Por Flávia Mello | Fevereiro/2019

Na contemporaneidade, em que a lógica do mercado tem dominado as teorias e práticas do planejamento urbano, observa-se que a produção de legados – tangíveis e intangíveis– tem se apresentado como argumento legitimador para a corrida das cidades aos megaeventos, especialmente os esportivos. Consequentemente, a realização de projetos como o Porto Maravilha, que em quase nada atendem às necessidades da massa, não encontrariam respaldo para execução, em tão curto espaço de tempo, se não estivessem ancorados pelo discurso do legado (OLIVEIRA, 2016). No entanto, para além de uma justificativa necessária à legitimação das transformações urbanas, o megaevento se tornou o catalisador dos investimentos essenciais a sua própria realização.

Fazendo um paralelo com a Exposição Internacional de 1922 que, para Jaguaribe (2011), pode ser entendida como marco simbólico de “entrada” do Rio na modernidade, os Jogos Olímpicos de 2016 podem ser percebidos como o marco da “entrada” do Rio no mundo competitivo das cidades globais. Como aponta Muniz Sodré, o megaevento não é propriamente uma ‘festa’ no sentido de troca fundacional ou de expressão do querer viver em comum, mas um esquema operativo a serviço de grandes corporações, destinado a reconfigurar o espaço urbano e projetar a sua imagem em termos de atratividade econômica” (SODRÉ apud FREITAS et al, 2016, p. 17).

Citando Butt (2010), Freitas, Lins e Santos (2016) destacam que os megaeventos precisam fazer parte de um projeto a longo prazo para a cidade/país sede, pois “não há soluções rápidas” e “as consequências podem se prolongar por muito tempo, ou seja, os megaeventos não tem o poder de mudar a realidade se não fizerem parte de um projeto amplo de reformas urbanas sociais” (2016, p. 25). Com efeito, não é o que tem se observado como regra, uma vez que o caráter, não raro, efêmero das intervenções urbanas realizadas, com altos custos, produzem espaços, por vezes, sem fins precisos para o pós-evento, e deixam como herança os chamados “impactos” ou “legados negativos” – “os custos sociais, econômicos, políticos, ambientais e culturais relacionados aos eventos” (OLIVEIRA, 2016, p. 105).

Com efeito, é inegável que os megaeventos esportivos configuram-se tanto em vitrine midiática quanto em catalisadores para a reestruturação física e econômica da cidade sede. No entanto, cabe refletir criticamente sobre o papel assumido pelo tema dos legados e seus efeitos generalizadores, sobretudo porque tem sido a retórica legitimadora de estratégias que impactam tanto na dimensão material quanto na dimensão social e simbólica dos espaços urbanos. Encontrar quase 250 repetições da palavra “legado” nas 300 páginas do dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro aos Jogos Olímpicos de 2016 é, no mínimo, significativo (OLIVEIRA, 2016, p. 101).

Analisando os documentos que estabelecem as informações e exigências para as cidades candidatas a sediar Jogos Olímpicos, Oliveira (2016) identifica, desde 1955, a presença da ideia de legado. Apesar de a palavra “legado” ainda não ser utilizada, sua menção fica clara “numa redação que se refere aos ‘incalculáveis benefícios intangíveis’ proporcionados pelos eventos para as atuais e sucessivas gerações” (idem, 2016, p. 108).

Mas, foi em julho de 2003, na Carta Olímpica, documento que dita as regras do movimento olímpico e funciona como estatuto para o COI (Comitê Olímpico Internacional), que a ideia de legado aparece claramente. Oliveira (2016) explica que esse novo papel atribuído à entidade – de promotor do “legado” – se deu a partir de 2001, quando o COI passou a se preocupar com o fato de que as cidades começassem a desistir de disputar o evento em função dos altos custos da competição. A entidade criou, então, uma comissão, formada por quarenta “experts”, que – como ela mesma apontou na introdução do relatório final, com 117 recomendações sobre gestão dos jogos olímpicos -, se viu desafiada por um grande paradoxo: “evitar para as cidades as despesas superiores às necessárias para uma boa organização dos Jogos Olímpicos, mas, ao mesmo tempo, manter seu caráter espetacular que, por sua vez, demanda custos organizacionais cada vez mais elevados” (OLIVEIRA, 2016, p. 111).

Em resumo, a recomendação da comissão foi de separar os custos operacionais do Comitê Organizador dos Jogos (COJO) – considerados custos reais – e os custos não-COJO, advindos de despesas outras, como instalações, infraestrutura e meio ambiente, por exemplo, que deixam de ser classificadas como custos do evento e passam a ser entendidas como legado. Desse modo, já na versão destinada aos jogos de 2012, o documento que orienta as cidades que concorrem à sede olímpica introduz a questão do “legado” de forma bem específica, através de um item denominado “Motivation, concept and legacy”, alçando o legado, então, ao status de decisor na escolha das cidades anfitriãs. Assim, como salienta Oliveira (2016, p. 114) os “custos dos jogos são, então, reduzidos a valores inferiores aos realmente investidos e o que antes era custo se converte, como mágica, em ganho.” Categoricamente, é na cidade-empresa (SANCHEZ, 2010; VAINER, 2000, 2012, 2016) que o COI encontra parceiros para o discurso do legado, uma vez que este não só viabiliza a produção do espetáculo como atende aos interesses de grandes corporações internacionais e de uma elite hegemônica representada pelos políticos locais.

O Porto Maravilha, o Parque Olímpico, em Jacarepaguá, as obras de mobilidade urbana, como a abertura de vias expressas para a implantação dos BRTs e VLT, que liga o Centro e a Região Portuária, entre outros, são, portanto, compromissos assumidos com a organização dos Jogos Olímpicos, fazendo parte, assim, do repertório discursivo dos legados. Percebe-se, dessa forma, que as reverberações dos megaeventos, como define Freitas (2011), os efeitos materiais e simbólicos que eles produzem e que são potencializados pelos esforços dos meios de comunicação (sejam eles institucionais ou não) servem ao branding da cidade.  Nesse sentido, os megaeventos, que na visão de Freitas, Lins e Santos (2016) materializam a utopia do lugar perfeito, do belo, do experiencial e do afetivo, amparam aos rituais de consumo da cidade e concretizam a cidade-mercadoria-marca.

A maquiagem realizada na cidade para receber os megaeventos não resistiu por muito tempo. Com efeito, um ano após o término das Olimpíadas, a mágica matemática do legado no Rio de Janeiro resultou negativa: surgem acusações de corrupção, endividamentos, explode uma crise financeira e de violência urbana que resultaram em argumentos para justificar uma intervenção militar, tal como se vive na cidade atualmente (FREITAS, GOTARDO e MELLO, 2018). Veículos de comunicação que, antes e durante os megaeventos, promoveram e propagandearam o legado, trazem à tona a realidade das mazelas sociais e da instabilidade que atinge a cidade, como em algumas matérias destacadas a seguir.

 

Figura 1 – Matéria de O Globo, de 15 de junho de 2017, Matutina, Esporte, p. 28

Fonte: Globo.com

 

Figura 2 – Matéria de O Globo, de 08 de setembro de 2017, Matutina, Rio, p. 6

Fonte: Globo.com

 

Figura 3 – “Um ano após a Olimpíada, o que ficou de legado para o Rio”, 04 de agosto de 2017, Rio

Fonte: Globo.com¹

 

As narrativas midiáticas da violência, que construíam uma atmosfera de medo ligado especialmente ao tráfico e à favela no Rio de Janeiro, nos anos de 2006 a 2008, e que foram revertidas em 2012, após vários esforços, governamentais e mercadológicos, (FREITAS, GOTAROD E SANT´ANNA, 2015), voltaram a colocar o projeto de cidade e sua marca em xeque. Assim, a “Cidade Maravilhosa”, oferecida ao consumo mundial pelo espetáculo, segue em busca de consensos para a sua imagem.

 

Referências:

OLIVEIRA, Nelma Gusmão de. Os megaeventos esportivos e a retórica do legado: uma operação contábil que se converte em discurso. In: Vainer, Carlos; Broudehoux, Ane Marie; Sanchéz, Fernanda; Oliveira, Fabrício Leal de (orgs). Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.

FREITAS, Ricardo Ferreira; GOTARDO, Ana Teresa; MELLO, Flávia Barroso de. A (Re)construção da “marca Rio”: medo, comunicação, megaeventos e suas estratégias sob uma perspectiva crítica. Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), 12 : 2018 : Goiânia, GO. Disponível <http://portal.abrapcorp.org.br/anais/> Acesso em: 07 de dezembro de 2018.

FREITAS, R.F.; LINS, F.; DOS SANTOS, M.H.C. Megaeventos, comunicação e cidade. Curitiba: CRV, 2016.

SANCHEZ, F. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó, SC: Argos, 2010.

VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: Arantes, Otília; Vainer, Carlos; Maricato, Ermínia (orgs). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: Coleção Tinta Vermelha, edição on-line.  Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Carta Maior e Boi Tempo Editorial:  2013.

VAINER, Carlos. Megaeventos, cidade de exceção e democracia direta do capital: reflexões a partir do Rio de Janeiro . In: Vainer, Carlos; Broudehoux, Ane Marie; Sanchéz, Fernanda; Oliveira, Fabrício Leal de (orgs). Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.

¹Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/um-ano-apos-olimpiada-que-ficou-de-legado-para-rio-21666449, acesso em nov. de 2017.

A matemática do legado nos Jogos Olímpicos de 2016