Por João Otávio*
O termo “woke” tem uma longa história nos Estados Unidos: cunhado no século XX,
popularizado no início do século XXI e distorcido nos anos recentes. A palavra pode
ser traduzida para o português como “acordou”, possui um significado profundo e
político, importante para o movimento negro estadunidense. Em meados dos anos
1960, ela serviu como modo de despertar um pensamento racialmente consciente,
no sentido de manter pessoas pretas alertas para desigualdades e enfrentamentos
do racismo, entendido atualmente como estrutural. Do mesmo modo, nos anos
2000, a cantora Erykah Badu disseminou a palavra por meio de sua música “Master
Teacher”, em seu quarto álbum de estúdio, New Amerykah Part One (4th World
War) (2008). Do refrão, a frase “I stay woke”, algo como “eu continuo acordado”,
seria adotada pelo movimento negro com um sentido similar ao original, reforçando
a ideia de afirmação e resistência ante as desigualdades ao redor.
Nos protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) em 2020,
“stay woke” foi usado como forma de alerta, para que a população negra
norte-americana mantivesse os olhos abertos para um sistema capaz de eliminá-la
sem escrúpulos, como feito com George Floyd. O termo gerou tanto impacto no
novo século que seu sentido original se expandiu para além de questões raciais,
abrangendo as lutas pelos direitos feministas e LGBTQIAPN+.
Tal significado, no entanto, perdurou até que movimentos conservadores de direita e
extrema-direita passaram a distorcer a ideia, atribuindo a ela um extremismo e
problematização demasiada, como a incersão de personagens negros em obras de
ficção ou campanhas publicitárias com maior diversidade sendo apontadas como
desnecessárias. O que era uma afirmação identitária e política ganhou conotação
de exagero, contribuindo para o esvaziamento de pautas importantes, como a
representatividade e a denúncia de preconceitos — o que nós, brasileiros, podemos
correlacionar com a ideia instaurada de “lacração”, “militância” ou “mimimi”,
comumente utilizada por pessoas conservadoras.
Essa visão antiprogressista é algo presente no Brasil e nos Estados Unidos,
apresentando o perigo de capturar jovens cujo pensamento ainda está em
formação. O risco da perpetuação de uma visão conservadora aflora ao pensarmos,
logicamente, no que será conservado dentro do estabelecido em nossa sociedade.
Mantendo uma análise política, podemos olhar para a realidade de quem mora nas
favelas e convive com crime, drogas, brutalidade e desassistência estatal. O Censo
de 2022 do IBGE aponta 72,9% da população como pessoas que se autodeclaram
pretas ou pardas. Desse grupo, 56,8% se declararam pardos e 16,1% pretos.Ainda
segundo o Censo de 2022, a população das favelas é mais jovem, com uma idade
média de 30 anos, 5 anos mais baixa do que a idade média da população do país,
de 35 anos. Embora cruel, pensar em quantos jovens negros e negras continuariam
morrendo nas favelas por conta de um quadro crônico de violência é importante
para irmos contra um viés anti-progressista.
Mas e se fosse diferente? E se ao invés de adolescentes marginalizados,
tivéssemos outra saída?
Zona Oeste, o berço do despertar
Foi na Favela do Aço, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, que alguns
adolescentes puderam acordar para o estado político de seus corpos a partir da
arte. O Instituto Levante Aço, projeto comunitário da Zona Oeste, promoveu um
laboratório criativo sobre memória local e a importância do afrofuturismo para a
população negra, onde trabalhou com moradores da Favela do Aço e adjacências,
entre quinze e vinte anos, e os inseriu no conceito a partir de oficinas artísticas. O
trabalho do laboratório culminou na exposição itinerante “Meu Afrofuturo”, levada a
diversas instituições educacionais do Rio, expondo 20 obras de nove jovens artistas
que nunca haviam experimentado a arte em sua vida.
Objeto de inspiração das obras, o afrofuturismo trata-se de um movimento cultural,
político e artístico negro, que por meios como literatura, música e filosofia, cultiva o
resgate de tecnologias ancestrais para a reimaginação do presente e construção de
um futuro afrocentrado. O exercício de apresentar a arte para jovens negros
favelados e os fazer produzi-la, pensando num futuro no qual não existam as
mazelas que os rodeiam, é essencialmente afrofuturista. O poder em subverter a
situação desses adolescentes, que nunca tiveram contato com a arte por viverem
em uma zona da cidade afastada de polos culturais, estruturalmente defasada e
sem incentivos como educação, saúde e lazer, os eleva ao nível de referência para
sua própria área, tornando-se para seus iguais aquilo que eles mesmos não tiveram.
Ao trabalhar com o conceito afrofuturo, despertando jovens para a sua realidade
social e racial, levando-os a produzir arte identitária e otimista, o Instituto Levante
Aço resgatou a intenção original do termo “woke”, proposto no século passado e
endossado por Erykah Badu em sua música “Master Teacher”.
“Everybody: I stay woke”
É curioso pensar em como o termo foi popularizado também pela arte, fazendo dele
um mantra. O álbum New Amerykah Part One (4th World War), 2008, marca o
primeiro trabalho considerado abertamente político de Badu, tratando de temas
como desigualdades, racismo e levantes revolucionários. Não à toa, é com o sample
² de “Freddie’s Dead”, de Curtis Mayfield’s — música que trata das vivências
marginalizadas nos Estados Unidos e reflexões sobre o real progresso social para o
gueto —, que “Master Teacher” tem sua primeira parte cantada com entonação firme
por Georgia Anne Muldrow, que faz sua participação especial na música.
Partindo da dificuldade de uma pessoa negra em imaginar sua existência digna, a
letra destaca o anseio do eu lírico por uma realidade pessoal e coletiva diferente.
“Eu ansiava por ficar acordado / Um mundo lindo que estou tentando encontrar /
Estive em busca de mim mesmo / Um mundo lindo é muito difícil para eu encontrar”.
Tal desejo otimista, ainda pautado pela dor, se reforça quando o refrão chega com
um questionamento, explanando o ressentimento que envolve a vivência negra em
um país racista: “E se não houvesse niggas¹, apenas professores mestres?”.
Em seguida, a frase “Eu permanecerei acordado” aparece para confirmar um
despertar racial, que antecede um chamado de resistência em meio à estrutura
opressora: “Mesmo que você passe por lutas e conflitos para manter uma vida
saudável, permanecerei acordado”.
A lírica evoca o poder de permanecer alerta para as dificuldades sociais e resistir
diante delas, o que nos faz compreender porque “woke” transformou-se num mantra
social. A música ainda estabelece uma dimensão de sonho e projeção futura, nos
fazendo questionar os crimes cometidos contra pessoas negras e imaginar um
mundo melhor para elas. E se não fôssemos mais estigmatizados, enquadrados
como “só mais um neguinho”, mas sim como professores mestres? E se nossas
vivências não fossem de criminalidade e violência, mas de educação e amor? E se
nossos jovens fossem apresentados à arte?
Nessa perspectiva, o Instituto Levante Aço não só permaneceu acordado, como
acordou outros jovens de sua área. A semelhança entre o viés apresentado na
música de Erykah Badu e o utilizado pelo instituto não é por acaso, pois os dois
estão dentro do espectro filosófico afrofuturista. O almejo de uma realidade
socialmente mais adequada, presente nas duas movimentações, concretiza um
importante pensamento já incluso na premissa do laboratório do Levante Aço: afinal,
qual a importância do afrofuturismo para a população negra?
Somos
Quadro “Somos” da exposição Meu Afrofuturo
Foto: LACON
Na obra “Somos”, pintura sobre tela da exposição Meu Afrofuturo, vemos uma
pessoa negra, com um volumoso cabelo crespo e verde — semelhante a plantas de
uma árvore — em frente ao espelho, enxergando seu reflexo adereçado de
acessórios dourados. O quadro do artista autointitulado Olsi Rava permite olhar para
a figura da pessoa negra empoderada, autoconfiante, denotando alguns dos pilares
do afrofuturismo, como o afrocentrismo, a autoestima e a autoprojeção futura.
O racismo estrutural trabalha na mente de pessoas negras para que elas se
depreciem, não aceitem seus traços e deixem de ter orgulho de sua identidade,
desejando até mesmo mudá-la, mas o fato de haver um indivíduo contrariando essa
noção, vendo sua beleza, transforma-se em um artifício de poder para combater
esse mecanismo.
A possibilidade em “Somos” do personagem estar enxergando um ancestral, uma
referência próxima ou uma projeção de seu próprio futuro, incorpora o sentimento
primordial que nos ajuda a responder o questionamento levantado: o afrofuturismo é
importante para que as pessoas negras tenham possibilidades. A possibilidade de
conhecer suas raízes passadas, de ter referenciais presentes, de se imaginar
poderosos, belos, talentosos, de se orgulhar de sua identidade.
Todas essas possibilidades foram e ainda são arrancadas da população negra, por
toda a vivência imposta a ela durante séculos de exploração. Uma vez que a falta
de incentivos culturais, educacionais que permitam a formação de uma sociedade
antirracista agrava mais esse cenário, levar o afrofuturismo para essa população
torna-se crucial para a sua formação identitária, de maneira que possa produzir
literatura, filosofia ou arte afrocentrada, quebrando um ciclo de violência e
perpetuando um novo ciclo de vida digna.
Notas:
¹: A expressão faz referência a forma historicamente racista com a qual chamam
pessoas negras nos Estados Unidos
²: O termo, no contexto musical, indica um trecho sonoro selecionado de uma
música, reutilizado em uma nova gravação, de forma remixada, cortada ou direta.
Referências:
The Origin Of Woke: William Melvin Kelley Is The ‘Woke’ Godfather We Never
Acknowledged
The Origin Of Woke: How Erykah Badu And Georgia Anne Muldrow Sparked The
“Stay Woke” Era
The Origin Of Woke: How The Death Of Woke Led To The Birth Of Cancel Culture
Censo 2022: Brasil tinha 16,4 milhões de pessoas morando em Favelas e
Comunidades Urbanas
Quase 90% dos mortos por policiais em 2023 eram negros, diz estudo
One Track Mind: Curtis Mayfield – “Freddie’s Dead” (1972)
Erykah Badu: New Amerykah Part One (4th World War) Album Review