Por Ana Teresa Gotardo | Novembro/2018

Uma questão que emerge dos documentários internacionais sobre a cidade do Rio de Janeiro na construção da marca Rio é a representação da mulher nos produtos audiovisuais. O consumo dos corpos brasileiros, da perfeição física, é evidenciado desde as narrativas fundadoras (Carta de Caminha, por exemplo), tal como nos aponta Amâncio (2000). O autor salienta que “o Brasil pré-colonial evoca retrospectivamente uma mitologia da sedução do trópico, com sua paisagem paradisíaca e sua gente sensual e receptiva” (AMÂNCIO, 2000, p.22). Esses imaginários compõem ainda hoje um amplo leque de narrativas internacionais sobre o Brasil, incluindo os documentários internacionais de televisão.

Foto: Iracema, José Maria de Medeiros.

Segundo Gomes e Gastal (2015) esses imaginários passam a ser explorados mercadologicamente de forma planejada com a criação da Embratur, durante a ditadura militar, devido à relevância que o turismo ganhava para o Brasil. Nesse período,

a Embratur divulgou intensamente a imagem do Brasil como país harmônico, reafirmando a identidade nacional em torno da mestiçagem / sexualidade / paraíso. Construiu, assim, a mulher brasileira como um atrativo turístico (CAETANO, 2004; GOMES, 2009, 2010) ao utilizar, seguidamente, imagens de mulheres seminuas associadas a paisagens naturais, notadamente as praias, ou a eventos como o carnaval, nos materiais de divulgação turística. (GOMES; GASTAL, 2015, p. 212 – grifo das autoras).

O ideal paradisíaco construído desde as narrativas fundadoras e reiterado tanto nos planos governamentais de turismo quanto nos mais diversos produtos midiáticos, como cinema (AMÂNCIO, 2000) e televisão (GOTARDO, 2016), é também parte dos imaginários de consumo turístico – ou, sob o ponto de vista institucional-mercadológico, são parte de uma estratégia para construir uma marca, criar atributos intangíveis para o país, de forma a diferenciar entre os competidores para atrair consumidores e, portanto, divisas (FREITAS; GOTARDO; SANT’ANNA, 2015). A construção do corpo como atrativo turístico remonta, segundo Gomes e Gastal (2015), ao imaginário da “Eva”, a pecadora, a prostituta, a mulher hiperssexualizada, geralmente ligada à figura da “mulata”[1], revelando uma dupla opressão – de gênero e de raça.

Foto: A Tentação de Eva, Accademia Firenze.

Em Welcome to Rio, a questão do gênero parte inicialmente da escolha das personagens da série: nos três episódios, apenas duas mulheres fazem parte do rol de personagens “principais”, ambas no episódio intitulado Ingenuity. Uma delas, Rose, é apresentada com seu companheiro. A outra, Thamy Delícia, é um corpo a ser consumido. Segundo a sinopse do episódio, “Thamy Delicia é uma estrela em ascensão na cena do funk da favela. No entanto, suas letras explícitas e suas danças provocantes significam que ela precisa ajustar sua conduta se quiser sair da favela e conquistar o respeito de sua mãe evangélica”. Imagens de um baile funk são exibidas na apresentação da personagem, e dançarinas de biquíni sobem ao palco, em uma tomada em contra-plongée, evidenciando suas nádegas, enquanto a narração diz que os bailes não são para os “os fracos de coração”.

Uma dançarina se concentra antes de começar a dançar – trata-se de “uma das primeiras estrelas femininas do funk, Juliana Forgosa, famosa por sua marca especial do forte feminismo de favela”, destaca a narração. Thamy Delícia dança na plateia. Ela salienta: “Aqui no Brasil tem muitos homens machistas, muitos mesmo, que querem mandar, quer deixar a mulher em casa, a mulher não pode fazer nada”. Ao fundo, no som do microfone da festa, ouve-se: “mulheres, é nossa, e a gente distribui para quem quiser, não é, meninas?”[2] A narração então conclui: “essas cantoras explícitas de baile funk estão empenhadas em empoderar as mulheres, estilo favela. Embora elas não sejam para o gosto de todos”.

Na passagem acima, vemos o único deslocamento da narrativa em relação ao consumo dos corpos femininos: o destaque para o funk feminista e a mulher como dona de seu corpo. Caetano (2015) ressalta que, apesar das contradições apresentadas por alguns movimentos feministas, como hipersexualização, o discurso das funkeiras atinge mulheres de classes populares. Gomes e Gastal (2015) destacam que as mulheres não são uma categoria unitária, tendo em vista o cruzamento entre gênero e outros demarcadores sociais, como raça, classe, orientação sexual. Hooks (2013) evidencia a luta das feministas negras para serem reconhecidas no campo, tendo em vista que a produção acadêmica feita por mulheres brancas era envolta em preconceitos que distorciam os estudos e não abarcava a experiência negra. Trata-se também de uma disputa discursiva, entendendo, tal como Foucault (2000, p.10),

que o discurso (…) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que (…) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar.

O discurso feminista é apresentado de forma breve e volta posteriormente em uma fala de Thamy, quando ela diz que acha a mãe muito submissa ao pai, um homem ciumento. E ressalta que nunca aceitaria um relacionamento que a impedisse de dançar: “primeiro lugar Deus, segundo lugar minha família, e terceiro lugar minha carreira, depois namorado, depois outras coisas”. Essas falas, no entanto, são dissonantes; há uma dominância da necessidade de Thamy de “ajustar sua conduta” ao mercado mainstream e a sua religião, somados ao fato de termos uma produção audiovisual dirigida por um homem branco europeu, narrada por uma mulher branca e exibida em culturas das quais o funk não é parte, é alteridade, construída no episódio para consumo.

E, neste ponto, podemos destacar ainda a importância do lugar de fala. Ribeiro (2017, p. 31) destaca que confrontar uma norma vigente é “desvelar o uso que as instituições fazem das identidades para oprimir ou privilegiar”, estabelecendo relações de poder que legitimam ou não certas identidades. A autora destaca ainda que

Essas experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impedem que a população negra acesse certos espaços. É aí que entendemos que é possível falar de lugar de fala a partir do feminist standpoint: não poder acessar certos espaços, acarreta em não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas, inclusive, até de quem mais tem acesso à internet. O falar não restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.

Voltamos, aqui, à necessidade de “ajuste de conduta” destacada na sinopse do episódio, questão amplamente explorada não apenas em relação a sua “saída da favela” para o mainstream, mas também em relação ao ajuste de seu corpo, o corpo da “Eva”, o corpo colonial, que segundo Gomes e Gastal (2015, p. 210), “é, sobretudo, visto como disponível” e, no documentário, é corpo a ser consumido. O episódio acompanha um pouco do trabalho de Thamy: “Assim como as extensões de cabelo e unha, tem seu físico, que para funkeiras é basicamente grandes bundas e grandes pernas. (…) Todas as rotinas de dança para os shows de Thamy são projetadas para exibir seu corpo perfeito de funkeira. Para você, todo esse tremor de bunda pode parecer um pouco monótono, mas se você é jovem e é das favelas, esse é o estilo” – falas que colocam também o estilo musical restrito a uma certa idade e a determinada localidade. Cenas de Thamy na academia, fazendo musculação e dança, são exibidas, em enquadramentos específicos em suas nádegas.

O episódio também acompanha Thamy quando vai correr na praia “porque fortalece pernas, bumbum, tudo”. Ela mostra sua marquinha de biquíni, dizendo que “os homens acham sexy, os homens ficam loucos”, enquanto a câmera filma em close up sua virilha e seios. E pergunta para seu treinador, que reitera: “é o que os homens mais veem, bumbum grande, bronzeado, peitão e sensualidade”, construindo um ideal de “beleza brasileira”. Imagens do corpo de Thamy dos pés à cabeça são exibidas enquanto a narração diz: “Vocês homens podem ter percebido os benefícios da Brazilian wax[3], mas Thamy vai muito além com o gerenciamento de seus pelos corporais”, destacando que ela faz clareamento dos pelos de todo o corpo. Essas passagens reiteram o imaginário da perfeição física destacado por Amâncio (2000), do corpo como atrativo sexual disponível no paraíso idílico, a praia, construindo Thamy como uma “Eva” e a “brasilidade” como uma “infância da humanidade”. Algumas fãs abordam a funkeira durante o treino e a narração pressupõe que sejam moradoras da favela ao dizer que ela é desconhecida fora das favelas, mas que é uma estrela entre as jovens moradoras dos morros. Nessa passagem, não é possível saber se elas foram questionadas pela produção sobre o lugar onde moram, mas também poderíamos inferir que, no imaginário estrangeiro, jovens negras pertencem à favela, especialmente considerando que, em outras partes do documentário, quando se fala em turistas, apenas pessoas brancas são exibidas.

A “engenhosidade” de Thamy (em referência ao título do episódio) se dá em sua “habilidade” de se adequar a um suposto “esperado” para que ela faça sucesso fora das favelas – e, nessa ideia, o ideal de que o sucesso é atingido apenas quando se está no mainstream, mesmo que isso signifique “abrir mão” de certas características que compõem o imaginário do funk nas favelas – e, talvez, de parte de sua identidade de funkeira (que ela reconhece como tal, conforme destaca em uma de suas falas com a mãe). As novas identidades “docilizam” o corpo de Thamy e sua música – assim como sua mãe, que busca claramente estabelecer um controle sobre a personagem. Vendedora de café e sanduíches em uma estação de ônibus, ela é clara ao dizer que não gosta da música, do ritmo, da dança, das roupas, pois acha tudo muito apelativo, e encerra dizendo que na idade da Thamires ela já tinha dois filhos – reiterando seus imaginários sobre uma suposta “função” da mulher na sociedade, a de procriar e a de ser responsável pelo cuidado da família.

Michel Foucault (1999) destaca a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder durante a época clássica, que gerou grande atenção dedicada ao corpo. Segundo o autor, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1999, p.172). Qualquer sociedade impõe limites, proibições ou obrigações ao corpo, estabelecendo poder sobre ele, mas o poder disciplinar que se estabelece sobre o corpo fabrica corpos submissos, “dóceis”, sendo a domesticidade “uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu ‘capricho’” (FOUCAULT, 1999, p. 172).

Thamy vê seu corpo como “capital”, como instrumento e veículo de ascensão em seu trabalho e como estilo de vida, tal como Valesca Popozuda e outras funkeiras (CAETANO, 2015). Sua mãe, no entanto, tenta domesticá-lo, discipliná-lo, submetê-lo ao seu controle. O episódio o transforma em ativo intangível da marca-cidade, disponibilizando-o para consumo mediado pela tela. O corpo de Thamy é um corpo em disputa.

A docilização do corpo de Thamy passa, ainda, por sua adequação ao mercado: “você tem que ser duro nos negócios. Você tem que ver o caminho que o vento está soprando e agir de acordo. Thamy tem trabalho a fazer se ela quer chegar ao mainstream. Ela gravou uma música com letra mais leve e hoje está filmando o clipe”. Em uma das cenas, veste short e blusa tomara-que-caia; na cena seguinte, três dançarinas de costas, enquanto as imagens evidenciam as nádegas – uma dualidade entre o “ajuste” e o consumo do corpo. “Há muito caminho a percorrer até o sucesso e Thamy está dando tudo de si”. Imagens da funkeira cansada e frustrada durante a gravação são exibidas.

O episódio finaliza com o triunfo da personagem. A narração destaca que Thamy teve muito sucesso no lançamento de seu clipe e que ganhou o apoio de sua mãe após uma visita à avó. O sucesso “corrobora” a ideia do “mérito” pelo esforço da personagem, sua “coragem vista como virtude” para “perseguir seu sonho”, nos termos da narração, no processo de se enquadrar no que era esperado pelo mainstream. Não se trata, aqui, de criticar as decisões da personagem; trata-se, no entanto, de questionar a naturalização do processo de docilização do corpo como única forma possível de atingir o sucesso, assim como de criticar a noção estabelecida sobre o que é sucesso, e que ele necessariamente estará na mídia, fora das favelas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências:

AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.

CAETANO, Mariana Gomes. My pussy é o poder: representação feminina através do funk – identidade, feminismo e indústria cultural. Dissertação (Mestrado em Cultura e Territorialidades) – Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

FREITAS, Ricardo Ferreira; GOTARDO, Ana Teresa; SANT’ANNA, Cristina Nunes de.  Ativos intangíveis na marca rio: o consumo turístico da cidade nos documentários internacionais. In: ENCONTRO DA COMPÓS, XXIV, 2015, Brasília, 2015. Anais… Brasília: Compós, 2015.

GOMES, Mariana Selister; GASTAL, Susana. Evas e Marias no turismo do Brasil: o corpo como atrativo turístico e signo de hospitalidade. In: SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira (Org.). A construção social das emoções: corpo e produção de sentidos na comunicação. Porto Alegre, RS: Sulina, 2015.

GOTARDO, Ana Teresa. Rio para gringo: a construção de sentidos sobre o carioca e a cidade para consumo turístico. 2016. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

 

Notas de fim:

[1] Conforme destacam Gomes e Gastal (2015, p. 211), militantes do movimento feminista negro “criticam e buscam desconstruir o estereótipo da mulata, segundo o qual mulheres negras são entendidas como responsáveis pela sedução de homens brancos e, assim, pela fundação da nação mestiça ou da civilização luso-tropical. A denúncia do feminismo negro refere-se à ideologia da mestiçagem, vinculada à construção discursiva da hipersexualidade das mulheres negras, que oculta a opressão e a violência sexual que sofreram as mulheres negras escravizadas”.

[2] Essa fala pode estar ligada à música “A porra da buceta é minha”, interpretada pela Gaiola das Popozudas.

[3] Brazilian wax é o nome dado em inglês à remoção completa dos pelos da virilha, vagina e ânus.

O gênero nos documentários internacionais sobre o Rio de Janeiro: a disputa pelo corpo feminino em Welcome to Rio