Por Alessandra Porto | Agosto/2018

Branding, Brand Equity e Brand Awareness são expressões que fazem parte do vocabulário da gestão de marcas. A marca é um ativo intangível das organizações. Desse modo, tais entidades investem em pesquisa de marketing, visando levantar informações que sirvam como bússola para implantação de estratégias e táticas que sejam capazes de fazer com que a marca seja lembrada de modo positivo – e até mesmo amada. Mas existem casos onde a paixão que a marca desperta acontece à revelia dos conceitos e práticas mais inovadores de branding. Nesse contexto, cabe mencionar o caso de um produto cuja marca acabou se tornando quase que espontaneamente a cara do Rio de Janeiro: o Biscoito Globo. A famosa rosquinha de polvilho é uma presença marcante nas areias das praias do Rio de Janeiro junto aos diversos banhistas, e em outros locais espalhados pela cidade. Na praia, o biscoito costuma ser degustado juntamente com mate gelado. E a rosquinha está presente até mesmo nos enormes engarrafamentos que assolam a capital fluminense, já que ambulantes surgem vendendo o produto para matar a fome das pessoas que estão no trânsito.

Biscoito Globo comercializado nos engarrafamentos da cidade. Fonte: Jornal Extra.

Criadas por Milton Ponce, as rosquinhas se tornaram populares na cidade do Rio de Janeiro na década de 50. Na ocasião, o então presidente Getúlio Vargas investiu na realização do 36º Congresso Eucarístico Internacional, um dos grandes eventos do Rio de Janeiro dos “anos dourados”, segundo reportagem extraída do acervo do Jornal O Globo. Realizado em julho de 1955 na cidade do Rio de Janeiro, na época o megaevento foi considerado uma injeção de ânimo para o turismo no país. É interessante observar que megaeventos de caráter religioso acabam envolvendo um tipo muito especial de articulação entre os setores públicos e privados da área de turismo, transporte e alimentação (Siqueira e Siqueira, 2016).

Sendo assim, Milton Ponce e seu irmão, João Ponce, resolveram aproveitar a oportunidade de negócios gerada pelo 36º Congresso Eucarístico Internacional, e saíram de São Paulo (cidade onde moravam) para comercializar os biscoitos na capital carioca. Os irmãos Ponce trouxeram de São Paulo um total de 2.500 saquinhos de biscoito para vender durante os seis dias de evento através de ambulantes (uma das principais formas de comercialização do produto até os dias atuais). Empolgados com o grande volume de vendas do produto durante a realização do megaevento religioso, os irmãos Ponce anteviram que o Rio de Janeiro seria o mercado ideal para os biscoitos de polvilho. A partir de então, a rosquinha (que curiosamente nasceu em solo paulista) começou a ser produzida pelos irmãos Ponce no município do Rio de Janeiro.

Cabe registrar que os vendedores de mate de barril e de biscoito de polvilho foram considerados patrimônio cultural e imaterial da cidade do Rio de Janeiro via decreto no 35179, de 2 de março de 2012, do então prefeito Eduardo Paes.

Fonte: Site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Todavia, mesmo após completar 63 anos desde que desembarcou na capital carioca, o Biscoito Globo preserva as suas principais características originais – especialmente os sabores e cores das embalagens. De modo geral, a variedade é um elemento presente nas estratégias implantadas na gestão de produtos na atualidade. Mas o biscoito continua sendo oferecido somente nos sabores doce e salgado. Quanto à embalagem, permanece da mesma forma: saquinhos de papel na cor verde e vermelha (para sinalizar os sabores salgado e doce, de modo respectivo).  A escolha pelas cores diferentes foi adotada quando o produto chegou ao Rio de Janeiro na década de 50, para facilitar os ambulantes na hora de distinguir o biscoito doce do salgado (inclusive porque muitos eram analfabetos).

Mais recentemente, o produto começou a ser disponibilizado também em embalagens de plástico, visando se adequar aos moldes do comércio varejista em geral, como padarias, supermercados e até mesmo bancas de jornais. É importante destacar que o desenho do bonequinho estampado na embalagem do biscoito desde 1963 é o mesmo utilizado como personagem na seção de crítica de cinema do Jornal O Globo, chamada de “O bonequinho viu”. Segundo Manier (2017), foram inseridas três torres para compor a gravura da embalagem: Eiffel (França), Pisa (Itália) e a de Belém (Portugal). Porém, um problema surgiu enquanto o desenho da embalagem era desenvolvido: não existia uma torre carioca. Como era fundamental que o Rio de Janeiro também estivesse representado, a solução encontrada foi rápida: inserir o desenho do Pão de Açúcar.

Em suma: o Biscoito Globo se tornou um ícone da cidade do Rio de Janeiro, compondo o seu farto imaginário, oriundo das variações perceptíveis e sensíveis que uma experiência concreta inscreve na nossa prática cotidiana (LEGROS et al, 2004).

Canga de praia exibindo a identidade visual do biscoito. Fonte: Imagem extraída da internet.

Objetos com a marca do biscoito viraram um souvenir da capital carioca. Mesmo assim, o branding e demais preocupações com os diversos usos da marca (incluindo o seu registro junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI), também não faz parte da gestão da empresa que fabrica a rosquinha. E mesmo com a comercialização dos mais diversos objetos por terceiros exibindo a marca Biscoito Globo, os seus proprietários não a registraram – e nem cobram pela sua utilização. Partindo da perspectiva em questão, a Panificação Mandarino (razão social da empresa), cuja fábrica está localizada na Rua do Senado, no centro da cidade do Rio de Janeiro, usufrui da marca da sua rosquinha de polvilho estampada em objetos e souvenirs pela capital carioca.

No século XXI, a prática do branding vem ditando as regras para que marcas permaneçam vivas no coração e na mente dos seus consumidores. Mas o caso da rosquinha de polvilho oferece pistas sobre as subjetividades abarcadas pela comunicação e pelo consumo, e que consequentemente podem suscitar paixões e demais emoções nos habitantes de uma cidade. Desse modo, tais elementos podem fazer com que marcas evidenciem a alma de uma cidade como o Rio de Janeiro – mesmo agindo de modo alheio ao sofisticado mundo das técnicas de marketing e do branding, como o Biscoito Globo.

Referências:

ACERVO O GLOBO. Em 1955, 36º Congresso Eucarístico fez do Rio a capital mundial do catolicismo. Acesso em: 20 ago. 2018.

Decreto No  35179 de 2 de março de 2012 –  Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Acesso em: 20 ago.2018.

GUIA BÁSICO DE MARCAS – Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Acesso em: 20 ago.2018.

LEGROS, Patrick et al. Sociologia do imaginário. Tradução Eduardo Portanova Barros. Porto Alegre: Sulina, 2007.

MANIER, Ana Beatriz. Ó, o Globo: a história de um biscoito. Rio de Janeiro: Valentina, 2017.

SIQUEIRA, Denise Costa de Oliveira; SIQUEIRA, Euler David de. Efervescência, Emoção e Produção de Sentidos na Jornada Mundial da Juventude. In: FREITAS, Ricardo F.; LINS, Flávio; SANTOS, Maria Helena Carmo dos (Orgs.). Megaeventos, comunicação e cidade. Curitiba: CRV, 2016.

 

*Esse texto foi inspirado no artigo apresentado pela autora no Intercom 2017.

Na contramão das estratégias de Branding: o “sessentão” Biscoito Globo e o imaginário carioca