e dos quatro cantos do mundo, os Gay Games mostram que a Cidade Luz está no caminho certo para os Jogos Olímpicos de 2024, dos quais também será sede.

Prova da organização e do planejamento parisiense é o fato de muitas obras já terem sido iniciadas com vistas ao megaevento que será realizado daqui a seis anos. É um grande exemplo de visão a médio prazo com uma cidade que tem as mesmas necessidades de qualquer outra – ainda potencializadas, por se tratar de uma metrópole altamente turística.

Acredito que o legado também é extenso no que diz respeito à diversidade. E não me refiro apenas à sexual ou de gênero. Além de ter a multiculturalidade como marca registrada – afinal, em um rápido passeio pela região central, vemos muitos imigrantes, principalmente africanos e árabes –, Paris recebeu o mundo durante dez dias: pessoas de diferentes culturas, religiões, formas de pensar. E isso mexe com a população local, não apenas com quem participou dos jogos. Foi certamente um momento marcante para a capital francesa assim como foi para todos nós.

Entrevista com Flávio Amaral – Gay Games e visibilidade LGBT+ no esporte