Por Roberto Vilela | Abril/2019
Em dezembro de 2018 nos propusemos a debater os três planos urbanísticos anteriores à Reforma Passos. Naquela ocasião expusemos o Plano Beaurepaire, publicado em 1843, documento que pela primeira vez identificava os problemas presentes no dia-a-dia da cidade e apontava medidas para solucioná-los. Tal documento não obteve aprovação da Câmara Municipal mas serviu de inspiração à outras duas propostas que tinham por intenção solucionar ou, pelo menos, minorar os transtornos na capital do Império. Esses documentos foram chamados de “Relatórios da Comissão de Melhoramentos”, o primeiro foi publicado em 1875 e o segundo em 1876. É sobre isso que falaremos agora.
Na segunda metade do século XIX se havia um tema sobre o qual a opinião pública convergia quando se falava dos problemas da cidade e suas possíveis soluções, era a medicina social. Esse senso comum corroborava com todo tipo de proposta que buscasse transformar a capital do Império numa cidade salubre e moderna pois, ao mesmo tempo em que a cidade crescia geograficamente e economicamente, os mesmos problemas permaneciam: inchaço urbano, construções desordenadas, surtos de febre amarela e um porto saturado.
A partir de 1868 o transporte público por bondes à tração animal é introduzido no Rio. Isso dinamiza o crescimento da cidade por melhorar a ligação do Centro com os subúrbios. Assim nascem alguns bairros hoje famosos, como Vila Isabel, por exemplo, localidade que se constituia enquanto confluência de linhas de bonde, acarretando no parcelamento de chácaras, abertura de ruas, culminando com a instalação da (já extinta) Fábrica Tecelagem Confiança[1] em 1878.
O porto do Rio concentrava, em 1875 e 1876, a metade do valor total das exportações do Império. Segundo Benchimol (1992), o café sozinho correspondia a 94% das mercadorias exportadas, os destinos principais eram: Estados Unidos, Inglaterra e França, respectivamente. Com o aumento das atividades econômicas na cidade, tornava-se urgente a melhoria e a expansão do porto que além de pequeno, era raso, ou seja, navios maiores, com calados mais profundos não conseguiam atracar sob o risco de encalharem.
Nesse contexto de grandes transformações, as contradições sociais se tornaram ainda mais evidentes, aguçadas pelas fortes epidemias de febre amarela. O então ministro do Império propôs ao Imperador, em 1874, a nomeação de uma Comissão de Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, composta pelos engenheiros Francisco Pereira Passos, Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim e Marcelino Ramos da Silva. Dois relatórios foram apresentados, um em 1875 e outro em 1876, considerado o primeiro plano urbanístico da cidade a ser levado ao conhecimento público e ampliando as discussões acerca do urbano. (CARVALHO. 2014, p.61)
O primeiro relatório é apresentado apenas dez meses após a nomeação da comissão e concentrava-se sobre a região da Cidade Nova[2]. Os engenheiros alegavam que aquela era a região da cidade que mais necessitava de melhorias, além de ser o local para onde a cidade crescia. Assim, o custo das obras seria menor pois não se gastaria tanto com desapropriações. Teoricamente, partindo do zero, de regiões pouco habitadas, as dificuldades de se implementar tal agenda seriam menores. A região do canal do Mangue seria o foco inicial das intervenções, a ideia era transformá-lo num caminho navegável, além de contribuir com o escoamento de regiões pantanosas que dificultavam a expansão do tecido urbano e eram vistas como fontes de doenças. Daí a canalização dos rios para que desembocassem nele, além de sua ligação com o mar.
Situada em zona tropical, numa planície baixa e pantanosa, rodeada pelo mar e pelas montanhas, a cidade reunia, segundo os higienistas, duas características adversas: o calor e a umidade proveniente da evaporação das águas do mar, dos pântanos e das chuvas, que não escoavam devido à pouca declividade do solo. Os pântanos eram particularmente temidos por constituírem focos de exalação de miasmas, os pestíferos gases que veiculavam os agentes causadores das doenças e da morte. Os morros da cidade também eram tematizados como fatores de insalubridade, porque impediam a circulação dos ventos purificadores e porque deles escoavam as águas dos rios e das chuvas, que se imobilizavam na vasta planície sobre a qual se estendia a maior parte construída do Rio, tornando-a pantanosa, úmida e calorenta. Assim, desde muito cedo, os médicos defenderam, além do aterro de pântanos, o arrasamento de morros. (BENCHIMOL, 1992, p.116).
Neste contexto, a medicina social, os engenheiros e o Estado agiam como “regeneradores urbanos”, fiscalizando, coibindo e indicando novas posturas. Em 1866 o vereador Pereira Rego faz um projeto que viabilizava a extinção dos cortiços e demais nódulos de coabitação numerosa, vistos como agentes da desordem e da mistura na cidade. Inicialmente seu projeto não fora aprovado, mas dois anos depois, Pereira Rego foi nomeado presidente da Junta Central de Higiene Pública, e dele solicita-se um parecer acerca de um relatório feito pelo médico-verificador da freguesia de Santana (ponto central da Cidade Velha), que demonstrava como ocorriam mais óbitos em estalagens e cortiços do que em casas particulares. Episódios como este municiavam a opinião pública e avalizavam iniciativas do Estado, que, sob o argumento de acelerar tais medidas, davam ao capital privado a função de construir novas habitações para esta população e administrá-las. Ou seja, o Estado ao mesmo tempo em que era inoperante na resolução dos problemas locais, principalmente no tocante à falta de habitação para população de baixa renda, era permissivo com capital estrangeiro que passa a controlar uma série de serviços fundamentais ao cotidiano da população. As empresas que administravam o sistema de esgoto, o sistema de abastecimento de água, inúmeras linhas de bonde, bem como grandes construções, eram, em sua maioria, inglesas ou norte-americanas.
Sobre as propostas da Comissão de Melhoramentos, o primeiro relatório, de 1875, expressa um ideário de cidade calcado no que Beaurepaire já havia proposto. Ou seja, o ordenamento da cidade a fim de solucionar os problemas de saúde pública e viabilizar a emergência de uma nova sociedade. O relatório de 1875 também expõe argumentos que explicam o fato das obras começarem pela Cidade Nova, pois, segundo eles, a Cidade Velha necessitava de tantas intervenções que naquele momento não haveria orçamento para tanto. Contudo, Andreatta (2006) refuta essa versão que, em realidade, tentava esconder o fato de que a própria Comissão de Melhoramentos – a fim de estabelecer um marco conciliatório entre o interesse público e o interesse privado – outorgava a definição de regras para expansão da cidade sobre o espaço onde se concentrava, naquele momento, a geração de valor urbano.
Para implantar e expandir rapidamente os serviços de água e esgoto, a Comissão propõe os quarteirões geometricamente regulares pois, devido a sua simplicidade e fácil capacidade de extensão, seria algo mais viável. Impossível não recordar de Beaurepaire.
O recurso aos mesmos argumentos utilizados no Plano Beaurepaire (como melhorar a ventilação da cidade, dar escoamento às águas pluviais, e facilitar a circulação entre os pontos da cidade) pode ser a razão pela qual a literatura especializada tem acentuado o higienismo como a corrente de influência do Plano da Comissão de Melhoramentos. (ANDREATTA, 2006, p.154)
Novamente são propostas avenidas monumentais de 40m de largura, a principal ligaria o Campo de Santana até o Portão Vermelho, que daria passagem ao Jardim Zoológico e ao Horto Botânico, integrando o loteamento do novo bairro Vila Isabel. Neste momento, quando falamos de Jardim Zoológico e Horto Botânico referimo-nos ao que hoje popularmente chamam de “antigo Jardim Zoológico” ao final da rua Visconde de Santa Isabel. Daí, uma outra grande avenida seria aberta, perpendicularmente, ligando a Tijuca com o Morro do Telégrafo, onde estava previsto a construção do Palácio Universitário (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Na entrada do Jardim Zoológico, uma praça de 150m de diâmetro daria inicio a um canal que conduziria as águas daquela região do Engenho Velho (hoje essa localidade estaria no bairro do Grajaú) ao canal do Mangue. Além desses dois eixos que otimizariam a ligação da Cidade Nova com o Engenho Velho, um terceiro prolongaria o Boulevard 28 de Setembro até uma quarta avenida que seria aberta paralela à rua São Cristóvão. Esta avenida, também com 40m de largura, ligaria o portal da Quinta da Boa Vista à Praça Castilho França (conhecida hoje como Praça Afonso Pena) na Tijuca. A magnitude e a monumentalidade das avenidas propostas no relatório nos lembra o Plano de Haussmann para a Paris oitocentista.
Um ponto chave seria a ligação do canal do Mangue com o mar, pois, se por um lado o canal recebia águas dos maciços da Tijuca e do Andaraí, por outro ele teria de despeja-las em algum lugar. Temos aí o embrião do que hoje é o canal da Avenida Francisco Bicalho, desaguando no mar entre as ilhas dos Melões e das Moças. A Comissão projetou um cais da ponta da Chichorra à praia dos Lázaros, conectando assim, os bairros de São Cristóvão e da Gamboa. Uma vez que este cais estivesse construído e toda a região do mangue de São Diogo aterrada, seria instalada ali a Estrada de Ferro D. Pedro II. Desta forma teríamos também uma ligação rápida entre a ferrovia e o cais, otimizando tanto a entrada de mercadorias importadas como a saída de insumos que o país exportava. Outra modificação sugerida nessa região era a demolição do Matadouro, que ocupava o espaço onde hoje é a Praça da Bandeira. Em seu lugar recomendava-se a construção de um parque com um edifício que exporia permanentemente máquinas e aparelhos agrícolas, atividade que representava a base da economia nacional. O relatório de 1875, apesar de se concentrar mais abertura de grandes eixos, não deixou de lado as construções privadas e determinava toda uma padronização das construções levando-se em conta a largura das ruas.
Um tema polêmico e que demorou muito a se consolidar foi a exigência de licença municipal para construções particulares. A Comissão propõe a nomeação de um engenheiro (ou arquiteto) por distrito para supervisionar as construções e obras em andamento. O imposto a ser recolhido desta licença serviria para financiar tais inspeções. Um outro fato interessante abordado por Andreatta (2006) salienta como em alguns pontos o relatório liga o higienismo à forma das construções.
Pelo que se refere às condições de salubridade das casas, o Plano se centra no “pé direito”, ou distância entre o “o soalho e o forro”, cujas normas exigem que seja de no mínimo três metros; no tipo de instalações sanitárias exigíveis; e a necessidade de janelas para a rua em todos os quartos, com uma proporção de 1m2 cada 10m2 de superfície construída. É curioso comprovar que anos mais tarde, em 1890, a Liga para a Proteção da Saúde Pública prussiana conseguiria introduzir nas leis do seu país uma cifra análoga: 0,2m2 de abertura para cada 10m3 habitáveis. (ANDREATTA, 2006, p.160)
O segundo relatório da Comissão data de fevereiro de 1876, seu texto defende muitos aspectos do primeiro e reforça os padrões de alinhamento e altura das construções frente aos caprichos dos proprietários. Insiste na instituição de regras obrigatórias para edificações citando exemplos de leis inglesas e francesas da mesma época. A principal diferença entre os relatórios diz respeito à sua abrangência geográfica, enquanto o primeiro relatório concentrava-se na Cidade Nova, o segundo tem um olhar mais cuidadoso à Cidade Velha. Reforça o padrão de 40m de largura das avenidas com calçada central de 18m e dois passeios laterais. Construída décadas depois, a Avenida Central de Pereira Passos simbolizará a concretização dessas ideias. Hoje pode soar banal falar de largura de ruas, avenidas, calçadas e recuo de construções ao passeio, mas naquela época numa cidade construída contingencialmente e que continuava crescendo da mesma forma, esse tipo de proposta deu margem a acalorados debates. Sobre a questão dos alinhamentos, ela é consequência da nova ordem burguesa pois, deste momento em diante, é fundamental a definição do conteúdo e do tamanho da propriedade urbana, já que esta agora é dotada de um valor e de um simbolismo que antes não existia. Além do que, a forma e a velocidade com que a cidade crescia incidia diretamente no valor dos terrenos. A “lei de alinhamentos” utilizada como referência para todas criadas por aqui foi a promulgada por Napoleão em 1807.
A proposta principal do segundo relatório da Comissão versa sobre a criação de um cais de 3900m de comprimento por 40m de largura, começando no morro da Viúva e indo até a praia do Flamengo, um embrião da Avenida Beira Mar que seria concluída anos mais tarde por Pereira Passos. Apesar de aprovados, o grande obstáculo à realização das propostas contidas nos dois relatórios da Comissão de Melhoramentos fora a questão orçamentária, pois o contingente de desapropriações a serem indenizadas extravasava a capacidade dos cofres públicos. Os membros da Comissão chegam a propor que a execução do projeto fosse entregue à inciativa privada. De acordo com eles, a empresa que financiasse as desapropriações, depois teria o direito de explorar os terrenos e as benfeitorias neles realizadas. Naquele momento essa proposta de financiamento das obras não tem a aprovação do Estado, mas ali conformou-se o modelo de custeio aplicado às intervenções na cidade décadas adiante. E de forma alguma seria forçoso dizer que as parcerias público-privadas, tão enaltecidas atualmente, já se esboçavam desde priscas eras. Pereira Passos que o diga.
Referências:
ANDREATTA, Verena. Cidades Quadradas Paraísos Circulares: os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro. RJ: Mauad, 2006.
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX. In: Coleção Biblioteca Carioca, v. 11, Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
CARVALHO, Amanda Lima dos Santos. O Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte Portuguesa: Planos, intenções e intervenções no século XIX. In: Revista Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, Brasília, v. 13, p. 55-63. 2014.
[1] A Tecelagem Confiança, localizada à rua Maxwell nº 300, encerrou suas atividades em 1964. Em dezembro de 1978 o imóvel reabriu como supermercado Boulevard. Em 1999 foi integrado à rede Pão de Áçucar e, desde então, se chama Extra-Boulevard.
[2] À época o termo “Cidade Nova” designava a região da cidade que crescia para além do Campo da Santana, ao passo que “Cidade Velha” eram as freguesias contíguas ao porto.