Thaís Nazaria | Julho 2022
“Se a polícia é o braço armado do Estado opressor, é também um dos lados que cai com essa guerra”.
(Um pequeno manual antirracista, Djamila Ribeiro)
A cantora norte-americana, Beyoncé Giselle Knowles-Carter faz, no ano de 2016, o lançamento de seu álbum visual Lemonade, que aborda questões raciais importantes e até mesmo pessoais para a artista. Para entender esta obra audiovisual, precisamos entender seus onze estágios de luto apresentados ao longo das músicas, que se baseiam no modelo Kubler-Ross, que ensina a como enfrentar e solucionar a dor do luto.
Beyoncé escolhe como representação da sua ancestralidade uma fazenda de escravos próxima ao Fort Macomb, criando um contexto de que as marcas da escravidão perpetuam-se até os dias atuais. O início do primeiro capítulo, denominado “Intuição”, mostra a cantora andando pela fazenda com um moletom preto e capuz, fazendo a primeira menção à Trayvon Martin, vítima de violência policial e um dos símbolos fúnebres do movimento Black Lives Matter. Durante todo o álbum, iremos notar que Beyoncé decide tocar em uma dolorosa ferida expondo a violência das autoridades que assola pessoas pretas até os dias atuais.
Podemos afirmar que Beyoncé usa a Cultura Popular baseando-se nas novas sensibilidades como forma de expressão, pois há presença da arte política com detalhes estéticos que ela aborda fazendo referências à grandes potências, como, por exemplo, à ativista Rosa Parks. Isso mostra o quanto ela se aproxima de sua decolonialidade, e deixa de lado todas as críticas acerca da mídia que tentava a todo custo apagar sua história como mulher negra. De acordo com o artigo do professor Miguel Chaia, ao usar seu poder como artista consagrada na cultura pop para abordar questões que afetam o coletivo, Beyoncé se coloca como “artista ativista”, que, em sua definição:
Situa-se no interior de uma relação social, isto é, engendra uma esfera relacional fundada no desejo de luta, na responsabilidade ou na vocação social que reconhece a existência de conflitos a serem enfrentados de imediato. Portanto, torna-se fundamental no artivismo o reconhecimento do outro e também a crítica das construções da contemporaneidade. Neste forte envolvimento social, tem-se, assim, reduzida a autonomia da arte e, em contrapartida, amplia-se a relação entre ética e estética (CHAIA, 2007, p. 2).
Existem, além das várias marcas da escravidão, várias formas de violência às pessoas negras – e essas formas de violência são explicitadas ao longo de todo Lemonade. No sexto capítulo, intitulado “Responsabilidade”, é manifestada a complexidade dos homens negros, que geralmente são as maiores vítimas da violência policial desde a escravidão, justamente por serem vistos como agressivos e perigosos para a sociedade. Ao trazer esse artivismo em sua produção, Beyoncé explora esse tema de forma ampla em cada vestimenta, cena etc., incorporando um problema histórico-social e político na arte da cultura pop de uma forma tão discreta que faz a sociedade refletir e ser um pouco mais consciente da história por trás de toda a luta do movimento negro, tornando Lemonade não só um ativismo artístico, mas também um ativismo cultural.
Em mais de uma de suas referências, Beyoncé apresenta três mães que participam do movimento Black Lives Matter, segurando as fotos de seus filhos, todos assassinados por agentes policiais sem possuírem antecedentes criminais, apenas por serem negros e representarem para o sistema opressor um perigo utópico iminente; apesar de suas dores inexplicáveis essas três mulheres se reúnem para marchar com o maior movimento negro da história, que denuncia a violência policial e o genocídio negro que ocorre com uma naturalidade absurda. Esse genocídio negro que é uma forma sistêmica de manter perpetuada a destruição de famílias negras, outro tema abordado no álbum. Ela encerra o capítulo nove mostrando uma mesa de jantar vazia que significa as vidas perdidas tão brutalmente para o racismo violento e desolador. A liberdade é algo sonhado não só por Beyoncé, mas por toda a comunidade negra, assim como podemos ver no clipe Freedom, e é louvável que, assim como no clipe, um dia possamos estar livres de um sistema que mata cada um dos nossos todos os dias.
No livro Pequeno Manual Antirracista, Djamila Ribeiro aborda a violência policial no Brasil, e é salientado que a população negra, além de ser a maior parte da população, também é a que mais sofre, “Segundo os dados da Anistia Internacional, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil” (RIBEIRO, 2019, p. 32). Ou seja, não é um caso isolado e a omissão do Estado em não punir judicialmente os agentes que cometem esses assassinatos mostra a naturalização do extermínio de corpos pretos e do racismo estrutural sistêmico, que sempre prendeu e assassinou pessoas negras desde a escravidão. Ao analisar a produção audiovisual de Beyoncé, vemos que a situação não é muito diferente da contada por Djamila, vivida aqui no Brasil. Como podemos ver no artigo de Djamila, o genocídio negro e a impunidade tem sido frequentes:
Nos Estados Unidos, após a absolvição do policial George Zimmerman, que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin, surgiu o importante movimento Black Lives Matter. Em 2014, o grupo ficou conhecido nacionalmente depois das manifestações contra os assassinatos dos jovens Michael Brown, em Ferguson, e Eric Garner, em Nova York. Desde então, o movimento vem fazendo um trabalho de denúncia da violência policial, questionando políticos e incitando o debate público (RIBEIRO, 2019, p. 35).
Assim como Djamila, que relembra vítimas que originaram o movimento inicialmente americano, Beyoncé os retrata em seu álbum. Dentre tantas referências, é impossível deixar o seu clipe mais polêmico de toda a produção, fora desta análise. No auge do seu artivismo, Beyoncé assume uma postura totalmente política em Formation, tocando nas feridas há muito persistentes na história de uma forma nunca vista antes pela mesma. Em meio a tantos posicionamentos já feitos; ela escolhe propositalmente a cidade de New Orleans, estado na região sul dos Estados Unidos, berço da escravidão e da segregação racial. Ao fundo, ouvimos uma frase dita por Messy Mia, representando justamente esse genocídio negro que é denunciado a todo momento; vemos um culto de uma igreja, fazendo uma sucinta menção ao ativista negro, pastor Martin Luther King, que foi essencial para a garantia dos Direitos Civis, muito referenciado por Beyoncé como forma de busca ao passado para entender o presente; e vemos também mais uma representação dolorosa da segregação racial, nas piscinas vazias que aparecem fazendo alusão à Dorothy Dandrige.
Como relatado anteriormente, em sua alegação acerca da violência mais uma vez toca em feridas sociais, com a cena de um menino negro dançando de capuz para vários policiais inicialmente em posição de ataque, representando uma triste realidade: mais uma vez o assassinato de Trayvon Martin é exposto no clipe, deixando claro que ele é escolhido como símbolo em todo Lemonade, aparecendo de formas discretas desde Pray You Catch Me, faixa um do álbum. No muro, há um pedido de toda a comunidade negra, que implora: “stop shooting us!”. O clipe finaliza com Beyoncé afundando junto com o carro de polícia, dando a clara mensagem que a violência policial e o racismo afundam toda uma sociedade, até mesmo a polícia. Beyoncé em nenhum momento se coloca como anti-polícia, porém acredita numa reforma desse poder que é perpetuado como os capitães do mato que capturavam os negros na época da escravidão, mas que também eram vítimas do sistema escravista; o sistema penal , tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil, possui uma seletividade com grupos indesejados e os marginaliza socialmente: os suspeitos de crime têm até hoje características de pessoas negras, um reflexo desse sistema estrutural, que permanece tratando-as como escravas. Apesar de existirem Direitos Civis americanos e a Constituição Brasileira, pessoas negras ainda vivem sem o direito de ir e vir, à igualdade e à segurança, vivendo sob as mesmas leis da época da escravidão. É preciso mudar esse sistema, ou o genocídio negro exercido até os dias atuais será cada vez mais comum.
Notas:
- São os cinco estágios do luto, determinados pela psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross. Disponível em: https://vitallogy.com/feed/A+vida+e+o+legado+de+Elisabeth+K%C3%83%C2%BCbler-Ross/1494 Acesso em 29 de novembro de 2021.
- Forte construído no ano de 1822. Mais informações disponíveis em: https://neworleanshistorical.org/items/show/117 Acesso em 29 de novembro de 2021
- Movimento negro que denuncia a violência policial, com surgimento no ano de 2012. Mais informações disponíveis em https://www.ufes.br/conteudo/estudo-aponta-black-lives-matter-internacionalizou-debate-da-violencia-contra-negros Acesso em 29 de novembro de 2021.
- Rosa Parks foi uma ativista política, do movimento dos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos. Disponível em: https://www.ebiografia.com/rosa_parks/ Acesso em 29 de novembro de 2021.
- Primeiramente, aparece a mãe de Trayvon, Sybrina Fulton; Segundamente, aparece a mãe de Eric Garner, Gwen Carr; Logo depois, indignada e abalada aparece a mãe de Michael Brown, Lesley McSpadden.
- Youtuber e rapper, que foi morto após sair do chá de bebê de sua amiga em 2010. Disponível em https://i-d.vice.com/en_uk/article/a3gq9g/the-story-of-messy-mya-the-tragic-voice-on-beyoncs-new-track . Acesso em 29 de setembro de 2021.
- Biografia de Martin Luther King. Disponível em https://www.ebiografia.com/martin_luther_king/ . Acesso em 29 de setembro de 2021.
- Movimento de luta que ganhou força nos EUA na segunda metade do século XX.
- História polêmica envolvendo a atriz e a segregação racial. Disponível em https://www.folhadelondrina.com.br/folha-2/oscar-de-halle-berry-relembra-historia-de-dorothy-dandridge-388412.html . Acesso em 29 de novembro de 2021.
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Thaís Nazaria é estudante de Relações Públicas na UERJ. Acredita na inclusão social de pessoas pretas na sociedade e em espaços acadêmicos que geralmente não são ocupados por essas pessoas.
E-mail: <thaisnazaria18@gmail.com>.