11/02/2025 – Cristina Nunes de Sant’Anna*
O escritor irlandês Oscar Wilde morreu em 30 de novembro de 1900, em Paris. O autor de O Retrato de Dorian Gray ficara preso por dois anos na Inglaterra, condenado por sodomia, considerado então crime naquele país. Em maio de 1895, o escritor foi condenado a cumprir trabalhos forçados por cometer atos considerados imorais com vários rapazes. Entre eles, Alfred Douglas (1870-1945), apelidado Bosie, amante de Wilde.
O pai de Bosie, o Marquês de Queensberry, apresentou denúncia contra o dramaturgo no tribunal londrino. O processo levou Wilde à ruína, à perda da guarda dos filhos, ao pedido de divórcio da mulher e à troca de nomes das crianças, para serem resguardadas do que se tornou um escândalo.
Oscar Wilde escreveu, na prisão, uma longa carta a Bosie, em que fala do comportamento frio, egocêntrico e quase mau do jovem. Conforme o relato de Wilde, o amante raramente lhe escrevia ou visitava na prisão. A carta foi intitulada De Profundis, do latim, Das profundezas, as palavras iniciais da versão latina do Salmo 130, recitado nas cerimônias fúnebres e no ofício dos mortos.
A carta original foi entregue ao Museu de Londres por um amigo fiel de Wilde e as cópias chegaram a Bosie, que parece ter lido algumas páginas e rasgado o resto, achando que fossem os originais.
Se a prisão acabou com a saúde de Wilde, revigorou seu amor pela arte e pela literatura. Embora critique duramente o comportamento de Bosie, o prisioneiro nos lega uma canção de amor e sofrimento à paixão de Cristo, afirmando ser esta a mais perfeita e acabada obra para a arte e a literatura. Não. O livro não é um poema cristão tão somente. É também uma espécie de ode à Literatura, que Wilde considerava o seu culto: “Não é por nada, ou sem qualquer propósito, que no meu culto à literatura, a quem dediquei a minha vida inteira, eu tenho me tornado: ‘avaro do som e da sílaba, não menos que Midas de sua cunhagem’. A citação que Wilde nos deixa, de memória, em De Profundis, é do poeta londrino John Keats (1795-1821).
E, convenhamos: neste nosso século XXI, Oscar Wilde seria condenado, de novo. Não à prisão, talvez. Mas à execração pública, em meio às adversidades defendidas por uma extrema-direita que, em sua cruzada medieval, persegue os que não comungam de sua obscuridade. Extrema-direita que tem, como norma, a banalidade do mal, como escreveu um dia Hannah Arendt (1906-1975).
Sim. O genial Wilde seria certamente perseguido de novo. Mas ainda bem que pôde nos deixar seus escritos. E, por certo, estes são curativo e cura que a Literatura nos fornece como lenimento, para estes tempos perversos.
Vamos, então, a ela: à Literatura.
O professor universitário da USP, sociólogo e crítico literário Antonio Candido (1918-2017) nos presenteou com o ensaio O Direito a Literatura, de 1988 (disponível na internet). O texto serviu de base a uma palestra por ele ministrada sobre direitos humanos e liberdades civis em nossa sociedade. No escrito, ele nos afirma que a literatura é um direito humano inalienável, uma necessidade que todo ser humano tem de fabular, de sonhar, de imaginar:
“Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 2004).
Continua ele: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (IDEM).
O que, de fato, é natural e compreensível. Então a Literatura não nos levaria a argumentar, questionar e prestar mais atenção a nosso entorno, à realidade, a nosso próprio processo de reflexão e, por conseguinte, a mais e mais humanização?? Voltemos a Candido: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade enquanto nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (IDEM).
DIAS DIFÍCEIS, TRANSFORMAÇÃO E ENGENDRAMENTO DE IDEIAS
Outro que teve dias difíceis, como tantos outros neste nosso Brasil, onde ainda brotam do lodo, racistas, foi o escritor e jornalista Lima Barreto (1881-1922). Ele também nos deixou vasta e bela obra em que nos dá lições sobre vida, humanidade e contra injustiças. Inclusive é também autor de um artigo sobre Literatura em que afirma ser aquela um meio de reforçar nosso sentimento de solidariedade uns com os outros. Ainda segundo o escritor, a Literatura ainda teria o poder de transformar as ideias. “[A Literatura] tende a obrigar a todos nós a nos tolerarmos e nos compreendermos” (BARRETO, 1956).
O historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), por sua vez, em sua obra Literatura como missão, oferece-nos duas lições a respeito, transcritas abaixo: Primeira: “A Literatura não é uma ferramenta inerte com que se engendrem idéias ou fantasias somente para a instrução ou deleite do público. É um ritual complexo que, se devidamente conduzido, tem o poder de construir e modelar simbolicamente o mundo, como os demiurgos da lenda grega o faziam”. (SEVCENKO, 1999). Demiurgo pode significar artífice, criador.
Segunda: “Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, a que nos interessa aqui, a que motivou nosso trabalho, é a Literatura. (…) Ela constitui possivelmente o limite mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas expondo-se igualmente `a infiltração corrosiva da dúvida e da perplexidade. É por onde o desafiam também os inconformados e os socialmente mal ajustados. Essa é a razão por que ela aparece como um ângulo estratégico notável, para avaliação notável, para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de uma determinada estrutura social”. (IDEM).
LITERATURA E RESISTÊNCIA
Também professor da USP e historiador de Literatura Brasileira, Alfredo Bosi morreu de Covid em 2021. Autor de O ser e o tempo na Poesia, Dialética da Colonização, Literatura e Resistência, entre outros, o saudoso professor nos ajuda na ação de resistir.
Vamos de Literatura e Resistência, então? A citação é grande. Mas vale a leitura.
“Resistência é um conceito originariamente ético, e não estético. Resistir é opor a força própria à força alheia. (…) O narrador põe a explorar uma força catalisadora da vida em sociedade: os seus valores. (…). Valores e antivalores não existem em abstrato. Exemplos: liberdade e nepotismo; sinceridade e hipocrisia; coragem e covardia; fidelidade e traição etc. (…). Nas tragédias de Shakespeare há uma riquíssima messe em que os antivalores tomam corpo. A cupidez das filhas do Rei Lear. (…) Valor ético e ficção romanesca buscam-se mutuamente. (…) No Brasil, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, corresponde à literatura de resistência. (…) O romancista ‘imitaria’ a vida. Mas qual vida? Aquela cujo sentido dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus hábitos cotidianos. A vida como objeto de busca e construção, e não como encadeamento de tempos vazios e inertes. Caso essa pobre vida-morte deva ser tematizada, ela aparecerá como tal, degradada, sem a aura realista com que realismo e realidade são usadas nos discursos que fazem a apologia conformista da ‘vida como ela e’…” (BOSI, 2002).
Segue a aula: “A escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra, sem retórica, sem alarde, que ‘essa vida como ela’ é, quase sempre o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena a ser vivida (…) A resistência é um movimento interno do foco narrativo, uma luz que ilumina o inextricável, que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico (…). A escrita resistente resgata os valores mais autênticos, mais sofridos que abrem caminho e conseguem aflorar o texto ficcional (IDEM)”.
Recorramos à Literatura, então. A ler Literatura. Não como refúgio. Mas como resposta, resistência e enfrentamento à banalidade do mal. Oscar Wilde, Lima Barreto e todos e todas que estão sendo e ainda serão perseguidos pelos inquisidores de nossa era que desejam marcar o outro, o diferente a ferro e fogo vão precisar de nós. Vão precisar de todo mundo que se impuser contra a banalidade do mal. Amparemo-nos, então, na Literatura e que ela nos sirva de escudo contra os cruzados. Contra os inquisidores, contra a extrema-direita. Leiamos. Leiamos. Leiamos, sem parar. Sem desistir de resistir.
*Jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Uerj e pesquisadora associada do LACON e do Harpia, também pela Uerj.
Referências:
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. SP: Diagrama e Texto, 1983.
BARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2004.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense,1999.
WILDE, Oscar. De Profundis. Porto Alegre: LPM, 1982.