Por Adriana Moreira | Maio/2019

 

É interessante perceber que os heróis estão em toda parte. Ainda que estejam segmentados entre os ficcionais e os reais (HELAL; COELHO, 1996, p. 55), ambos estão presentes no mundo contemporâneo e tendem a ser apresentados como personagens espetacularizados e editados pela mídia. Enquanto os primeiros ilustram quadrinhos, filmes de cinema e novelas de televisão, os segundos são encontrados nas artes e no esporte. Mais interessante ainda é observar que a história de um herói, seja qual for a sua classificação, é sempre a história de uma caminhada. Como proposto por Campbell (1995), é uma jornada marcada principalmente por três fases: partida, provações e retorno. Em sua saga, o herói clássico afasta-se do mundo cotidiano, aventura-se a enfrentar desafios, intransponíveis à primeira vista, com o objetivo de alcançar a vitória e voltar à casa para dividir o êxito com os seus semelhantes.

O universo do esporte é um campo fértil para produção de heróis uma vez que os atletas surgem como personagens, que parecem ter largado a vida comum, dispostos a enfrentar adversários em quadras polivalentes ou em gramados. Mesmo diante de adversidades, os atletas vitoriosos são automaticamente reverenciados em pódios e ovacionados pela torcida. Este conjunto de imagens faz o herói olímpico ser o que é. Ou seja, é uma construção, mas também o resultado de uma atmosfera do estado de espírito coletivo de um determinado grupo que, como observado por Maffesoli (2001), determina a existência do imaginário.

Além disso, a conclusão de Helal, Cabo e Marques (2009), confirmada por Amaro (2014), mostra que a imprensa esportiva se vale de um vocabulário específico para descrever os medalhistas olímpicos, tanto pelo êxito profissional quanto por suas histórias de vida. Para os autores, os jornalistas especializados associam a figura do herói olímpico a termos como “superação” e “esforço”, diferentemente da cobertura das competições de futebol, principalmente em Copas do Mundo, quando o emprego de expressões como “talento” e “magia” é valorizado.

Diante de tais observações, chamou-me a atenção a construção midiática da imagem de heroína da judoca Rafaela Silva. E, assim, analisei a narrativa de 106 gêneros jornalísticos digitalizados do jornal O Globo, com citações nominais da atleta publicados na editoria de Esportes em 2012 e em 2016, ocasião dos Jogos Olímpicos de Londres e do Rio de Janeiro, respectivamente. As referências mostram que a brasileira seguiu a jornada mítica do herói proposta por Campbell (1995), passando pela maioria dos 17 estágios subdivididos em três fases centrais.

Mulher, jovem, negra, pobre e moradora da favela carioca Cidade de Deus, na Zona Oeste da cidade, Rafaela Silva reúne um conjunto de representações simbólicas que de tão consolidadas no imaginário coletivo podem ser classificadas como clichês por estarem recorrentemente presentes na imprensa em geral. O esporte lhe é apresentado como um recurso salvador. Ainda criança foi incentivada pelo pai a praticar judô com o objetivo de afastá-la da violência do local. Eis a partida. Depois de superar as mazelas impostas no dia a dia, a atleta se viu diante de novos desafios impostos das disputas no tatame. Foi derrotada na Olimpíada de Londres devido a um golpe ilegal em sua adversária. Em seguida, foi duramente criticada pelo erro e acabou sendo vítima de racismo. Nem mesmo a dor da depressão a impediu de seguir adiante. Ela iniciou a preparação para os Jogos Rio 2016 com acompanhamento psicológico e treinos intensos. Eis a provação. Conquistou a medalha de ouro, sendo reconhecida como heroína nacional com direito a desfile em carro de Bombeiros na comunidade onde nasceu e foi criada. Eis o retorno.

(Foto: Roberto Castro/Brasil2016.gov.br)

Resumidamente, as reportagens também foram especificadas em positivas, neutras e negativas. Entende-se como positivas aquelas que valorizam sua imagem como vencedora pela conquista de medalhas; neutras as que apenas relatam a participação em competições ou fazem uma simples citação; negativas aquelas que prejudicam sua imagem referindo-se a derrotas. A narrativa presente no noticiário pesquisado sobre a travessia da atleta nas Olimpíadas Londres 2012 e Rio 2016 é fundamentalmente construída pela linguagem e discursos jornalísticos. São detalhes diferentes, com técnicas específicas, para contar uma história com características estruturais iguais a de qualquer outro herói clássico, de acordo com a contribuição de Campbell.

Nesse sentido, partindo da constatação de Freitas (2011) de que o megaevento é um fenômeno de comunicação que faz parte do imaginário urbano e se insere no cotidiano da cidade, as notícias da derrota e da vitória de Rafaela Silva se espraiaram pela sociedade antes, durante e depois de sua realização. É quando milhares de pessoas recebem por um longo período um grande volume de informações incluindo os resultados das competições esportivas. Assim, o alto grau de midiatização dos Jogos Olímpicos explora em escala global todos os acontecimentos relacionados a tudo o que está inserido neste contexto. É uma engrenagem que, ao mesmo tempo que potencializou os fatos relacionados à jornada da judoca – para o bem quanto para o mal – estimulou o consumo do megaevento, em uma combinação na qual um elemento depende ou se beneficia do outro.

Para facilitar a compreensão deste processo pelo público, os meios de comunicação buscaram recursos que geraram uma identificação, ainda que temporária, acionada pelo emocional. Por isso, entre outras razões, pode-se explicar o uso de certos termos clichês nas matérias analisadas como “superação”, “persistência” e “esforço”, para mostrar que a atleta passou por diversas provações até ser aclamada como heroína nacional. Os textos também se valem do impacto visual das fotografias nas quais ela é retratada ora como derrotada, ora como vencedora. A infância pobre dos heróis é também um tema explorado pela imprensa esportiva tanto para os atletas olímpicos quanto para jogadores de futebol. Mais uma vez, este detalhe foi utilizado na construção da imagem de Rafaela Silva como heroína nacional.

Não há dúvidas a respeito do talento da judoca brasileira e de todo o seu empenho para tornar-se uma profissional de ponta reconhecida internacionalmente, ainda que tenha falhado dentro das quadras ou fora delas. Ela carrega em si aspectos reais de alto rendimento atlético, como também representações simbólicas da figura do herói no imaginário coletivo. Na maioria das vezes, a associação destes elementos impulsiona os meios de comunicação a fabricar seus personagens fortalecendo vínculos entre o herói e o país que representa. Não sabemos quais serão os próximos episódios que irão marcar a jornada da Rafaela Silva. No entanto, podemos dizer que ela não seguirá uma linha reta. O que, talvez, possa ser previsto é que será uma caminhada circular com referências clássicas da saga do herói olímpico e com características contemporâneas da midiatização. Portanto, daqui para frente será uma trajetória circular com estágios e fases de uma história conhecida, com detalhes diferentes que sempre dependerão de seus desempenhos, a ser escrita por ela junto com a imprensa esportiva.

 

Referências:

AMARO, Fausto. Mídia, Esporte e Idolatria: O Jornal do Brasil e a representação dos atletas brasileiros nos Jogos Olímpicos. 2014. 246f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2014.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 1995.

FREITAS, Ricardo Ferreira. Rio de Janeiro, lugar de eventos: das exposições do início do século XX aos megaeventos contemporâneos. In: ENCONTRO DA COMPÓS, 20., 2011, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre: UFRGS, 2011. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data /biblioteca_1639.doc>. Acesso em: julho, 2016.

HELAL, Ronaldo; MARQUES, Ronaldo Galvão; Cabo, Alvaro. Idolatria nos Jogos Pan- Americanos de 2007: uma análise do jornalismo esportivo. Revista Contemporânea, v. 13, p. 33-43, 2009.

MAFFESOLI, M. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS, n.15, agosto/2001, p. 74-82.

Rafaela Silva e a construção de uma heroína nas Olimpíadas