Por Gabriel Neiva| Julho/2018

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Fonte: Globo.com

Os estudos sobre a cidade continuam a ocupar posição central no campo das ciências comunicacionais, como é observado nos textos diversos associados a este laboratório, o Lacon. Neste sentido, em consonância com as incessantes mudanças tecnológicas e materiais nos últimos anos, torna-se cabal se afastar de interpretações que concebem o espaço urbano como um ambiente homogêneo e monolítico. Desta forma, o conceito de heterotopia engendra uma diferente espacialização das experiências urbanas, salientando principalmente modos de vivências antes silenciados e apagados. Assim, a partir da década de 1960 dois pensadores franceses, Michel Foucault e Henri Lefebvre, ajudaram a capitanear distintas e importantes contribuições sobre esse mesmo conceito.

Em duas conferências realizadas em 1966, Michel Foucault (2013) refletiu sobre as conexões entre a posição da subjetividade corporal e a sua relação com o espaço circundante. Utilizando uma linguagem acessível, próxima às narrativas orais e, ao mesmo tempo, atento às novas possibilidades do campo da arquitetura e urbanismo, algo que já se tornara mais evidente no livro daquele mesmo ano, As palavras e as coisas, Foucault elegeu o conceito de heterotopia para compreender alguns lugares que fogem do “senso comum”, lócus que são a “contestação de todos os outros espaços” (FOUCAULT, 2013, p. 28).

Foucault almejava fundar uma “heterotopologia”, ciência dedicada a estudar esses outros espaços. Para o pensador francês, as heterotopias estão presentes em todas as sociedades e se configuram como territórios que podem desvelar usos diversos daquele mesmo ambiente, como são os casos dos cemitérios e jardins públicos. Além disso, as heterotopias têm também um caráter de passagem, possivelmente de “entrada e saída”, remetendo a atos de iniciação ou de purificação, como as saunas escandinavas e os “banhos turcos”, usualmente associados à cultura muçulmana.

Fonte: Agenda Alla Turca

Muitas dessas heterotopias estão conectadas às chamadas heterocronias, associando o espaço a uma temporalidade específica. Foucault observou tais vinculações em espaços como as bibliotecas e museus, cuja configuração de objetos tende a “acumular ao infinito” e em espaços efêmeros como nas grandes aglomerações de feiras, festas e férias.

Por fim, Foucault também entende que as heterotopias comprovam a centralidade do espaço na sua experiência cotidiana e, principalmente, no meio urbano. A cidade se configura e reconfigura como um território privilegiado desses outros espaços, no qual um mesmo pedaço de rua pode ser ocupado em suas múltiplas possibilidades de compartilhar ou disputar a experiência do comum. Com isso, mobiliza-se um quase infinito leque de possibilidade de desdobramento de heterotopias em uma mesma metrópole.

Henri Lefebvre (1991), autor contemporâneo a Foucault, também utilizou o conceito de “heterotopia” nos estudos sobre as lógicas dos meios urbanos. Ao mesmo tempo em que procedia por realizar uma interpretação heterodoxa da obra de Marx, Henri Lefebvre utilizou a tradicional categoria marxista “modo de produção” para compreender as mudanças do espaço urbano, sendo o espaço produzido uma extensão das lutas de classe.

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Fonte: saraiva.com

Ainda sob inspiração do pensamento marxista, Lefebvre propõe uma diferente abordagem conceitual: os espaços heterotópicos são principalmente arenas de disputas sobre o “direito à cidade”, em que a participação pública acaba por contradizer os interesses de reprodução do grande capital. Assim, a cidade cria seus espaços de resistência, mobilizando-se contra a mercantilização da vida.

Já no presente século XIX, o geógrafo e urbanista David Harvey (2014) recuperou a interpretação de heterotopia de Lefebvre como uma tomada de alguns espaços com o intuito de realizar “algo diferente”, ainda que efêmero, com potencial revolucionário ou não, mas constituindo uma força heterogênea que escapa dos planejamentos institucionais e da economia de mercado. Neste sentido, Harvey aponta para a eludicação das chamadas “cidades rebeldes”, espaços heterotópicos em tempos dos espaços urbanos globalizados e “gentrificados[1]”.

Propõe-se, aqui, as junções e a problematização dessas duas conceituações de heterotopia. Sabe-se que Foucault e Lefebvre (e por extensão, Harvey) são pensadores de filiação e objetivos distintos; porém, ao descreverem a cidade como força centrífuga de espaço para além da narrativa hegemônica, mobiliza-se a possibilidade da constituição de discursos e práticas socioespaciais que vão além das forças econômicas e politicamente hegemônicas.

Assim, as heterotopias comprovam a centralidade do espaço na sua experiência cotidiana e, principalmente, no meio urbano. A cidade se configura e reconfigura como um território privilegiado desses outros espaços, no qual um mesmo pedaço de rua pode ser ocupado em suas múltiplas possibilidades de compartilhar ou disputar a experiência do comum, ou mesmo, conforme Michel Maffesoli (1987), modalidades de um “estar junto”. Com isso, mobiliza-se um quase infinito leque de possibilidade de desdobramento de heterotopias na atual produção dos estudos do campo comunicacional.

 

Referências:

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo, N-1 Edições, 2013.

HARVEY, David.  A visão de Henri Lefebrve. In: Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell Publishing, 1991.

MAFFESOLI, Michel. Ética da estética. In: O mistério da Conjunção. Porto Alegre: Sulinas, 2009.

SMITH, Neil. From gentrification to the revanchist city. In: The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. Nova Iorque: Routledge, 1996.

[1] De acordo com o geógrafo Neil Smith (1996), gentrificação pode ser definido como um processo de valorização e especulação imobiliária, de certas áreas de uma cidade. Usualmente capitaneada por grupos de jovens artistas e empresários, pode ser complementada pela aplicação de medidas higienistas pelo poder público, vide o projeto de “expulsão dos pobres” de Nova Iorque, aplicado nas gestões do prefeito Rudolph Giuliani (1994-2000).

Sobre o conceito de Heterotopia