Evelyn Rodrigues | Maio 2022
Em janeiro deste ano, depois de encontrar alguns amigos com quem troco livros com tranquilidade há algum tempo, acabei trazendo pra casa o livro já batido na boca do povo de Luiz Antonio Simas — O corpo encantado das ruas. Foi com alguma tristeza que em troca eu deixei o meu As 29 poetas hoje, organizado pela pesquisadora, escritora e professora Heloisa Buarque de Holanda, que reuniu em um só livro uma diversidade de poetas contemporâneas muito potentes, das quais cito Natasha Felix, Bruna Mitrano, Rita Isadora Pessoa, entre outras tantas que me fizeram devorar o livro em poucos dias.
Como já tinha feito minha leitura, apesar do incômodo em deixar o meu livro de poemas com um desses amigos — porque gosto de ficar voltando ao exemplar e digerindo por muito muito tempo não pude deixar de ficar animada com um livro que tem impresso na capa um saquinho de doces São Cosme e Damião. A capa é uma memória afetiva da minha infância em um bairro da Costa Verde do Rio de Janeiro. Da minha mãe que sempre me animou a pegar os doces, e da minha avó evangélica, que preconceituosamente ficava implicando com a situação. O título também me causa afeto. Além de fazer referência a João do Rio (escritor que fui ler e me apaixonar já na faculdade) em A alma encantadora das ruas, tenho um fascínio por tudo o que se pode produzir e pensar artisticamente sobre o corpo. Nos momentos em que me arrisco numa escrita poética, percebo que sempre aparece ali o corpo, e igualmente todos os escritores que mais me despertam curiosidade, trazem de alguma maneira a questão do corpo– a palavra corpo ou o corpo em si, quem sabe, para a escrita.
O corpo encantado das ruas é catalogado como:”1. Brasil — Religião — Influências Africanas”. Mas é tratado como um livro de crônicas. Eu concordo. Talvez tenha sido catalogado de outra maneira porque Luiz Antonio Simas além de escritor é historiador. E a crônica em si já é imersa num mar de discussões relacionadas às definições de gênero textual. Uma outra maneira de ver o texto de Simas me chama mais atenção; pensar o texto como crônica ensaística. Sobre isso achei interessante o que uma aluna da Faculdade Casper Líbero apontou em seu texto intitulado O (en)canto que vem das ruas: leituras das crônicas de João do Rio e Luiz Antonio Simas em Comunicação Social. Ela menciona que:
O ensaio, destacado pelo filósofo da Escola de Frankfurt (Adorno) como texto “bastardo”, poderia ser comparado à crônica que por sua vez se apresenta como gênero essencialmente “elástico” e mestiço, uma vez que se aproxima do conto, do artigo de opinião, da reportagem e do próprio ensaio, a depender do estilo de cada cronista, da relação conteúdo-forma que a estrutura permite e do modo como cada autor a recria. (SOARES, 2020, p. 2).
Acredito que, nesse sentido, a crônica ensaística me parece o termo mais adequado, na medida em que não limita os traços poéticos da escrita do autor, como me parece fazer a definição “Brasil — Religião — Influências Africanas”.
Como disse anteriormente, O corpo encantado das ruas foi me encantando de diversas maneiras. Da capa ao título, do título à catalogação. Passei inícios de noite fazendo essa leitura e prestando atenção em cada detalhe. Rindo e me divertindo muito. A epígrafe traz João do Rio, Walter Benjamin e um Ponto do Exu Tranca Rua das Almas. Uma mistura de tudo o que é de mais da rua; com o que é de mais acadêmico, como me parece ser o pensamento de Walter Benjamin. Mostrando que o que é da rua também ocupa esse espaço dos livros, como quer parte específica do trecho do João do Rio: ‘’As ruas pensam, têm ideias filosofia e religião’’. Começo a leitura com um quentinho no coração.
Pensei em duas crônicas ensaísticas para falar sobre. Poderia até me arriscar a falar do livro todo, mas não daria conta da quantidade de elementos presentes nessa leitura. Fico com aquelas que me deram horas de pensamentos. A crônica Cidade Enfeitada, na página 73, é aberta por um Ponto de abertura de Gira. Não mencionei antes, mas apesar da falta de prática, a presença da cultura dos terreiros de Candomblé tem sido marcante na minha formação. Foi num terreiro que eu descobri a minha espiritualidade para além do que eram os rituais mecânicos como orar nas horas apropriadas, ir à igreja com minha avó etc. Foi no Candomblé que eu descobri que também existia na religiosidade a possibilidade do festejo, do corpo brincante. Eu que fui criada por pai e mãe que passavam horas costurando e montando fantasias de carnaval para levar eu e meu irmão para brincar na rua, que passavam dias montando nossas festas de aniversário por conta própria, nunca entendi por que não cabia nas religiões ocidentalizadas a possibilidade de festejo.
Depois desse enorme parêntese, volto à Cidade Enfeitada. Simas faz uma espécie de leitura das ruas atuais em tempos de Copa do Mundo, comparando-as com as ruas antigamente, muito bem enfeitadas e festivas. Diz que a rua agora, em sua maior expressão de apagamento das práticas culturais populares, é vista mais como um espaço de passagem que como um espaço de encontro. Lembro de uma foto do meu pai jovem, que guardo fisicamente e sempre na minha memória; um rapaz negro de um bairro qualquer do Rio de Janeiro, com certos dons para as artes, em frente a uma pintura que ele mesmo fez na sua rua, à espera da Copa do Mundo. Essa é apenas uma lembrança fotográfica, já no meu momento de curtir as ruas, a Copa do Mundo deixou de ser um motivo para festa. Cidade Enfeitada mostra esse desencanto. Nos traz um alerta de que as ruas estão amedrontadas pela violência e pela falta de políticas públicas. Apesar desse desencanto, Simas encerra a crônica com o contrário, o que tem de melhor em seu livro. Fala sobre sua própria paixão insistente pelo futebol, pela rua, pelas biroscas do Rio de Janeiro. Nos trazendo a imagem que nos faz querer que a nossa cidade volte a ter vida um dia. A imagem que nos faz sonhar de novo.
O filho do Cão. Nessa página eu gargalhei tanto que fiquei com medo de acordar quem dormia do meu lado. A página é 57 e é aberta pelo Ponto do malandro. O que já me deixa entre a risada e o pensamento de que eu, meus amigos e toda a nossa geração estamos totalmente cansados de tanto trabalho e muita infelicidade em uma cidade precária, marcada pela rotina da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Mais uma vez, são as ruas que mandam na crônica de Antonio Simas. Nela, ele fala sobre a possibilidade de inventar a vida. Fala disso a partir de jogos populares como a porrinha, o jogo de ronda e um tal fantasma da cultura popular denominado Bebê Diabo, que além de beber cerveja, come petiscos e fala em diversas línguas. É, mais uma vez, uma crônica sobre a possibilidade que só as ruas têm de construir fantasias muito divertidas e que, de fato, por muito tempo vem nos alimentando e nos mantendo sobreviventes, como diz o próprio autor, na precariedade das ruas.
Referências
O (en)canto que vem das ruas: leituras das crônicas de João do Rio e Luiz Antonio Simas em Comunicação Social. (SOARES Mei Hua. Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação — VIRTUAL — 1º a 10/12/2020)
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
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Evelyn Rodrigues é estudante de graduação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa a literatura contemporânea e as questões da performance literária pelo grupo: Literatura brasileira e latino-americana: questões de inserção do cenário contemporâneo.
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