Por Adriana Moreira | Agosto 2019

 

Como propõe o historiador André Azevedo (2010), a “história do Rio de Janeiro dialoga com a história do país, mas não se confunde com essa nem tampouco se resume à história nacional”. É partindo desse princípio que propomos uma reflexão a respeito do processo discursivo de construção do protagonismo mundial do Rio de Janeiro. Em seguida, analisamos brevemente como as transformações urbanas planejadas ou executadas no século XIX e no início do século XX, ajustadas às mudanças políticas e econômicas de cada época, contribuíram ao longo do tempo na valorização da localização da cidade como mercadoria a ser consumida internacionalmente.

Ao falarmos sobre a capacidade da cidade em atrair o olhar estrangeiro dentro de um contexto histórico, mostramos como os projetos de requalificação patrimonial contribuíram para a consolidação da sua imagem como um lugar próspero, onde um de seus êxitos foi a recente realização dos megaeventos, como a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. Assim, entendemos que os processos relativos à produção e ao consumo do espaço também estão presentes quando a mercadoria da cidade é a sua própria localização. A promoção do Rio se cristaliza em uma narrativa de um lugar promissor codificado pelo urbanismo, e dos novos modelos de relações sociais, ideologias, costumes e valores criados pelas paisagens urbanas reestruturadas. São mecanismos que, em geral, se originam de estratégias políticas e econômicas lideradas pelos representantes do poder e de outros atores sociais ligados à esfera pública.

O Rio de Janeiro foi se moldando aos poucos em uma cidade singular. Depois de se estabelecer como capital do Vice-Reinado, em 1763, o Rio tornou-se o centro político do Brasil Colônia em razão da sua condição de capitalidade, que se eleva a partir do século XIX com a vinda da Corte Real Portuguesa, em 1808, episódio que transformou a cidade na primeira, e até hoje única, capital de um país europeu fora da Europa. Como destaca Lessa (2005, p. 85), a presença da família imperial alavancou decisivamente o desenvolvimento do Rio. A cidade passou a ostentar um novo status político, pois não era mais sede do poder colonial, mas a capital de um Império. O choque expansionista do período joanino é marcado pela abertura do porto ao comércio exterior com as nações parcerias do Reino de Portugal. É quando se inicia, de fato, uma transformação radical fortalecendo a noção de progresso e de prosperidade. Só então é que a cidade começa a desenhar sua formação urbana por meio de um processo que articula alterações na sua estrutura espacial, social, econômica e cultural (cf. ABREU, 2013, p. 35). As mudanças que estavam sendo executadas em cidades europeias, como Paris e Londres, também são de grande importância para compreender a construção do Rio de Janeiro como referência de identidade nacional. 

A primeira tentativa formal de organização urbana aconteceu em 20 de setembro de 1843, quando o então Diretor de Obras Municipais, Henrique Beaurpaire-Rohan apresentou à Câmara Municipal um plano urbanístico (ANDREATTA, 2006, p. 83). Apesar de nunca ter sido colocado em prática, o relatório é de grande relevância para a história do urbanismo carioca, não somente pelo pioneirismo, mas, sobretudo, por ter inspirado planos futuros que marcam a construção do Rio de Janeiro moderno. Talvez por essa razão, as respostas em torno do marco da transformação urbana carioca se convertam à força histórica da chamada Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro, ocorrida no início do século XX, entre 1903 e 1906. Considerada a maior transformação urbana realizada na história do Brasil, as intervenções promovidas pelo então prefeito Francisco Pereira Passos visavam promover as noções de progresso e civilização, inexistentes nas últimas décadas do Segundo Reinado (1870-1889), visto que o Rio de Janeiro era ainda uma cidade de ruas estreitas e sinuosas com esgotamento sanitário precário, na qual os dejetos eram lançados em vias públicas (Cf. AZEVEDO, 2016). 

O movimento de transformação do espaço do Rio de Janeiro em cidade, verificada no século XIX, consolida-se a partir do processo de urbanização que, por sua vez, é instrumentalizado pelo capital estrangeiro. Dentro desse contexto, o período que se estende de 1870 a 1902 assenta as bases da modernização da economia brasileira e representa a primeira fase de expansão da malha urbana, bem como o início do processo de entrada do capital estrangeiro para o desenvolvimento dos projetos (ABREU, 2006, p. 43). O ano de 1858 marca a inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil), que permitiu a ocupação acelerada das regiões suburbanas. A partir de 1868, a implantação das linhas de bondes de burros favoreceu o acesso aos atuais bairros das zonas sul e norte. 

Nesse momento de prosperidade econômica, cuja principal atividade estava ligada à circulação de mercadorias, e de transformação, que conferiria à cidade o título de maior núcleo urbano do país, o Rio vivia uma evidente contradição social. A década de 1870 é marcada pelas fortes epidemias de febre amarela e varíola, situação que se agravou vinte anos depois com a crise da moradia portuária (LAMARÃO, 2006, p. 91). Foi nessa época que o ministro do Império João Alfredo Correia de Oliveira sugeriu a nomeação de uma Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, formada pelos jovens engenheiros Jerônimo Rodrigues de Moraes Jardim, Marcelino Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos (ANDREATTA, 2006, p. 151). Os três reuniam forte experiência em obras de abastecimento de água, saneamento e execução de ferrovias. O primeiro relatório emerge em um momento de crise e foi apresentado em 1875.

Andreatta (2006, p. 154) aponta que os principais argumentos defendidos no Plano Beaurepaire (escoamento de águas pluviais, melhoria da ventilação e da circulação em determinados pontos) serviram de inspiração para os membros da Comissão de Melhoramentos. No entanto, os projetos previstos jamais foram implementados. As plantas e os textos mostram que a cidade continuaria em busca de um modelo que conjugasse estética com salubridade (ABREU, 2006, p. 49).

A abordagem histórica também torna-se relevante para compreender a influência do urbanismo no desenvolvimento da identidade nacional, que começa a ser consolidada a partir das transformações urbanas do Rio de Janeiro no início do século XX. Com a comemoração de datas históricas importantes – centenário da Abertura dos Portos, seguida da Exposição Internacional de 1922, celebração do centenário da Independência -, o Brasil começa a desenvolver uma lógica de megaeventos baseados em efemérides presentes até hoje no calendário contemporâneo, como também uma diversidade de festas de matizes culturais ou esportivas.

As intervenções construídas em razão da Exposição de 1908 se estenderam até os terrenos da Praia Vermelha, que incorporou tratamento urbanístico e arquitetônico atualizado no atual bairro da Urca, e acrescentaram novos pontos turísticos à cidade. No entanto, é com a Exposição Internacional de 1922 que a cidade, de fato, sedia um evento de visibilidade internacional que a insere no cenário mundial e a aproxima dos megaeventos contemporâneos. Para tanto, a administração do prefeito Carlos Sampaio tem o objetivo principal de preparar o Rio para as comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Mais uma vez, o urbanismo é entendido como uma ferramenta que altera a geografia do Rio em nome do desenvolvimento e do progresso. Também a cidade é entendida como mídia e, como tal, necessita reforçar o discurso de transformação do solo como forma de ampliar sua imagem aos olhos do mundo. Com a reinvenção urbana, um novo projeto se integra à moderna organização urbanística implementada por Pereira Passos, valorizando o centro da cidade.

Vemos que atribuir uma “nova ordem” ao espaço está ligada sobremaneira ao poder público, representado quase sempre por uma classe dominante em benefício de uma imagem desejada internacionalmente. E, assim, para atender a interesses políticos, econômicos e administrativos, o urbanismo é utilizado como uma ferramenta essencial para erguer patrimônios monumentais e transformar simbolicamente as representações e os imaginários que, ao longo do tempo, foram compondo o espaço público. Com efeito, a ação dos gestores municipais contribui, seja de forma direta ou indireta, para construir o protagonismo do Rio de Janeiro como um lugar autêntico, característica distintiva de uma cidade que precisa mostrar ao mundo uma unidade funcional que vem sendo construída pela história. Muitas vezes a rotina de reinvenção passa despercebida a cada lançamento de projetos urbanísticos.

 

Referências:

ABREU, Maurício de. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN-Rio, 2013. 

ANDREATTA, Verena. Cidades Quadradas Paraísos Circulares: os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

AZEVEDO, André Nunes de. O Rio de Janeiro do século XIX e a formação da cultura carioca. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/view/27678>.

LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Dos Trapiches ao Porto – um estudo sobre a área portuária do Rio de Janeiro. RJ: Secretaria Municipal da Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação, Divisão de Editoração, 2006.

LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca de auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2005.

Um Rio de histórias: o urbanismo e a imagem da cidade mercadoria