Rafael Nacif | Setembro 2021

Todo o desenvolvimento técnico-científico constituinte do contexto pós-moderno é acompanhado por uma dialética extremamente complexa. Pode-se caracterizá-la, no que diz respeito à estética, pela exacerbação da individuação a partir da herança modernista, a questão que se coloca na validação de uma obra de arte através de seu ineditismo, de sua criatividade inaugural, de sua originalidade. Essa busca pelo marginal, pelo não acadêmico, por um outro olhar, engendrada notadamente pelas vanguardas históricas acabou por ser incorporada como uma outra tradição, foi assimilada pelo sistema de belas artes, estimulando uma infinita sucessão de criações que, radicalmente, intervêm no universo artístico intencionando contrariar os cânones que o estruturam.

Paralelamente, nos domínios da sociologia, o ambiente das grandes cidades tende a desconsiderar o indivíduo, e pasteurizar as diversas personas que circulam por ele. Lutando contra a anonimidade, a população urbana seleciona referências que servem como signos de identificação, acompanhando o conceito mercadológico de segmentação. Com o resgate de uma evidência cultural primitiva, não tão característico anteriormente, códigos definidos em vestimentas e ornamentos (moda clubber, moda rap, moda funk, moda étnica; tatuagens, piercings) determinam a tribalização das sociedades metropolitanas. A arte acompanha todo esse processo. Diversos estilos de expressão, inicialmente criados pela avant-garde europeia, foram readaptados. A Pop-Art, intitulada neodada por alguns críticos, a Land-Art e a Body-Art podem ser agrupadas como herdeiras desse legado.

A Body-Art reedita ou reinterpreta os ready-made de Duchamp, que assimilou processos industriais de produção em massa na construção escultórica, porém, numa direção diametralmente oposta, refutando a serialização ao se apropriar do corpo humano, fisicamente repleto de unicidade (a nível genético, por exemplo) como matéria prima. A incorporação do elemento orgânico na obra se contrapõe ao mecanicismo maquínico retratado nos trabalhos de Duchamp. O experimentalismo de Joseph Beuys, suas ideias revolucionárias também são reconhecíveis. Seu trabalho com gordura, cera, mel, feltro, cobre e sebo abriu caminho para a pesquisa de materiais, os mais improváveis. Os artistas usam sangue, suor, urina, fezes, esperma, fluidos nasais, lágrimas, cinzas cadavéricas, esqueletos. Numa radicalização sem precedentes da catarse trágico-aristotélica, mostram ao público um sadomasoquismo penitencial, muito próximo do dogma eclesiástico, reciclando os happenings realizados pelos dadaístas.

A purgação que perpetram leva muitos críticos a classificar a Body-Art como uma espécie de performance teatral, como o faz Bernard Borgeaud: … “a arte do corpo pode ser definida como a prática de um certo gênero de performance, fazendo intervir o corpo do artista como médium único. É a finalização lógica de uma evolução recente: com efeito, abandonando pouco a pouco todos os problemas de forma e de material, o artista encontra-se só, face a face, face a vida, face a si mesmo.”. Martha Wilson — diretora do Centro Franlyn Furnace, dedicado à documentação da história da arte avant-garde desta metade do século, que situa o início da Body-Art nos anos 60, com precursores como Betty Apple — alerta para o seguinte risco: “Esse não é um bom termo,”…(Performance Art, rótulo popularizado na década de 80) …“pois se confunde com o teatro, foi uma tentativa do público de enquadrar a body art numa categoria. A body art é toda aquela em que o corpo é a mídia do artista.”. Dos representantes desse grupo, aqueles que integram a linha “performática”, tem seu exemplo mais chocante num dos integrantes dos Ativistas de Viena, Rudolf Schwarskogler, que se suicidou em 1969, aos 29 anos, diante da plateia, que o via infligir sevícias contra seu pênis. Quase tão extremistas quanto ele, são os adeptos da sodomização, masturbação, ferimentos e queimaduras. Por outro lado, junto com esse extremismo, há a recuperação, para o campo da arte, de práticas que existem em todos os tempos e em todas as culturas: escarificações, tatuagens, maquilagem, travestimento etc., vastamente absorvidos por urbanóides com fins determinados, como: o tribal, tipo de tatuagem adotado por gangues de Nova Iorque e Los Angeles, inspirado nos desenhos usados no corpo por índios; o piercing, ou brinco, só que usado em outros lugares, além das orelhas, como no umbigo, no nariz, no septo nasal, na língua, no queixo, nos supercílios, nos mamilos, nos órgãos genitais (provoca maior sensibilização, segundo os usuários, assim como na língua); há também os expansores, que são “brincos” em forma de disco, colocados nos lóbulos ou no espaço entre o lábio inferior e a gengiva, que alargam os furos feitos primeiramente em proporções “bizarras”, como fazem algumas tribos indígenas; o uso de cristais no chamado “terceiro olho”, como fazem os indianos, para aumentar a atividade do chakra liberador de energia; o corte de cabelo dos punks, imitado dos índios moicanos, e várias outras referências étnicas como instrumentos de legitimação, de diferenciação individual, de oposição sócio-político-ideológica. Existem vários artistas que se destacam nesse cenário, como Dennis Oppenheim, Gina Pane, Bruce Nauman, Hermann Nitsch, Muehl, Arnulf Rainer, Urs Luthi, Vito Aconcci, Barton Benes, Anthony Vitti, Andres Serrano, Betty Apple, Bob Flanagan, Ron Athey. No Brasil existem alguns artistas que pontuam suas obras com essas influências, como: Antonio Manuel, Fernanda Gomes, Leonilson, Courtney Smith; além daqueles que podem ser considerados integrantes desse grupo, como Lygia Clark e Hudinilson Jr.

O uso da materialidade corpórea com fins ritualísticos e sacrificiais assume as mais controvertidas formas. Esse tipo de expressão começou a chamar atenção em 1989, quando um centro cultural nos EUA perdeu seu subsídio federal por expor “Piss Christ”, de Serrano, peça em que um crucifixo ficava mergulhado num recipiente cheio com a urina do autor. A obra de Benes, que é soropositivo, assim como as de Athey e Vitti, está impregnada pelo tema AIDS. No estúdio dele, no West Village em Nova Iorque, está reunida uma série de peças centradas no seu próprio sangue, que aparece ora num coquetel Molotov, combinado com explosivos de verdade, ora numa pequena garrafa de vodca Absolut, uma mórbida paródia ao anúncio da marca. Além delas, as peças expostas na Nathan Cummings Foundation, uma ampulheta preenchida com cinzas humanas, restos mortais de dois amigos vítimas do vírus da AIDS, e que foram amantes em vida, e cerca de 200 fitas-símbolo do apoio aos doentes da AIDS, envoltas nas cinzas (fixadas com resina) de uma usuária de heroína do Harlem. Foi lançado um documentário, exibido no Sundance Festival, causando reações díspares que foram do repúdio ao louvor, chamado “Sick: the life and death of Bob Flanagan, supermasochist”, sobre o artista que sofria de fibrose cística (doença congênita que causa mal funcionamento do pâncreas e infecções respiratórias), e exorcizava sua dor com performances de auto-flagelação. Athey é considerado seu legítimo herdeiro, fura o corpo e extrai seu próprio sangue durante as performances, e também foi tema de um filme. O critério que gera essa caracterização tem a origem na notoriedade conquistada por esses artistas, e na influência que têm exercido. Prova disso, é a caveira humana quadriculada com grafite, apresentada pelo mexicano Gabriel Orozco na Documenta de Kassel de 1997. Dentre os brasileiros, Antonio Manuel apareceu nu no MAM, em 1970, na performance chamada “O corpo e a obra”. Fernanda Gomes passou a colher os próprios cabelos para tecer grandes teias e estruturas. É importante ressaltar que não existe uma articulação desses artistas em torno de um ideário comum, como houve com os surrealistas ou os dadaístas, cujas bases ideológicas e objetivos estavam definidos nos manifestos. Pode-se considerar a Body-Art como uma tendência da arte contemporânea, que parece querer se firmar como um campo de expressão fixo. Em relação ao legado das vanguardas europeias, insuflador da arte contemporânea, no ensaio intitulado “L’art, l’Institution et les critères esthéthiques”, Rochlitz afirma:

A ruptura com a concepção tradicional da arte tornou-se a única preocupação de uma parte das vanguardas. A partir de então, podemos definir a arte, de acordo com Adorno e Derrida, por tão somente a subversão da familiaridade e do dogmatismo da linguagem ordinária. Aos olhos de Lyotard, a utopia modernista se reduziu, gradualmente, a um tal gesto mínimo, análogo à negação do mundo sensível no sublime kantiano: “A tarefa de ter sido testemunha do indeterminado conduz, uma após a outra, as barreiras opostas à lacuna de interrogações pelos escritos dos teóricos e manifestos dos próprios pintores.  […] É necessário diminuir o cavalete (para que a tela seja ampliada)? Não. As cores? O quadrado negro sobre o branco de Malevitch já respondeu à questão em 1915. Um objeto lhe é necessário? A body art e o happening entendem ter provado que não. Um espaço, menos ainda […]? A obra de Daniel Buren prova que até isso está sujeito à desconfiança [1].

E, segundo Péquignot, no ensaio “La querelle des oeuvres”:

No artigo intitulado “O rabo preso da arte contemporânea”, cujo título como o conteúdo espantam Jean-Philippe Domecq, Nathalie Heinich descreve com humor e talento uma “história” da arte contemporânea como uma sucessão de transgressões, o que não é, aliás, nem falso nem discultível. Por outro lado, podemos ser mais críticos sobre o modo de apresentação que faz ser acompanhada a definição de cada corrente artística de uma fórmula breve e incisiva considerando seu impacto: a op art e a arte cinética: “um grande sucesso”; a pop art ou Novo Realismo: “essa tem mercado”; Warhol: “essa não teve jeito”; […] happening, land art e body art: “essa sedimentou os museus, as galerias”, etc. Esta apresentação mostra bem que o fato paralelo à transgressão não é em nada estético, porém não se explica como um argumento publicitário de uma estratégia comercial [2].

Rochlitz e Péquignot não se contradizem. Ambos se preocupam em esclarecer o aspecto transgressor da arte contemporânea, herdado do modernismo, e apontá-lo como principal responsável pelo preciosismo inovacionista que a contamina, gerando expressões, de certa forma, ilegítimas. Nesse sentido, a Body-Art parece ser encarada, não como bastarda, contudo, como uma espécie de expressão que se preocupa muito mais em contradizer os parâmetros da Academia, do que, propriamente, cumprir uma função qualquer, mesmo a de objeto de apreciação estética. Os limites instaurados pela Body-Art parecem ser intransponíveis. Certamente, já houve raciocínios semelhantes em relação a correntes artísticas não-convencionais, que provocam, com a mesma constância, repulsa e reconhecimento imediatos. Poder-se-ia dizer que é, no mínimo, curioso que a arte esteja acompanhando essa fragmentação social multipolarizada, mais particularmente, a revisitação de códigos primitivos e sua reciclagem, misturada às imposições da história da atualidade. Grande parte das inovações foram incompreendidas na sua contemporaneidade. Talvez esteja acontecendo o mesmo com a arte do corpo. A sua obviedade no futuro pode vir a ajudar a sua assimilação.

[1] “La rupture avec l’idée admise de l’art est devenue le seul souci d’une partie des avant-gardes. À partir de là, on a pu définir l’art, à la suite d’Adorno et de Derrida, par la seule subversion de la familiarité et du dogmatisme du langage ordinaire. Aux yeux de Lyotard, l’utopie moderniste se réduit petit à petit à un tel geste minimal, analogue à la négation du monde sensible dans le sublime kantien: “La tâche d’avoir à témoigner de l’indéterminé emporte l’un aprés l’autre les barrages opposés à la vague des interrogations par les écrits des théoriciens et les manifestes des peintres eux-mêmes. [ … ] Faut-il un moins un châssis (pour que la toile soit tendue)? Non. Des couleurs? Le carré noir sur blanc de Malévitch avait déjà répondu à la question en 1915. Un objeta est-il nécessaire? Le body art et le happening entendent prouver que non. Un lieu, deux moins [ … ]? L’oeuvre de Daniel Buren témoigne que cela même est sujet à doute”.

[2] “Dans cet article intitulé “La partie de main chaude de l’art contemporain”, dont le titre comme le contenu ne peut que ravir Jean-Philippe Domecq, Nathalie Heinich décrit tout d’abord avec humour et talent une “histoire” de l’art contemporain comme une succession de transgressions, ce qui n’est d’ailleurs ni faux ni discutable. En revanche, on peut être plus critiques sur le mode de présentation qui fait suivre la définition de chaque courant artistique d’une formule brève est incisive concernant leur impact: l’op’art et l’art cinétique: “un grand succès”; le pop’art ou Nouveau Réalisme: “ça a marché”; Warhol: “ça n’a pas fait un pli”; [ … ] happening, land art, body art: “ça a rempli les musées, les galeries”, etc. Cette présentation a bien entendu pour fin de montrer, par la mise en paralèlle de la transgression n’est en rien esthéthique, mais ne s’explique que comme un argument publicitaire dans une stratégie commerciale”.

 

Bibliografia:

BERENSON, Bernard. “Estética e história”. São Paulo: Perspectiva, s.d.

BRAGA, João Ximenes. “O corpo humano como matéria-prima da arte”. O Globo, 2º caderno, Rio de Janeiro, 21 set. 1997, p. 4.

BUONFIGLIO, Monica. “Dicas e Magias” – suplemento da revista Manchete, cap. 3, p. 19.

KRÜGER, Werner. Filme/documentário: “Jeder mensch ist ein künstler” (Qualquer pessoa é um artista).

MORAIS, Frederico. Panorama das artes plásticas nos séculos XIX e XX. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, s.d..

PÉQUIGNOT, Bruno, “La querelle des oeuvres” e ROCHLITZ, Rainer. “L’art, l’Institution et les critères esthéthique”. In: _________. L’art contemporain en question. Paris: Éditions du Jeu de Paume, 1994.

 ———————— . Longman dictionary of American English. Nova Iorque: Longman, 1983.

RAMOS, Frederico J. da Silva (org). Dicionário Francês-Português. 7ª ed.. São Paulo: Edições LEP, 1953.

Material coletado na Internet, através do site de procura Google, verbete Body-Art.

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Rafael Nacif é doutor em Comunicação pelo PPGCom da UERJ.

Body-Art e o fim da catarse