Por Conceição de Souza | Setembro 2019

A questão migratória é de ordem transnacional, própria de uma sociedade globalizada. Como fenômeno pós estado-nação, e por isso mesmo, marcada pela ruptura entre questões nacionais e identitárias, é preciso que sejam levados em consideração aspectos culturais, territoriais e linguísticos, indo além da questão das fronteiras formais. Podemos mesmo considerar a migração um fato social, uma vez que extrapola as fronteiras do cotidiano e influencia as ações humanas, no espaço público e privado. O refugiado se apresenta como um sujeito híbrido por excelência, e mais, é símbolo do sujeito contemporâneo, ao mesmo tempo nativo e estrangeiro, cosmopolita e de lugar nenhum, se configurando como um objeto de reflexão para entender os fenômenos sociais e políticos que marcam a contemporaneidade, fazendo surgir, ainda, uma maior compreensão de si e do outro.

Os estudos sobre mobilidade humana e a globalização são indissociáveis. Este último é um processo amplo que envolve nações e nacionalidades e que expressa uma nova forma de expansão do capitalismo. A sociedade contemporânea global é essencialmente dromológica, isto é, uma sociedade imersa na movimentação, na circulação, no trânsito e no nomadismo, que imprimem ao tempo um ritmo cada vez mais intenso. O sujeito da atualidade, então, é um sujeito cinético, vivendo uma movimentação ininterrupta no plano social, cognitivo, emocional e afetivo, tornando-se desenraizado, tanto no aspecto material (geográfico) quanto no aspecto imaterial (social e psicológico). 

Ao chegarem em terra estranha e iniciarem o contato com outra cultura, os imigrantes-refugiados que fixaram residência na cidade do Rio de Janeiro têm suas identidades hibridizadas e ressignificadas. É importante salientar que as identidades, as práticas culturais e as representações sociais se encontram em constante movimento, num incessante processo de construção e reconstrução de sentidos. 

As pesquisas acerca das representações sociais e da memória possibilita o entendimento de como essas pessoas formam e expressam suas ideias, pensamentos e identidades, ou seja, como elas agem a partir da interpretação do que para elas é um novo mundo. Em suas vidas cotidianas, essas pessoas interagem com os moradores da cidade do Rio de Janeiro e essas interações e sociabilidades proporcionam a apreensão, na maioria das vezes de forma inconsciente, de vários e diferentes elementos da cidade. Isso faz com que haja a identificação deles com os moradores da cidade, o que dá inicio ao sentimento de pertencimento. 

As representações sociais estão presentes nas práticas sociais do dia-a-dia e fazem parte, de forma peremptória, do processo das ressignificações identitárias e culturais. Elas operam psiquicamente o conhecimento, tornando o mundo compreensível para quem nele vive. Estão diretamente relacionadas aos grupos sociais, sendo, portanto, produtos sociais dinâmicos e culturalmente aceitos. As identidades surgem a partir da existência da diferença entre o eu e o outro e são desenvolvidas ao longo de toda uma existência, se revestindo, cumulativamente, de vários e mutáveis vieses identitários.

Além das representações sociais, a memória, enquanto um fenômeno social fundamentalmente coletivo, também faz parte do processo de construção e (re) construção identitária. O grupo possui forte participação na reconstrução das lembranças e, dessa forma, as memórias individuais nada mais são que um ponto de vista da memória coletiva, ou seja, um ponto de convergência de diferentes influências sociais. Ao lembrar-se de algo, as pessoas se valem de quadro de significados compartilhados, que servem como quadro de referência. A noção de tempo e espaço é igualmente fundamental para a rememoração de uma situação, independentemente de que ordem seja, isso porque as localizações espaciais e temporais são a essência da memória.

É importante ressaltar que memória é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento por trazer em si o sentimento de algo já visto e reconstrução por ser elaborada em um novo tempo e em um novo lugar, onde novas representações se fazem presentes. Isso faz da imagem do tempo antigo algo alterado e possuidor de novos significados. Dessa maneira, a memória também, tal quais as identidades, são ressignificadas em função de novas experiências e interações. A percepção de si e do outro são referenciadas nas origens históricas de cada grupo, em especial a família, e são definidas por meio de uma memória social compartilhada. Essa memória compartilhada é responsável pela expressão dos valores e crenças culturais do grupo.    

Diante do acima exposto, podemos concluir, então, que as representações sociais, a memória e a identidade, fazem parte do diálogo social, regendo as relações das pessoas com as sociedades nas quais estão inseridas. O entendimento desses fenômenos facilita o entendimento de como são construídas, afirmadas, ressignificadas e expressas as identidades dos imigrantes-refugiados, vítimas ou não de um processo dispórico forçado, e que migraram para a cidade do Rio de Janeiro.   

   

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Migração, representação social, memória e ressignificação identitária