Por Tetê Mattos | Fevereiro/2019

Criado em 2010, o CINEFOOT – Festival de Cinema de Futebol, que tem como objetivo exibir filmes centrados na temática do futebol, vem atraindo um público diferenciado e se legitimando como importante veículo para a difusão de obras audiovisuais de diversas nacionalidades, que abordam o esporte mais popular do Brasil, tratando de temas como os clubes de futebol, Copas do Mundo, jogadores, torcidas, partidas e campeonatos, superações, questões sociais, etc.,  em  suas mais diversas formas narrativas.

A experiência de realização do festival CINEFOOT passou a dar visibilidade a uma vasta produção audiovisual com temática do futebol, que até então encontrava praticamente alijada não só dos circuitos comerciais de exibição, como também do circuito independentes representado pelos festivais de cinema, cineclubes e algumas poucas salas de exibição não-comercial.

Ao mesmo tempo em que o festival contribuía para um despertar das obras audiovisuais –  que aqui chamarei de “cinema de futebol” – e tornava-se o campo de encontro e de debate do tema cinema e futebol, observou-se a emergência de um público fortemente apaixonado pelo festival, e com forte identificação com as obras exibidas.

Num contexto de globalização, de pós-modernidade, de desterritorialização, de efemeridade, de fragmentação, de fluxo intenso de informações, observamos que os novos meios de comunicação e tecnologias produzem novas possibilidades de comunicação e expressão cultural, e principalmente modificações nas maneiras de viver a vida e estar no mundo.

A pós-modernidade também inaugura uma nova lógica nas práticas culturais, nos processos sociais, na cultura do consumo, em especial no que tange às implicações sociais, nos estilos de vida, nas sociabilidades e identidades.

No momento em que o consumo torna-se um processo coletivo e ativo, e que vivemos na era do hiperconsumo, nos perguntamos a partir de qual lógica o CINEFOOT opera na aquisição, na fruição, na ressignificação das obras audiovisuais e na sua mediação social junto aos seus consumidores.

Figura 1 – Taça do CINEFOOT. Foto: Clarissa Pivetta

No texto de apresentação do Catálogo da primeira edição do Festival, intitulado “Apresentação, ou melhor … Preleção”, o diretor Antonio Leal já nos apresenta pistas das estratégias de consumo adotadas ao afirmar: “É aí que reside o nosso objetivo: oferecer à sociedade um evento inédito, de excelência, capaz de unir a magia do futebol à emoção do cinema”. O festival se configura como um local de troca e de interseção cultural entre dois campos: o do esporte/futebol, e o da arte/cinema.  Como estratégia de mediação, observamos que o CINEFOOT se utiliza de um discurso que passa pela construção de um imaginário pautado na relação do futebol como um dos pilares da nossa identidade cultural.

Observamos ainda a utilização de um vocabulário que remete ao campo específico do futebol: a substituição do termo “apresentação” por “preleção”[1],  na ficha técnica a equipe do festival é creditada como uma equipe de futebol (“escalação de equipe”), que “entra em campo” para a organização do CINEFOOT com um “esquema tático” de “defesa”, “meio-campo”, “ataque”.  Esta estratégia de discurso também pode ser observada nas campanhas de divulgação do festival: “Praticamos o futebol arte em todos os sentidos” e “Festival único – feito para espectadores e torcedores”. Fica evidente que ao adotar este discurso o festival conta com o engajamento de comunidades de consumidores que, por sua vez, participam ativamente e compartilham códigos de pertencimento através de um consumo mais segmentado.

Ainda podemos destacar como ações de mediação, a adoção de estratégias que remetem a experiência fílmica semelhante à prática de assistir a uma partida de futebol. Há todo um aparato midiático produzido pelo CINEFOOT – um hino, um escudo, uma bandeira, uma flâmula, uma taça (Figura 1) – que possibilita ao espectador do cinema, um tipo de imersão cultural, semelhante ao estar numa partida de futebol.

Em muitas das sessões, espectadores e espectadoras  aparecem com bandeiras e vestidos com as camisas de seus clubes (Figura 2),  gritam palavras de ordem e portam-se como se estivessem num estádio de futebol. A forma de prazer muitas vezes reside no afeto pelo futebol, na familiarização com as imagens, na rememoração de um passado – temas estes recorrentes em muitas das obras audiovisuais exibidas.

Figura 2. Torcida gremista presente no CINEFOOT 2013. Foto: Clarissa Pivetta

O sociólogo francês Michel Maffesoli, estudioso do imaginário e do cotidiano contemporâneos, ressalta a importância das mobilizações e engajamentos dos grupos sociais:

Tudo serve para celebrar um estar junto cujo fundamento é menos a razão universal do que a emoção compartilhada, o sentimento de fazer parte. É assim que o corpo social se fragmenta em pequenos corpos tribais. Corpos que se teatralizam, que se tatuam, que se perfuram. As cabeleiras se eriçam ou se cobrem de xales, de quipás, de turbantes ou de outros acessórios, até mesmo de lenços de seda Hermès. Em suma, a monotonia cotidiana, a existência inflama-se com novas cores, traduzindo, assim, a fecunda multiplicidade dos filhos dos deuses. Porque é sabido que há muitas casas na morada do Pai! (MAFFESOLI, 2010, p.38)

De forma positiva, o autor vê nesta “experiência” de comunidade e de sentimento de pertencimento uma potencialidade que podemos de imediato relacionar às práticas do CINEFOOT, que promove ações de sociabilidade a partir das ritualizações que remetem a experiência fílmica a uma prática semelhante a da arquibancada dos estádios de futebol: imensas bandeiras são acionadas na plateia do cinema, flâmulas são distribuídas ao público. Desta forma, a construção do público freqüentador do CINEFOOT se dá a partir dos laços de afeto e de sentimento que o festival estabelece com o mundo do futebol. Há uma relação a partir de uma lógica hedonista onde esta experiência do espectador de filmes é associada à experiência de assistir a um jogo em uma arquibancada de futebol, transformando e exigindo deste espectador uma posição ativa, que o transforma no que chamamos de “espectador-torcedor” (Figuras 3 e 4).

Figura 3. Público participativo. Foto: Clarissa Pivetta

 

 

Figura 4. Público participativo. Foto: Clarissa Pivetta

A experiência do CINEFOOT demonstra como estes eventos desempenham importante papel de mediação e intercambio cultural entre as obras audiovisuais, os freqüentadores dos festivais e o público em geral de forma a promover um engajamento e um sentimento de pertencimento aos eventos. Observamos a emergência de um público fortemente apaixonado pelo festival, e com forte identificação com as obras exibidas. No momento em que o consumo torna-se um processo coletivo e ativo, a lógica adotada pelo CINEFOOT demonstra uma poderosa ferramenta para a engrenagem do audiovisual.

 

Referências

JENKINS, Henry. Cultura da convergência: A colisão entre os velhos e novos meios de comunicação. São Paulo: Aleph, 2009.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. Tela global: Mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009.

MAFFESOLI, Michel. Saturação. São Paulo: Itaú Cultural, 2010.

[1] O termo “preleção” significa a conversa que o técnico tem com a sua equipe antes de entrar em campo para uma partida de futebol.

O Festival Cinefoot e o espectador do “Cinema de Futebol”