Por Roberto Vilela | Dezembro/2018

Quando se estuda a história da cidade do Rio de Janeiro e as diversas transformações pelas quais passou, a Reforma Passos é unânime como marco fundante de uma cidade moderna. Ocorre que o plano de obras realizado pelo prefeito Pereira Passos a partir de 1903[1] inspirou-se em três planos[2] urbanísticos realizados antes de sua gestão, mas que nunca foram colocados em prática por injunções políticas ou por falta de verbas. O primeiro desses planos será o objeto desta breve matéria, os outros dois serão debatidos em futuros artigos que pretendemos desenvolver, pois são alvo de nossa pesquisa no Lacon.

Fonte: Pinterest

Apresentado à Câmara Municipal em 20 de setembro de 1843, pelo Diretor de Obras Municipais, Henrique Beaurepaire-Rohan, é o primeiro plano formal de ordenamento da cidade do Rio de Janeiro. Militar com formação em engenharia, Henrique Beaurepaire, dividiu seu plano em duas frentes: salubridade e embelezamento.

Esta primeira proposta urbanística para o Rio de Janeiro é uma amostra interessante da transição da engenharia militar barroca para as técnicas de urbanização moderna, ao mesmo tempo que constitui um autêntico plano para a reforma da cidade construída e para a sua futura expansão, e também parece mostrar uma intenção tardia de introduzir a malha geométrica hispano-americana numa cidade de origem portuguesa. (ANDREATTA, 2006, p.84)

Para entender a proposta de Beaurepaire é preciso ter em mente a situação da cidade após a chegada da família real em 1808: acelerado crescimento populacional, migração do campo para a cidade, serviços urbanos incipientes e grande crescimento econômico. De igual maneira, não podemos nos esquecer que o Brasil ainda era um país escravagista, segundo Andreatta (2006), em 1850 dos 270 mil habitantes da cidade, 111 mil eram escravos. Outro fator pouco comentado, mas que fazemos questão de salientar, diz respeito aos obstáculos geográficos que havia na região, de modo que a cidade crescia comprimida entre o mar e uma vasta cadeia montanhosa, além de um solo pantanoso que dificultava as construções em algumas localidades.

Nesta época, o Rio é cenário de algumas epidemias de febre amarela e até mesmo alguns casos de cólera. O desordenamento urbano, somado ao clima e à altíssima densidade demográfica agravava sobremaneira as condições de vida na capital do Império. Uma cidade que até meados do XIX não tinha água encanada e o abastecimento era feito através de fontes públicas. As únicas quatro que havia eram: a da Carioca, das Marrecas, do Moura e a do Largo do Paço. Todas abastecidas pelo aqueduto da Lapa. As pessoas eram obrigadas a se dirigir a essas fontes, munidas de recipientes, a fim de enchê-los e retornar às suas casas. Registra-se que grande parte deste serviço era feito por escravos.

Fonte: Pro memórias

Em 1839 todas as obras públicas realizadas na cidade passam à jurisdição da Câmara Municipal. Um ano depois, Henrique de Beaurepaire-Rohan é nomeado diretor do Departamento de Obras Municipais, função que exerceu até 1844. O Plano Beuarepaire é gestado neste contexto e, mesmo não sendo aprovado pela Câmara, teve apoio de muitos dos seus membros, notadamente médicos, que sustentavam a proposta e isto provocou a publicação do texto.

À época, devido ao inchaço populacional da cidade, as habitações coletivas multiplicavam-se nos estratos populares de baixa renda. O que agravava-se com os intensos fluxos migratórios do campo. Essas pessoas acabavam habitando, em muitos casos, o próprio local onde trabalhavam, amontoando-se em casas de cômodos, estalagens  e situações análogas. Mas se havia um fator comum nesses casos era a escassez de espaço dessas moradias. Daí surge o termo “cortiço”, fazendo menção a essa modalidade de habitação.

O ideário de Beaurepaire está inserido na corrente higienista que dominou o urbanismo no século XIX. Para ele a saúde da cidade e de seus habitantes seria consequência de um ordenamento urbano no sentido de estipular geometricamente uma trama de ruas, quarteirões e praças que permitissem não só a organização de uma “malha” urbana, mas, sobretudo, a sua expansão futura dentro desta lógica. Seu plano, inicialmente, via a cidade dividida em dois âmbitos: uma zona central consolidada e uma zona mais adentro do continente, que eram localidades para onde o município crescia. Segundo Andreatta (2006), a proposta era que as obras começassem pela chamada Cidade Velha e depois fosse estendida às outras regiões.

Beaurepaire propõe, sobre essa trama, intervenções no sentido de criar ruas com um traçado retilíneo de modo a compor quarteirões geometricamente regulares. Previa também a construção de duas grandes avenidas paralelas ao porto, além das que já existiam: a rua da Direita e a rua da Quitanda. Não obstante, ruas perpendiculares a essas novas avenidas seriam abertas, para, com a rua do Ouvidor, formatar uma nova configuração dos logradouros da Cidade Velha. As ruas já existentes, paralelas à rua do Ouvidor, seriam alargadas de 30 para 80 palmos e 18 novas ruas seriam abertas com este mesmo traçado e largura.

Além de todo esse ordenamento de quadras, alargamento e abertura de ruas, o Plano propunha a reformulação da fachada dos edifícios. O que acabaria sendo uma “consequência natural”, pois, nas ruas a serem alargadas, muitos imóveis seriam afetados. Benfeitorias teriam pedaços demolidos ou iriam ao chão na sua totalidade. Essas, quando reconstruídas, já seriam refeitas obedecendo a um novo padrão estético e teriam todas um distanciamento padronizado em relação ao passeio. Ou seja, muito embora o relatório de Beaurepaire tivesse um enfoque maior na redefinição da trama urbana, a questão estética não deixou de ser levada em conta. As praças públicas eram outro destaque do Plano e teriam a função de hierarquizar o espaço, aformosear a cidade e incrementar a saúde pública.

Dessas, a principal seria a construção da Praça da Aclamação, no lugar do Campo de Santana. Projetada por Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny em 1827, quando da passagem da Missão Artística Francesa pelo Brasil, a nova praça reordenaria a paisagem do local com a reformulação dos jardins e a construção de novos prédios ao seu redor, inclusive o novo Fórum da cidade. O Plano de Beaurepaire previa além da consecução do projeto de Montigny, sua utilização como uma rótula que congregaria as avenidas oriundas porto (que atravessam toda a Cidade Velha) e as lançaria na direção da Cidade Nova, servindo como uma espécie de feixe ordenador e impulsionador do crescimento da cidade.

Fonte: Estadão

A consolidação de caminhos e de pontes para os subúrbios também eram contemplados pelo Plano, em especial as localidades de Botafogo, Engenho Velho[3] e São Cristóvão, que – à época – congregavam uma população de elevado poder aquisitivo. Nesse sentido o aterro do mangue de São Diogo melhora a ligação com  São Cristóvão, com o Engenho Velho, dá origem ao bairro da Cidade Nova e à Praça XI. A canalização do mangue e de sua ligação com o mar, bem como a demolição do morro do Castelo, têm forte influência do relatório de Beaurepaire ao fundamentar argumentos higienistas e de otimização da trama urbana.

Além do exposto acima não podemos deixar de citar o forte conteúdo higienista presente no Plano, pois, segundo Beaurepaire, a melhoria das condições físicas da cidade viabilizaria a formação de uma nova sociedade. Daí sua postura crítica à habitações pequenas e mal arejadas onde residiam muitas pessoas, ao clima quente e úmido, aos mangues que corroboravam com essa umidade e aos morros que prejudicavam a ventilação da cidade.

Onze anos após Beaurepaire deixar a direção de Obras Públicas do município, uma das principais propostas presentes em seu Plano fora realizada: a instalação de uma rede de esgotos em boa parte da cidade. As obras foram concedidas ao capital privado e realizadas pela empresa inglesa “Rio de Janeiro City Improvements”. Desta maneira, o Rio tornava-se a primeira cidade da América Latina a possuir uma rede domiciliar de esgoto. De acordo com Benchimol (1992), em 1864 o alcance do sistema servia a cerca de 7800 edifícios e já em 1870 este número elevou-se para 15.500.

Isto posto, salientamos a relevância do seu relatório que, mesmo não aprovado, muitas de suas propostas foram realizadas posteriormente, tais como a transferência do matadouro público para a praia de São Cristóvão; a instalação de uma rede de esgoto; a construção de encanamentos de água para a distribuição de água potável para a cidade através dos rios Maracanã e Carioca; o aterramento do mangue de São Diogo somado ao estabelecimento de um canal de navegação; e por fim, o desmonte do morro do Castelo a fim de possibilitar a ampliação e a aeração da cidade.

Referências:

ANDREATTA, Verena. Cidades Quadradas Paraísos Circulares: os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro. RJ: Mauad, 2006.

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX. In: Coleção Biblioteca Carioca, v. 11, Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.

[1] Francisco Pereira Passos assume a prefeitura em dezembro de 1902, mas as obras destinadas à reformulação do porto e à consequente abertura da Avenida Central só começam no final de 1903.

[2] Após o Plano Beaurepaire (1843) os outros dois Planos que antecedem a Reforma Passos são: o 1º Relatório da Comissão de Melhoramentos (1875) e o 2º Relatório da Comissão de Melhoramentos (1876).

[3] O Engenho Velho, hoje, corresponde à região conhecida como Grande Tijuca que abrange os bairros: Tijuca, Vila Isabel, Grajaú e Andaraí.

 

 

Plano Beaurepaire: o primeiro plano urbanístico do Rio de Janeiro