Por Vania Fortuna | Julho 2019

Valorizar obras de embelezamento no Rio de Janeiro em detrimento de outras necessárias ao bem estar da população foi um questionamento recorrente do Correio da Manha, importante jornal da cidade no início do século XX. O periódico criticava a “mina de bons negócios” que se tornaram as obras de melhoramento do Porto e a abertura da “Grande Avenida” (atual Avenida Rio Branco).

Os projetados melhoramentos do porto, para os quais estavam a concorrer de bom grado quantos os almejavam, converteram-se em mina de bons negócios. Ao empréstimo externo, contraído com antecipação considerada, seguiram-se encampações, que além de custarem preços exorbitantes, compreenderam obras e serviços sem a mínima ligação com aqueles melhoramentos. Depois, pespegou-se-lhes a Grande Avenida, de que não cogitaram os primitivos planos, e, afirma-se agora não figuraram no prospecto com que foi lançado o empréstimo exclusivamente destinado as obras do porto. Por último rematam-se todas estas espantosas anomalias com um contrato, sem concorrência, que doa a um industrial inglês a construção das obras por cem mil contos, dobro do que, julgam entendidos, bastaria para executá-las administrativamente. (Correio da Manhã, 16/9/1903, p. 1)

A reforma do prefeito engenheiro Francisco Pereira Passos visava integrar a cidade ao contexto capitalista internacional por meio do embelezamento e da construção de largas avenidas. Começava a maior transformação urbana vista até então no espaço urbano carioca. Uma nova organização do espaço e um novo momento de organização social se impunham. Para que a cidade fosse reconhecida como símbolo do “novo Brasil” era necessária a modernização do porto e da área central, espaços que tinham características coloniais. 

Para Benchimol (1992), foi uma reforma urbana que impactou de forma violenta a população pobre da cidade. Ações autoritárias do Estado, associadas a interesses do capital privado, desabrigaram dezenas de milhares de trabalhadores, sobretudo pessoas pobres, devido à demolição de prédios e cortiços que representavam o atraso da cidade. Benchimol chama Passos de “ditador” e de “Haussmann tropical”, numa alusão ao prefeito que no final do século XIX transformou Paris em metrópole industrial moderna, modelo imitado mundo afora. 

A modernização do Porto era a obra de maior relevância, baseada em um sistema integrado que pretendia desenvolver a cidade comercialmente, arrecadar impostos e captar mão de obra estrangeira, com vistas à construção de uma nova imagem do Brasil no exterior. As intervenções consistiam na modificação do sistema viário com abertura, alargamento e prolongamento de ruas. Ações que traduziam uma visão organicista da cidade, entendida como um corpo que precisava de seus órgãos vitais ligados entre si para o todo funcionar harmonicamente. 

As contribuições de Sennett (2006) são primorosas para o entendimento dessa visão organicista da cidade. A relação dos planos urbanísticos com os corpos em movimento se imprimiu a partir das descobertas do médico britânico William Harvey (1578-1657) sobre a circulação do sangue. Segundo Sennett, uma revolução científica que mudou a compreensão sobre o corpo, que associada ao advento do capitalismo moderno, contribuiu para o nascimento do individualismo. Harvey descobriu que o coração bombeava o sangue que recebia das veias através das artérias, chegando à conclusão que era a circulação que aquecia o corpo pela batida do coração. 

A afirmação contrariou a antiga teoria “de que o sangue corria através do corpo aquecido, e que corpos diferentes continham diversos graus de calor inato` (calor innatus) – corpos masculinos, por exemplo, eram mais quentes que o feminino” (SENNETT, 2006, p.216). Pela nova ciência do corpo, a saúde dependia da livre circulação sanguínea e nervosa, paradigma que seria reproduzido pelas cidades que se formavam no século XVIII. 

Diante de tal associação, a vida saudável da cidade exigia que ar, água e dejetos fossem mantidos em movimento. Os grandes centros europeus se preocupavam com a limpeza urbana, porque a cidade, assim como um corpo saudável, precisava respirar. Nesse sentido, obras que permitissem a mobilidade urbana e o consumo de oxigênio foram postas em prática por reformadores urbanos.

[…] uma cidade de artérias e veias contínuas, através das quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca da moralidade por saúde – e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da felicidade humana. (SENNETT, 2006, p. 214)

A visão organicista de Pereira Passos seguia uma escola de urbanismo que modernizava o espaço urbano ao mesmo tempo em que valorizava a tradição. Isto fez com que Passos preservasse o Morro da Conceição e contrariasse as demandas de arrasamento do Morro do Castelo, percebidos pelo prefeito como ícones da história, lugares simbólicos da fundação da cidade.

Lessa (2001) adverte que o Rio de Janeiro como cartão-postal brasileiro começou a ser idealizado na Belle Époque tropical, com Passos e a política de saneamento de Oswaldo Cruz. O “Rio cidade maravilhosa” foi uma produção da República Velha, que precisava de um projeto-símbolo para apagar o atraso histórico e restaurar a autoconfiança da cidade. Para Lessa, a motivação era a mudança de imagem da cidade, e não a melhoria de vida do povo, visto que se ignorava o tecido social já existente. As marchas de carnaval propagavam a “cidade maravilhosa”, que se pretendia vitrine do país. Mas as maravilhas contrastavam com o custo social deixado pela escravidão. 

A “Paris dos trópicos” coexistia com favelas e cortiços, que precisavam ser expurgados para que a cidade realmente se visse livre do passado que queria esquecer: a alcunha de “Pequena África”. É pela imagem de “maravilhosa” que Pereira Passos iniciava a construção material e discursiva do Rio de Janeiro cosmopolita. 

Na tentativa de integrar a população ao processo civilizador do urbano, Passos instituiu as Posturas Municipais, substituição das antigas práticas espaciais, atrasadas e de mau gosto, por uma nova ética. Eram novos usos do espaço público impostos por uma elite que se referenciava em países como França e Inglaterra. Dessa forma, foram proibidos o bumba-meu-boi e outras festas populares, o comércio de carne e a ordenha de vacas em espaços públicos, assim como os quiosques de alimentação que mantinham o hábito de “gente pobre” comendo em pé. Lessa explica que com esse saneamento social, “o circuito visível do carioca neoparisiense seria: trabalho-calçada-bulevar-residência; dispensaria na rua qualquer contato visual com o pobre” (LESSA, 2001, p.198).

A imposição de padrões europeus pretendia ordenar uma cidade escravagista e culturalmente heterogênea. Na cidade moderna e cosmopolita que se formava, não cabiam os cortiços e a população pobre que neles habitavam. A abertura de grandes avenidas e o alargamento de ruas no Centro do Rio foram os argumentos para a destruição de habitações precárias e a remoção de seus moradores, desencadeando o que ficou conhecido como o “bota abaixo” de Pereira Passos. 

 

Referências

ABREU, Mauricio de A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Hausmann Tropical. A renovação urbana na cidade do Rio de Janeiro no início do Século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992. 

FREITAS, Ricardo Ferreira. Rio de Janeiro, lugar de eventos: das exposições universais do século XX aos megaeventos contemporâneos. Compos, 2011.

LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis – uma reflexão de autoestima. Record, Rio de Janeiro.  2001.

SENNETT, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 2001. 

Pereira Passos e a visão organicista do Rio de Janeiro