Victoria Boiteux e Jorgiana Brennand | Novembro 2020

O Rio de Janeiro encontra um lugar significativo no imaginário popular. O samba, a praia e a boemia ajudam a construir um discurso atrativo aos olhares turísticos. Não precisa pisar no Rio para entender que a “cidade de encantos mil” é simpática, cheia de charme e muito bonita. É o Rio do povo alegre, das festas, do Réveillon, do Carnaval, de Ipanema e de Copacabana, “síntese do país e meca turística, a princesinha do mar cantada e decantada em verso e prosa pelos compositores Braguinha e Alberto Ribeiro” (MELLO, 2008, p. 176).

Mas, se um dia pisar na “cidade maravilhosa”, vai entender que o Rio é muito mais do que as referências da Zona Sul da cidade, área nobre, símbolo da riqueza e da sensualidade. A cidade é mais do que as representações que, de tão insistentes nas publicidades e obras de ficção, confundem-se com as do Brasil e acabaram absorvidas pela identidade nacional. O Rio é muito mais do que esse “rostinho bonito”. A cidade é, na verdade, uma mistura de Funk e Bossa Nova; uísque e chope; asfalto e morro.

A dicotomia carioca é extensa, e muitas vezes, pode ser traduzida em cenários de desigualdade e contradição: o Rio é lindo, mas também, sabe ser feio. É difícil encontrar beleza numa cidade que mata 78% de negros e pardos por intervenção policial. É difícil achar charmoso um lugar, cuja taxa de feminicídio sobre mulheres cariocas aumentou mais de 300% nos últimos anos (2016-2018). É difícil sentir encanto quando a corrupção política do Rio resultou num prejuízo de R$ 1,5 bilhão ao estado. Manchetes como essas contradizem a tal “cidade maravilhosa”, no entanto, não o suficiente para mudar o seu apelido.

A narrativa da “cidade de encantos mil” traz o morador do Rio como seu protagonista. Os cariocas, como diria Adriana Calcanhoto, são bonitos, dourados, modernos, diretos e não gostam de dias nublados. Os estudos de Santos e Velloso (2012) completam a descrição da artista, acrescentando que os moradores da cidade são despojados, descontraídos e informais, cheios de bossa, que inspiram artistas e turistas, conforme descrito por Abreu (2000):

O carioca é um ser que vem sendo inventado de formas variadas há quase cinco séculos. ‘Ser carioca’ é, portanto, uma fórmula que admite uma pluralidade de significados que variam com fatores como tempo, lugar e também de acordo com a posição, a trajetória e os objetivos daqueles que acionam essa categoria (ibid, p. 168).

Considerado o homem típico de Ipanema nas antigas enquetes de O Globo e do Jornal Brasil, Vinícius de Moraes incorporou o espírito da cidade nas suas canções e arranjos musicais. Hoje, no entanto, algumas das suas poesias são criticadas pelo teor machista e retrógrado sobre a figura feminina. O retrato sofrido, vítima de uma sensibilidade frágil, e sem personalidade, desperta críticas e questionamentos sobre o papel da mulher na sociedade. Entende-se, através desses levantamentos, que muitos artistas em suas canções reduziam a figura feminina à beleza, ao corpo e ao sentimento, limitando-a a exercer uma única função social: a de ser apenas a sua musa inspiradora.

Toquinho, em uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo, em 2019, afirmou que a “Garota de Ipanema hoje seria execrada”. De fato. Por mais que o sentimento dos artistas tenha sido platônico, como já́ afirmou Helô Pinheiro, não deixa de ser inusitado às novas gerações, dois homens admirando o corpo dourado e o balançado de uma garota a caminho do mar.

Com essas evidências musicais, questiona-se: numa sociedade, cujos papéis sociais são alvo de contínua desconstrução, Vinícius de Moraes e sua turma ainda são válidos para representar o típico carioca? Ou será́ que a figura masculina também está sendo repensada?

Descontruir esse imaginário exige ainda refletir sobre a identidade das moradoras da cidade. Vítimas de clichês, o discurso sobre o feminino é fabricado à base da exploração do corpo, da estética e da sensualidade carioca. O imaginário da garota do Rio absorve características singulares das antigas musas da cidade: a irreverência de Leila Diniz; o atrevimento de Laura Alvim; e a beleza de Helô Pinheiro.

Essas musas, apesar de diferentes personalidades, compartilham das mesmas semelhanças: são mulheres brancas, magras e moradoras de bairros nobres. Percebe-se, portanto, que o recorte sobre a garota carioca, além de elitista, é conservador, pois anula a pluralidade das moradoras do Rio.

Zezé Mota, por exemplo, nunca entrou nesse imaginário da zona sul. A artista negra renomada, e moradora de Ipanema, afirmou numa entrevista à escritora Sandra Almada, em 1995, que tinha crises de identidade e autoestima por causa da cor da pele. Zezé queria “embranquecer”: afinar o nariz, usar lentes de contato verdes e sempre colocar uma peruca Chanel. A frustração por estar longe dos padrões de beleza da época era intensa, afinal, como ela mesmo disse na entrevista: “A Garota de Ipanema nunca foi negra”.

Léa Garcia, que apesar da sua enorme influência na mídia, também nunca fez parte do imaginário da garota carioca. A atriz, moradora de Botafogo, é caracterizada pela sua coragem, intensidade e inteligência: uma mulher que expressa suas verdades e militância política. Léa sempre entendeu (e criticou) que a mídia brasileira reverbera um padrão de beleza e comportamento, cuja figura negra não faz parte. Na TV, como ela mesma disse: “o padrão é Xuxa” (ALMADA, 1995).

A moda como fenômeno sociocultural acompanha esse imaginário sobre a mulher do Rio, materializando através do vestuário, a sensualidade e estilo da região. A marca FARM, por exemplo, é conhecida por seu caso de amor com a cidade maravilhosa. A grife se apropria dos clichês da carioca na sua comunicação, reverberando um discurso utópico e elitista sobre quem seria a garota carioca.

Como fonte simbólica, a publicidade, mais do que reforçar a identidade de uma marca, transmite significados por meio de mensagens sedutoras aos consumidores (MIRANDA, 2008). Nesse sentido, observa-se na moda representada pela FARM, a propagação de um imaginário feminino carioca pautado na antiga garota de Ipanema descrita por Vinícius de Moraes.

Ao invés de explorar o empoderamento e a independência da carioca, a publicidade da marca reforça velhos clichês femininos, instaurando um padrão de beleza e de comportamento utópico às moradoras da cidade. Sob o olhar da marca, a garota do Rio é mais “pé na areia”, e menos “salto alto”. Menos maquiagem e mais bronzeado. Ela deixa o cabelo secar ao vento depois de um belo mergulho no mar de Ipanema. Não gosta de dias nublados, e é colorida pelo sol, privilegiando mais uma vez a figura da garota “de corpo dourado a caminho do mar”. A FARM acaba explorando o Rio estereotipado da zona sul .

Com peças caras e inacessíveis à grande parte das cariocas, a empresa vive uma contradição: como representar a moradora da cidade, se nem todas conseguem vestir suas roupas? O uniforme para se viver como uma típica garota do Rio não chega em toda a cidade, que é plural, assim como as suas moradoras.

Não há um único perfil de garota carioca. Elas são diversas e, muitas vezes, antagônicas como o Rio, conhecido como a cidade da beleza e também do caos. E os dois se combinam por meio de uma sobreposição de melodias e harmonias, sons e ruídos, vozes e olhares que se cruzam, se encontram e se fundem (CANEVACCI, 2004). As garotas são também reflexo dessa multiplicidade, que infelizmente não aparece retratada na publicidade da FARM. Afinal, aqui nem todas as cariocas possuem o privilégio de pisar na areia, ou de retocar o bronzeado, nos finais de semana.

 

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Victoria Boiteux é estudante de Publicidade e Propaganda do Ibmec/RJ. E-mail: <vicboiteux@gmail.com>.

Jorgiana Brennand é doutoranda no PPGCom da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora dos cursos de Comunicação do Ibmec/RJ. E-mail: <jorgianabrennand@uol.com.br>.

 

Referências:

ABREU, Regina. A capital contaminada: a construção da identidade nacional pela negação do “espírito carioca”. In: LOPES, Antônio Herculano (Org.). Entre Europa e África: a invenção do carioca. Rio de Janeiro: TOPBOOKS (Edições Casa de Rui Barbosa), 2000.

ALMADA, Sandra. Damas negras: sucesso, lutas e discriminação. Rio de Janeiro, Mauad, 1995.

CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da  comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.

MELLO, João Baptista Ferreira de. O Rio dos símbolos oficiais e vernaculares. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs). Espaço e Cultura: pluralidade temática. Rio de Janeiro: ed. UERJ, 2008.

MIRANDA, Ana Paula de. Consumo de moda: a relação pessoa-objeto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008.

SANTOS, Elizete; VELOSO, Letícia. Consumo e sociabilidade na construção do imaginário carioca. In: BARBOSA, Lívia; PORTILHO, Fátima; VELOSO, Letícia. (orgs). Consumo: cosmologias e sociabilidades. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

 

Garota carioca e imaginário feminino sob o olhar da marca FARM