Por Roberto Elias | Agosto/2018

Resultado de imagem para 5 ossadas foram encontradas durante as escavações para a expansão do veículo leve sobre trilhos (VLT)
Fonte: EBC

No último dia 23 de agosto, 15 ossadas foram encontradas durante as escavações para a expansão do veículo leve sobre trilhos (VLT). O trecho em questão compõe a Linha 3 do VLT e fará a ligação da Central do Brasil com a Avenida Rio Branco através do eixo ensejado pelas ruas Visconde de Inhaúma e Marechal Floriano. Segundo a matéria do jornal O Globo de 24 de agosto, os restos mortais estavam dentro da área que um dia fora a igreja de São Joaquim, construída em 1758 e demolida em 1904 durante as reformas urbanas realizadas pelo prefeito Francisco Pereira Passos.

Não é a primeira vez que a busca pela modernização da cidade nos leva ao encontro de rastros do passado. Há sete anos durante as escavações e demolições na região da Praça Mauá, que davam início às obras do projeto Porto Maravilha, o cais do Valongo foi redescoberto. Tratava-se do ponto nevrálgico por onde, durante duas décadas, escravos africanos chegavam à cidade. É bem verdade que a praia do Valongo fora um ponto de desembarque de escravos muito antes da construção do cais em 1811, mas o aterramento e o calçamento do local se deram há exatos 200 anos de sua redescoberta. Em 1843 o local fora reformado para receber a princesa Tereza Cristina, que viria a se casar com D. Pedro II; a partir daí o local passou a ser denominado cais da Imperatriz. Um século após sua construção, em 1911, o local fora aterrado no bojo das reformas iniciadas por Pereira Passos em 1903, mas já na gestão de Bento Ribeiro (1910-1914). Em julho de 2017, o cais do Valongo fora reconhecido pela UNESCO[1] como Patrimônio Histórico da Humanidade.

O Cais do Valongo foi construído em 1811 pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro
Cais do Valongo. Fonte: IPHAN

A Reforma Passos foi o mais emblemático conjunto de transformações pelos quais a cidade passou no começo do século XX, reconfigurando toda a região central, notadamente a área contígua ao porto. Os defeitos da capital eram vistos como perturbadores ao desenvolvimento nacional, urgia que algo fosse realizado a fim de lhe dar vida nova. O Brasil, como principal produtor de café do mundo, não podia ter uma capital insalubre que mais lembrava uma vila com ares coloniais. Fazia-se necessário intervir no tecido urbano, a fim de criar uma capital que expressasse os valores cosmopolitas modernos das elites nacionais. Os jornais da época cobriam tais acontecimentos em tom eufórico, como se fosse a vitória do progresso e da modernidade sobre o atraso e a pestilência, visto que as condições higiênicas da cidade eram precárias e muitas doenças (como a febre amarela, o tifo e disenteria) se espraiavam com facilidade. Em 1853 e 1876, respectivamente, ocorreram os dois piores surtos de febre amarela no Rio, e a culpa de tais acontecimentos invariavelmente recaía sobre as chamadas “habitações coletivas” de famílias pobres.

Praticamente um século depois, em 2009, Eduardo Paes assumiu a prefeitura do Rio e iniciou outra profunda agenda de intervenções urbanas. Assim como na Reforma Passos, a região portuária seria radicalmente modificada com a demolição do elevado da Perimetral, que provocou uma repaginação completa da Praça Mauá. A Zona Oeste também foi fortemente impactada pelas reformas de Paes, notadamente os bairros de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca. Vias expressas foram abertas, como a Transolímpica e a Transcarioca; a Avenida das Américas foi reformada para receber os corredores bus rapid transit (BRT); o Autódromo de Jacarepaguá foi demolido para dar lugar ao Parque Olímpico; e o metrô foi estendido da Zona Sul à Barra passando pelos bairros do Leblon e São Conrado.

Tais obras, que tinham como objetivo a adequação da cidade aos Jogos Olímpicos de 2016, trouxeram à tona o espectro de Francisco Pereira Passos, prefeito que governou a cidade de 1902 a 1906 e deu inicio a um conjunto de modificações na malha urbana que tiveram continuidade até a gestão de Carlos Sampaio (1920-1922). Em 2012 o então prefeito Eduardo Paes, em meio às obras que visavam adequar a cidade à agenda do COI[2], cogitou fantasiar-se de Pereira Passos para inaugurar a reforma do Jardim do Valongo, mas foi desaconselhado por seus assessores, conforme reportagem do jornal O Globo de nove de julho de 2012. Sua equipe entendeu que cena podia ser mal interpretada, afinal era ano eleitoral e Paes candidato a reeleição. Nessa mesma reportagem o prefeito à época disse: “Quero ser lembrado como um urbanista à la Pereira Passos com um coração à la Pedro Ernesto”.

Mas as similitudes não param por aí, as demolições e remoções levadas a cabo por ambos foram muito utilizadas para retirar de certos locais uma população indesejável ao projeto de cidade que se concretizava. Se Pereira Passos foi implacável com os cortiços da Cidade Velha[3] e seus habitantes, Paes fizera o mesmo com algumas favelas. Os casos mais emblemáticos foram a Vila Autódromo (comunidade localizada no entroncamento das avenidas Abelardo Bueno e dos Bandeirantes, em Jacarepaguá) e da Favela do Metrô (casario que margeava a linha do trem entre a comunidade da Mangueira e a Avenida Radial Oeste, em frente à UERJ). Isso sem se contar as inúmeras desapropriações na região de Madureira e do Campinho quando da construção dos corredores BRT Transcarioca e Transoeste.

Entendemos que as circunstâncias que os moveram foram distintas, Pereira Passos buscava reformar uma cidade que fora elevada de vila colonial a capital do Império do dia pra noite e tivera um crescimento acelerado e desordenado. Eduardo Paes intervém no tecido urbano tendo em vista a adequação da cidade à realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Mas independente disso salientamos um passado que insiste em se fazer presente, vestígios longevos que emergem da própria busca pela modernização, rastros de um Rio que corre, mas parece desaguar em si mesmo.

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Ator fantasiado de Pereira Passos posa ao lado de Eduardo Paes. Fonte: O Globo

Ao assumir a prefeitura Eduardo Paes criou a Secretaria de Ordem Pública (SEOP)[4], um órgão que conforme o próprio site oficial descreve, “é responsável por formular e implementar políticas públicas que garantam a manutenção da ordem urbana e a integração da Prefeitura com todas as forças de segurança pública”. Desde então o prefeito recém eleito prometeu combater posturas ilegais que estavam tornando-se lugar comum no cotidiano da cidade, tais como: estacionamento em local irregular; camelôs sem licença; cadeiras e mesas de bar nas calçadas; construções irregulares; jogar guimbas de cigarro no passeio; urinar nas ruas e outros tipos de ilicitudes à ordem urbana.

Em 10 de julho de 2009, ocorrera a primeira grande operação da SEOP contra os chamados “puxadinhos” em quiosques no entorno da Lagoa. Em tom comedido, o jornal O Globo frisava a infração da qual cada quiosque era acusado pela prefeitura, e, em seguida, o argumento do proprietário. Quase todos tiveram seus acréscimos (ou “puxadinhos”) demolidos. Para ratificar a ação da prefeitura, ao final da reportagem, o jornal enfatiza que além desta infração também foram encontradas irregularidades no armazenamento de alimentos e a precariedade de algumas instalações elétricas.

Verão, dia 24 de dezembro de 2009, véspera de Natal e lá estavam os agentes da SEOP realizando uma operação contra estacionamentos irregulares na orla da Barra da Tijuca. Centenas de carros foram rebocados, o que despertou a ira de muitos banhistas. A Guarda Municipal fora acionada para conter os mais exaltados. Além disso, blitzes foram realizadas nos acessos da praia à Linha Amarela para pegar veículos com documentação irregular. Outra dezena de carros foi rebocada e essas blitzes causaram longos engarrafamentos. Nota-se que tal operação focou banhistas que utilizam a Linha Amarela para ir à praia.

Em junho de 2010, foi a vez da Tijuca ser palco de uma larga operação da SEOP que visava coibir vendedores ambulantes em sinais de trânsito. Foram escolhidos estrategicamente cruzamentos de grande movimentação e nesta operação 21 ambulantes foram levados para averiguação da 18º DP na Praça da Bandeira. Detectou-se que todos tinham passagem pela polícia por assaltos à mão armada, furtos, trafico de drogas, desacato, receptação de mercadorias roubadas e até homicídios. A reportagem a todo momento relaciona a presença de tais indivíduos a um risco aos motoristas que param nesses sinais.

No dia seguinte à eliminação da seleção brasileira da Copa de 2010, a SEOP fez uma operação nas praias da Zona Sul, sobretudo Ipanema e Leblon, coibindo a prática do “altinho” e do frescobol na beira da água. Segundo o secretário municipal de ordem pública, à época, Alex Costa, tais praticas representavam um risco aos banhistas, sobretudo às crianças, que podiam se machucar com eventuais boladas, além de prejudicar a circulação no local.  Segundo ele “o Brasil pode ter sido eliminado da Copa, mas o Rio está ganhando com a conscientização da população.”

No dia 14 de novembro de 2010, O Globo publica uma matéria de página inteira com o prefeito Eduardo Paes destacando as ações da SEOP e da Guarda Municipal. Com o título “Paes promete acabar com o ‘E daí?’ do ilegal”. No texto o jornal relata que o prefeito chega todos os dias às 5hs da manhã ao prédio da prefeitura e munido de um tablet começa a se inteirar dos assuntos do dia. Envia e-mails cobrando prazos dos secretários e demais membros de sua equipe. A matéria destaca que o prefeito acompanha um perfil no Twitter criado pelo O Globo para que leitores publiquem reclamações sobre problemas da cidade, denotando uma fina sintonia entre a gestão do prefeito e a atuação do periódico.

Destacamos algumas matérias do início da gestão Eduardo Paes quando o prefeito implementa, com forte cobertura midiática, o chamado “choque de ordem” na cidade. Outras tantas sucedem-se a essas e os alvos não variavam: camelôs, flanelinhas, construções irregulares, foliões que urinam em canteiros, moradores de rua e etc. Àqueles que não conhecem a história da cidade, tais medidas podem parecer um tanto vanguardistas. Mas retomando a história da cidade, a partir de 1903 Pereira Passos iniciou uma “guerra” contra “velhas usanças” tidas como não condizentes ao habitat de um povo civilizado. Como o próprio prefeito colocou à época:

‘Comecei por impedir a venda pelas ruas de vísceras de reses, expostas em tabuleiros, cercados pelo voo contínuo de insetos, o que constituía espetáculo repugnante. Aboli, igualmente, a prática rústica de ordenharem vacas leiteiras na via pública, que iam cobrindo com seus dejetos, cenas estas que, ninguém, certamente achará dignas de uma cidade civilizada.

Mandei, também, desde logo, proceder a apanha e a extinção de milhares de cães, que vagavam pela cidade, dando-lhe o aspecto repugnante de certas cidades do Oriente, e isso com grave prejuízo da segurança e da moral públicas.

Tenho procurado pôr termo à praga dos vendedores ambulantes de bilhetes de loteria, que, por toda a parte, perseguiam a população, incomodando-a com infernal grita e dando à cidade o aspecto de uma tavolagem. Muito me preocupei com a extinção da mendicidade pública, o que mais ou menos tenho conseguido, de modo humano e equitativo, punindo os falsos mendigos e eximindo os verdadeiros à contingência de exporem pelas ruas sua infelicidade (…).’ (BENCHIMOL, 1992, p.277)

 

Pereira Passos iniciou uma batalha contra os quiosques, os quais considerava anti-higiênicos e sem inspiração artística, medida que rendeu grande repercussão nos jornais da época. Os quiosques eram pontos de aglomeração nas calçadas das ruas que reuniam, em sua maioria, trabalhadores de baixa renda que ali consumiam café, vinho, broas, sardinhas, pernil, queijo e outras miudezas. Era um tipo de comercio pobre que não rendia grandes retornos financeiros aos arrendatários que pagavam uma quantia mensal, espécie de aluguel, a uma companhia proprietária dos quiosques.

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Quiosque do Rio Antigo. Fonte: MultiRio

Com relação aos camelôs coibidos pela SEOP de Eduardo Paes, Pereira Passos fez algo semelhante à época com vendedores ambulantes de miúdos de animais, de bilhetes de loteria e com os “cargueiros”. Os cargueiros nada mais eram do que carroças puxadas por animais e conduzidas por um homem que traziam frutas, legumes e verduras, geralmente plantadas e colhidas por eles mesmos. Isso afetou não só o abastecimento de alimentos de um contingente de indivíduos despossuídos como também decretou o fim de várias pequenas propriedades rurais nos subúrbios. Pereira Passos alegava que os cargueiros, além de lentos e antiestéticos, também representavam um perigo ao trânsito na cidade pelo risco de acidentes.

Sobre operações da SEOP contra construções irregulares, Pereira Passos regulamentou leis que versavam sobre o aumento de benfeitorias e anexações de imóveis. Além de determinar um padrão arquitetônico e de pintura das fachadas dos imóveis. O prefeito responsável pelo “Bota Abaixo” no começo do século XX ordenou até o carnaval, proibindo o “entrudo” (um festejo popular), e, em seu lugar, impõe-se a “batalha das flores”. O entrudo era um tipo de brincadeira realizada durante o carnaval, onde as pessoas atiravam umas nas outras frutas estragadas, baldes d’água, luvas cheias de farinha, confetes dentre outras traquinagens. Os infratores que fossem pegos pelos agentes da prefeitura, em meio a essa prática, pagariam multa ou ficariam presos de dois a oito dias. Com relação ao carnaval, Eduardo Paes modificou o trajeto dos blocos maiores, limitou a quantidade de blocos pela cidade e passou a multar aqueles que urinavam em locais públicos.

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Ilustração de Debret (1768-1848) retrata cena do entrudo. Fonte: Brasil Escola

As cidades renovadas têm seus deserdados; tanto no começo do século XX como no começo do XXI, grupos e práticas não condizentes com a nova urbe que se almeja são literalmente alijados pelo poder público. Ou seja, não foi invenção de Eduardo Paes essa maneira de lidar com a população de baixa renda mediante grandes projetos de reforma urbana. A Cidade Olímpica que emerge após as últimas reformas visa atrair investimentos e tem como grande mote os megaeventos. Para tanto faz-se necessário, além de um vasto programa de obras, um controle político da população, sobretudo da parcela menos favorecida economicamente. Antes o alvo eram os cortiços, agora são as favelas. Não se constrói uma cidade apenas no concreto, mas também no discurso que articula imaginários.

As obras da Linha 3 do VLT ainda estão acontecendo no centro da cidade, e, eventualmente, novos parques arqueológicos podem ser desenterrados. Memória, rastros, vestígios e renascença, é o passado ancorado ao presente. O Rio é o antigo do que vai adiante, nossas tentativas de modernização historicamente têm um caráter excludente não só no sentido de ocultar (ou coibir) certos personagens e usanças indesejáveis, mas sobretudo o próprio passado. Ocorre que, volta e meia, novas “ossadas” são encontradas.

Augusto Malta Revival. Fonte: Fotógrafo Marcelo Cavalcanti.

 

Referências

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX. In: Coleção Biblioteca Carioca, v. 11, Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.

[1] Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

[2] Comitê Olímpico Internacional.

[3] Denominação que se utilizava no começo do século XX para se referir à região do Centro da cidade contígua à zona portuária.

[4] http://www.rio.rj.gov.br/web/seop acesso em 25/08/2018.

Rio, o antigo do que vai adiante