Por Gabriel Neiva | Fevereiro/2019
“Remoção”, documentário lançado em 2013, tem como mote narrativo principal uma temática pouco explorada nos filões cinematográficos, porém tão recorrente na história da cidade: as remoções populacionais de comunidades e favelas. Dirigido por Anderson Quack e Luiz Antonio Pilar, ambos oriundos de famílias afetadas por remoções ocorridas entre 1962 e 1975. Situado durante este período, o filme descreve o processo de desmantelamento de favelas da zona sul (Praia do Pinto, Ilha das Dragas, Morro da Catacumba, Macedo Sobrinho e Parque Proletário da Gávea), tendo seu contingente populacional realocado para conjuntos habitacionais localizados na zona norte e oeste, (Cidade Alta, Cidade de Deus, Vila Aliança e Vila Kennedy), consequentemente distanciando os moradores de suas residências de origem. Desses conjuntos, o único construído perto das localidades removidas foi a Cruzada São Sebastião, erigida no bairro do Leblon.
O documentário insere-se num corpus de discursos escritos e imagéticos que, nos últimos anos, revisam a narrativa das remoções ocorridas no período turbulento tanto dos anos antecedentes ao golpe empresarial-militar, quanto também à sua extensão, em plenos vapores, no auge do estado de exceção, durante os governos estaduais de Carlos Lacerda e Negrão de Lima e da gestão das presidências dos militares Artur Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici.
Olhando para o vosso momento contemporâneo, não é por acaso que um documentário como “Remoção” foi realizado em 2013. Afinal, parafraseando Beatriz Sarlo (2007), o passado está sempre conosco e é constantemente conflituoso. Dessa forma, revistar a memória das remoções dos anos 1960 e 1970 fornece importantes pistas sobre a mais recente história da cidade. Sob a égide da versão nacional desenvolvimentista e anti comunista do golpe empresarial-militar, tivemos, de acordo com Rômulo Mattos (2013), cerca de 80 favelas atingidas e cerca de 130 mil habitantes removidos, objetivando tornar a zona sul como um espaço livre das “ameaças da favelas”.
Em uma resenha do filme[1] no site Cinemação o crítico Daniel Cury descreve que “Remoção” retrata o processo histórico de “forma mais imparcial possível”. Reiterando tal posição, Anderson Quack, um dos realizadores da película, em sua entrevista ao jornalista Mauro Ventura para o jornal O Globo declara acerca das remoções que “não quisemos tomar partido, se foi bom ou ruim[2]”. Sem entrarmos em rocambolescas discussões axiológicas, pergunta-se: será que é possível um filme ser imparcial ou não tomar partido, principalmente diante de uma temática tão silenciada e esquecida na memória coletiva da cidade do Rio de Janeiro?
Na resenha de Daniel Cury, elenca-se também, como argumentação para a imparcialidade do filme, “imagens das remoções e de uma propaganda eleitoral mostrando o benefício do processo”. Talvez o registro em “Remoção” que melhor exemplifica tal imaginário é o documentário “Vida nova sem favela”, realizado pela Agência Nacional em 1971, em auge pleno do processo de expulsão dos moradores da zona sul. Quack e Vilar selecionam trechos do registro documental, com forte teor propagandístico, para realçar aspectos daquela narrativa que constroem um imaginário salvacionista dos novos conjuntos habitacionais em comparação às insalubres favelas originárias na zona sul. Em rápida contraposição a essas imagens, observa-se falas que destacam o caráter de abandono das então recém-inaugurados complexos habitacionais e realçam um aspecto central e reiterado constantemente para muitos dos moradores e familiares entrevistados: as políticas de remoções operaram uma perversa lógica de separação dos moradores economicamente desprivilegiados da zona mais valorizada pelo mercado imobiliário e pelas forças governamentais.
Neste sentido, adentra-se outro personagem chave para a construção do discurso em “Remocao”: Sandra Cavalcanti. A ex secretária de serviços sociais de Carlos Lacerda, defendeu, em sua entrevista, a necessidade histórica das remoções das favelas da zona sul para sítios que supostamente não fossem ameaças à salubridade da cidade. Assim, até 1965, em trajetória coordenou a transferência de contingentes populacionais para Cidade de Deus, Vila Aliança e Vila Kennedy.
Mesmo com a renúncia de Lacerda, Sandra Cavalcanti continua a ter participação nos processos de remoções da favela da zona sul. Nos primeiros meses após a deflagração do golpe empresarial militar, a então deputada aprovou a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), tornando-se consequentemente sua primeira presidente. Dentro deste órgão, intervindo na gestão do então governador da Guanabara, Negrão de Lima, o BNH criou o CHISAM (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana) em 1968, tomando as rédeas e acelerando o processo de remoções[3].Durante esse período até 1973, ocorreram as remoções das favelas no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, tendo como seu ato derradeiro, o ainda não explicado e possivelmente criminoso incêndio da favela da Praia do Pinto.
Em certo momento, Sandra Cavalcanti comenta que acredita existir um saldo positivo nas vidas das pessoas afetadas pelo processo de remoções (num outro momento da entrevista, ela diz refutar tal expressão). Consequentemente, a ex deputada relatou que continua recebendo convites para visitar moradias na Cidade Alta, Vila Esperança, Vila Kennedy e Cidade de Deus, sendo contemplada também com ingressos para formaturas de filhos e netos de moradores desses conjuntos habitacionais. Esse relato é seguido por uma fala de uma moradora da Cidade Alta, que a chama de mentirosa e rindo, diz que a “mataria” se a encontrasse em pessoa. Esta cena acaba por evidenciar duas narrativas sobre o processo sendo disputada: de um lado, Cavalcanti expressando uma tentativa de salvar o histórico do governo do qual participou e do outro, uma moradora afetada pelas remoções, cuja memória foi constantemente silenciada por quase cinquenta anos e tem a chance de desabafar, de forma jocosa, o que deseja para Cavalcanti. Por outro lado, a própria sequência de montagem da cena evidencia uma forma de se confrontar diante da fala de Cavalcanti, apresentando a recusa da fala da moradora diante da suposta proximidade da ex secretaria de Lacerda junto aos habitantes das comunidades[4].
Em contraposição á fala de Cavalcanti, a narrativa fílmica se redireciona para as mazelas e injustiças criadas neste mesmo processo. A potência dessa película não reside nas imagens de arquivo nem os enquadramentos e tomadas pouco usuais de espaços esquecidos da cidade, mas nas falas daqueles que elucidam suas experiências pessoais sobre as remoções.
Recorrentemente na película, observa-se, entre os moradores, falas que possuem um tom de lamentação sobre o processo. Em certo momento, um grupo de moradoras se dizem arrependidas por não ter resistido às remoções ocorridas no antigo Parque Proletário da Gávea, área (antes) contígua à Pontifica Universidade Católica (PUC), principalmente por ter apoio à época da direção e reitoria da faculdade. Já Adetruzes de Souza, também conhecido como “Tio Souza”, atuava como diretor associado do Morro da Catacumba à época das remoções e relata que participou de levantamentos socioeconômicos da Fundação Leão XII, acompanhando assistentes sociais, de origem econômica abastada. Dessa forma, “Tio Souza” conclui que sua atuação como única figura masculina fornecendo proteção para as “filhas de papai” ligadas ao Leão XII, acabou por ajudá-las a juntar informações para as posteriores remoções. Segundo Souza, hoje residente em Padre Miguel, essa lógica remocionista continua a se perpetuar até os dias de hoje.
Por outro lado, a lamentação que parece circundar durante todo o decorrer da película apresenta-se acerca da distância infligida sobre os moradores em relação às suas antigas moradias. Revela-se, então, um aspecto central do processo da remoção: o projeto de higienização das áreas de favelas cerceia o direito à cidade da maioria de seus habitantes de baixa renda. São recorrentes os depoimentos que evidenciam esses acontecimentos: antes próximos dos seus locais de trabalho e estudos na zona sul da cidade, viam-se, naquele momento, diante da uma brusca mudança do cotidiano. O transporte público deficitário e precário obrigava os seus moradores enfrentarem uma Avenida Brasil então sem passarelas de acesso e principalmente, os longos trajetos de múltiplas horas perdidas e em muitas baldeações até o seu destino final.
Perante essa brutal realidade, observa-se recorrentes depoimentos de lamentações nostálgicas sobre suas antigas moradias. Salienta-se algumas vezes na película rememorações sobre como “era bom morar perto da Lagoa Rodrigo de Freitas” ou mesmo “perto do Humaitá”, ou “no Parque Proletário, perto da PUC e da Marquês de São Vicente (rua do bairro da Gávea)”. Num outro trecho do depoimento de “Tio Souza”, este se recorda sobre uma reunião com assessores do governo Carlos Lacerda, em que esteve presente com outros moradores do Morro da Catacumba e favelas vizinhas. Nesse encontro, um morador da Praia do Pinto indagou a possibilidade do governo realocar os residentes das favelas em áreas vizinhas às favelas removidas. A resposta de um dos assessores é sintomática: “nenhum morador da favela tem condição financeira de pagar um imóvel na área da Região da Lagoa de Rodrigo de Freitas”. A partir de uma aliança entre as forças estatais e o capital imobiliário, vedou-se a possibilidade de realocação dos moradores em áreas próximas de suas residências originais, exceção feita à Cruzada São Sebastião, preferindo distanciá-los em espaços afastados de suas antigas habitações.
Os mecanismos de lamentações dos moradores ganham ainda mais força com a rememoração de canções que descrevem a cruel situação de exclusão do usufruto cidade pelos removidos. Romuario Mendes Ferreira, atual morador de Padre Miguel e retirado da área do Parque Proletário da Gávea canta parte de um samba sobre tal situação:
“Eu não sou da cidade
Moro na roça onde a brilha a novidade
Lá tem morro de lugar no asfalto
Eu ingresso na localidade
Olha a dança da economia da prosperidade
Meu ganha pão vem com sufoco
Não dá para ter o luxo da cidade”.
Em um outro momento da película, um grupo de moradores removidos da Praia do Pinto resgatam um samba que explicita justamente a transição deles para o Conjunto Habitacional da Cidade Alta. Mesmo com a inicial hesitação de uma membra, receosa por causa de uma possível antipatia da igreja que frequenta em relação à tal cantoria, estes decidem por entoar as seguintes letras. A rememoração, em formato de canção, revela um aspecto recorrente no documentário: a dificuldade de locomoção e fruição da cidade por estes:
“Antigamente eu morava no Leblon,
Para chegar no meu trabalho,
Não pegava condução.
Mas, hoje em dia, pego o Mauá – Caxias
Salto na Praça Mauá,
E pego um tal de Harmonia.
Vou batendo na marmita,
Alegremente a cantar, pensando no outro dia,
Que tem que trabalhar.
O trabalho não me cansa,
O que me cansa é pensar, naquele maldito incêndio,
Que destruiu o meu lar.
Não tenho tempo para nada
Não posso mais passear
Dispensei a namorada
Só penso em trabalhar.
Agora vejam vocês, aonde eu vim morar
Em Cordovil, pertinho do Irajá.”
Referências:
BRUM, Mário. Ordenando o espaço urbano do Rio de Janeiro: o programa de remoções da CHISAM e as “utilidades” para os favelados (1968-1973), in: XIV Encontro Regional da ANPUH Rio. Rio de Janeiro: UniRio, 2010.
MATTOS, Rômulo. “Remoções das favelas na cidade do Rio de Janeiro: uma história do tempo presente”, in: Outubro, n. 21, 2013.
SARLO, Beatriz. Tempo passado, cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
[1] Ver resenha em: http://cinemacao.com/2014/06/24/conheca-o-documentario-remocao/. Acesso realizado em 27 de maio de 2017.
[2] Ver entrevista de Anderson Quack em: https://oglobo.globo.com/rio/dois-sucos-a-conta-com-anderson-quack-12683283. Acesso realizado em 28 de maio de 2017.
[3] Sobre a criação do CHISAM e sua atuação nas remoções das favelas, a partir de 1968, ver: BRUM, Mário. Ordenando o espaço urbano do Rio de Janeiro: o programa de remoções da CHISAM e as “utilidades” para os favelados (1968-1973), in: XIV Encontro Regional da ANPUH Rio. Rio de Janeiro: UniRio, 2010.
[4] As discórdias entre os realizadores de Remoção começaram antes mesmo da filmagem da sua entrevista, pois Sandra Cavalcanti disse à Quack não gostar do termo “remoção”, ver em: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/historia-viva-dos-morros-do-rio-11253710. Acesso realizado em 01 de junho de 2017.00