Por Tetê Mattos| Agosto/2018

Nas últimas décadas estamos assistindo a uma proliferação no número de festivais audiovisuais. Este fenômeno, de caráter internacional, atribui aos festivais uma forte importância na contemporaneidade devido à repercussão que estes eventos exercem no imaginário das sociedades. Se buscarmos definir o papel destes eventos, iremos perceber que para além da função artística, alguns festivais apresentam funções voltadas para o marketing urbano e importante papel na promoção do turismo das cidades.

O nosso objetivo é buscar compreender como se estabelece o casamento entre os festivais de cinema e as cidades, isto é, como a dimensão urbana pode ser uma chave de compreensão e interpretação dos festivais de cinema na contemporaneidade.

Fonte: Estech EAD

Desde os primórdios da história dos festivais de cinema iremos observar que questões ligadas ao território sempre estiveram presentes. Assim como Ricardo Freitas afirma que os megaeventos são desdobramentos das Exposições Universais do século XIX, a mesma relação foi atribuída aos festivais de cinema internacionais. Marijke De Valck afirma que estes eventos surgem como extensões das exposições universais, não só por estas serem espaços de exibição de suas novidades e invenções, mas também devido ao orgulho nacionalista, “nas quais as nações podiam se apresentar como órgãos unificados, claramente distintos de outras nações”. (DE VALCK, 2007, p.215). Assim foram criados os Festivais de Veneza 1932) , de Cannes (1946) e de Berlim (1951).

Se os festivais de cinema internacionais surgiram e se mantiveram atrelados às questões referentes aos objetivos e exibições nacionais, nas últimas décadas observamos um outro contexto não mais pautado nos objetivos da nação, mas sim inserido na lógica das cidades globais.

Thomas Elsaesser em Film Festival Networks irá desenvolver importante reflexão acerca dos festivais internacionais de cinema, considerados pelo autor como uma “força-chave” para o funcionamento da indústria cinematográfica. Devido ao seu grande alcance, e pela manutenção de elementos relativos à cultura cinematográfica como autoria, produção, exibição, reconhecimento cultural, Elsaesser parte da ideia de que os festivais de cinema devem ser vistos como uma “rede” alternativa de exibição e distribuição do cinema mundial para além do cinema hollywoodiano”. (ELSAESSER, 2005)

A ideia de um “circuito de festivais” caracterizado como uma “rede global” está presente nas reflexões do autor. Para Elsaesser esta “rede” é vista como um sistema complexo com seus pontos nodais, fluxos e intercâmbios. Este sistema, autônomo, interconectado e global, é caracterizado por extensões geográficas espaciais (locais onde os eventos são realizados), e por extensões temporais (calendário fixo dos eventos que são realizados ao longo do ano, e se interconectam para que não tenham as suas agendas sobrepostas).

Fonte: Sobral Online.

Neste sentido, o ensaio de Julien Stringer é fundamental para o pensamento contemporâneo dos festivais. O autor irá defender a necessidade de um deslocamento de olhar para o estudo do circuito de festivais. Para ele o que importa não é mais compreender os festivais como locais de exibição de uma cinematografia nacional ou de objetivos dos estados-nação. Mas também compreendê-los a partir das conexões simbólicas que estes eventos estabelecem com um senso de lugar e de identidade extranacionais. Em outras palavras, Stringer vai salientar a importância do espaço nas relações de poder dos festivais de cinema e entre estes festivais. Para ele os eventos fazem parte de uma economia de espaço global.

Como vimos anteriormente, na era da economia global as cidades entram em concorrência umas com as outras na disputa por recursos globais. Stringer aponta que a “aura” que existia anteriormente entre os festivais de cinema se evaporou, na medida em a partir dos anos de 1980 ocorre uma enorme proliferação de eventos. Isto se dá na medida em que as cidades necessitam criar uma “aura” de excepcionalidade e singularidade, algo que as diferencie umas das outras, e as torne atrativas para os recursos globais. Para não ficarem fora do jogo econômico global, as cidades criam os seus próprios eventos. (STRINGER, 2001, p. 137)

Para que os festivais de cinema possam concorrer inseridos nesta lógica da economia global, eles farão uso, segundo Stringer, de duas estratégias. Uma delas refere-se às questões do “global” e do “local”. Com a globalização, as diferenças entre os festivais tendem a se apagar. Os festivais precisam ser similares uns com os outros. Mas ao mesmo tempo em que há uma necessidade de semelhança, a novidade também é uma vantagem para estes eventos. Assim, “o local e o “particular” se tornam muito valiosos. Os festivais de cinema oferecem ao mesmo tempo a similaridade conceitual e a diferença cultural”. (Stringer, 2001, p. 139, apud DE VALCK, 2007, 232)

Desta forma, os festivais farão uso da sua própria localidade e dos atrativos que ela oferece como elementos de distinção e valoração destes eventos. Só para citarmos alguns exemplos: o Festival de Cannes e a Riviera francesa, o Festival de Veneza e a cidade-museu, a Mostra de Cinema de Tiradentes e a cidade colonial, o Festival do Rio e a cidade maravilhosa.

Outra estratégia apontada por Stringer refere-se à necessidade destes eventos criarem as suas próprias imagens através das ações de marketing que irão assegurar uma imagem positiva do festival: uma marca específica –brand image.  Neste sentido há uma fusão entre a imagem do próprio festival e a autoimagem da cidade onde o evento é realizado. Stringer denomina esta característica de “festival image”:

O que muitos festivais vendem [market] de fato hoje não é somente “imagens narrativas”, mas a própria “imagem de festival” da cidade, suas próprias auto-percepções do lugar que ocupam dentro da economia global, sobretudo em relação a outras cidades e festivais (Op. cit, p. 140).

Uma das formas dos eventos que estabelecem a “imagem de festival” como uma característica constitutiva das cidades globais pode ser a construção de uma identidade (local) da cidade em torno da cinefilia.   A cidade de Cannes ilustra bem a construção da identidade do local em torno do Festival de Cinema: as cabines telefônicas da cidade em formato de rolo de filme comprovam a íntima ligação com o cinema. Jérôme Segal  afirma que o Festival de Cannes tornou-se mais importante do que a própria cidade. (SEGAL, 2011, P.41)

Fonte: Alto Astral.

Outra forma apontada por Stringer refere-se ao fato mais óbvio da ligação dos festivais de cinema com o turismo, impulsionando assim a economia destas cidades. Exemplos não faltam: no continente europeu, os Festivais de Cannes e de Veneza; na América do Sul, a Mostra de Cinema de Tiradentes, o Festival de Gramado, no Brasil; Festival Internacional de Cine de Cartagena de Indias, na Colombia, Festival Internacional de Cine de Punta del Leste, no Uruguai, entre tantos outros.

Pensar em cidades, assim como em cultura é pensar em movimentos, em fluxos, em dinâmicas, em articulações. Pensar em cidades é pensar em comunicação, em discursos, em significados, em construção de sentidos. Pensar em cidades é pensar em repertório de símbolos. Inseridos nesta lógica estão os festivais de cinema.

 

Referências:

BENJAMIN, Walter. “Paris, capital do século XIX”. In: KOTHE, Flávio R. Walter Benjamin – Sociologia. São Paulo: Ática, 1991. p.30-43.

DE VALCK, Marijke. “As várias faces dos festivais de cinema europeus”. In: MELEIRO, Alessandra. (org.) Cinema no mundo – indústria, política e mercado. São Paulo: Escrituras Editora, 2007. (coleção Cinema no Mundo, v.5)

__________.  Film Festivals: From European Geopolitics to Global Cinephilia. Amsterdam: Amsterdam Univ. Press. 2007.

ELSAESSER, Thomas. “Film Festival Network: The New Topographies of Cinema in Europe”. In: European Cinema: Face to Face with Hollywood. Amsterdam: Amesterdam University Press, 2005. P. 82-107.

FREITAS, Ricardo Ferreira. “Rio de Janeiro, lugar de eventos: das exposições do início do século XX aos megaeventos contemporâneos”. In: Trabalho apresentado na XX Compós, Porto Alegre, 2011.

HARBORD, Janet. “Film festivals: media events and spaces of flow”. In: Film Cultures. London: Sage Publications, 2002. p.59-75.

SEGAL, Jérôme. “International Film Festivals in European Cities: Win-Win Situations?” European Arts Festivals: Strengthening Cultural Diversity. Ed. Liana Giorgi. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2011. pp. 37–45.

STRINGER, Julian. “Global cities and the international film festival economy”. In: SHIEL, Mark; FITZMAURICE, Tony (ed.). Cinema and the city: film and urbain societies in a global context. Oxford: Blackwell Publishers, 2001, p.134-144.

Festivais de Cinema e as Cidades