Por Jorgiana Brennand | Fevereiro/2019
Quando se pensa em um brechó físico, que tipo de associação as pessoas normalmente fazem: lugar que vende artigos usados? Espaço de “pechincha”? Local onde se conecta passado e presente? Lugar de referência da moda?
Os imaginários, entendidos como uma espécie de ‘museu’, que reúne todas as imagens e representações passadas, possíveis, produzidas e a serem produzidas (DURAND, 2014), são muito variados diante de um brechó, cuja origem é difícil de precisar. Acredita-se que esse tipo de comércio tenha surgido em Londres, com as feiras de antiguidades que reuniam frequentadores interessados em objetos diferentes dos itens vendidos em lojas convencionais. Aqui no Brasil, a versão mais aceita é a de um comerciante português, chamado Belchior, morador do Rio de Janeiro, que teria fundado uma loja, no século XIX, popularmente conhecida como a “loja do Belchior”, que comercializava artigos de segunda mão. Como o passar do tempo, Belchior virou brechó e todos as lojas que vendiam roupas e objetos usados receberam esse nome (DUTRA; MIRANDA, 2013).
Um brechó pode ser percebido de várias formas. Muitos ainda o associam a lugares repletos de araras, corredores estreitos, cheiro de mofo e artigos entulhados que vão de casacos pesados para o rigoroso inverno europeu a bibelôs que remetem aos anos 1940, por exemplo.
Essa variedade de artigos causou-me estranhamento quando entrei pela primeira vez em um brechó nos longínquos anos 1980. Ele funcionava em uma pequena galeria em Brasília, onde minha mãe costumava ir para garimpar artigos e deixar peças que entulhavam nossos armários. O local, carinhosamente apelidado de “mercado das pulgas”, fazia uma clara referência ao Marché aux puces, feiras de troca nos subúrbios de Paris, verdadeiros bazares ao ar livre, famosos por venderem roupas infestadas de pulgas (PORTAL LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO, 2017). A variedade de peças impressionava, assim como a falta de organização do espaço. Havia de tudo por lá e o local possivelmente servia de residência para várias pulgas e traças que vinham junto às roupas. Naquela época, as noções de higienização das peças – tão comuns atualmente – nem passavam pela cabeça da administradora.
A maioria das mercadorias não estavam em bom estado: faltavam botões em camisas, havia casacos manchados e calças rasgadas. E mesmo assim, as pessoas saíam de lá com sacolas carregadas. Muito tempo depois, entendi o porquê de tanto interesse. As roupas têm um papel importante na lembrança das pessoas e esses rasgos, manchas e faltas de botões fazem parte da identidade e das singularidades de seus antigos donos. Os defeitos estão ali carregados de significados e de memórias. A roupa comercializada traz a história de alguém e tais elementos subjetivos (o perfume, a mancha de suor, o botão que se perdeu com o tempo) retratam as memórias, os nomes e o espírito de quem a comprou quando ainda era nova (FAGUNDES, 2011). Há compradores que se interessavam pela história das peças que adquiriu.
Mesmo tendo se passado quase 40 anos desde a minha primeira ida a um brechó, ainda há quem os compare “aos mercados das pulgas” e a lugares que funcionam como depósitos de quinquilharias e mercadorias fora de moda. Por outro lado, é crescente o número de frequentadores que os encaram como ambientes, onde se consegue estabelecer uma conexão entre o passado e sua contemporaneidade, permitindo construir uma narrativa única (DUTRA; MIRANDA, 2013), na qual a memória dos artigos comercializados funciona como peça fundamental para que se conheça mais sobre a história de um povo e costumes de uma época.
Para mim, é impossível ir a um brechó e não imaginar de quem foram as peças expostas, por que estão ali, quem foram seus donos e toda a memória dos acontecimentos que ela vivenciou. Sempre me questiono se são heranças de família, se passaram por várias gerações e percebo que as memórias originais trazidas pelos artigos pertencem a um momento que se tornou intangível e possivelmente idealizado. Depois de ressignificadas pelos novos compradores, as mercadorias passarão a contar outras histórias, incorporando novas memórias. Essas mudanças temporais e sociais alterarão os significados das peças. E essas modificações são interessantes, pois passarão a remeter a outros imaginários.
Os brechós também são vistos como locais de referência de moda, justamente por reunirem roupas e acessórios antigos, que são trazidos para o uso no presente por meio de releituras que serão feitas, pois, segundo Dutra; Miranda (2013), a moda nunca esteve totalmente separada do passado. Afinal, ela é uma prática que expressa valores, ideias e experiências de uma sociedade. A moda e a roupa comunicam sentimentos e expressam formas pelas quais uma sociedade é produzida e reproduzida (BARNARD, 2003), unindo, portanto, passado e presente.
Apesar de ainda haver um certo preconceito com relação às roupas e objetos de segunda mão, o vintage e o retrô estão na moda principalmente entre os jovens que buscam se diferenciar por meio de suas roupas. Muitos preferem ressignificar peças declaradas obsoletas pela indústria da moda para expressar a personalidade e o gosto pessoal. Roupas raras, antigas e misturadas a peças novas são cada vez mais usadas por eles também como forma de criação e expressão da singularidade individual. Muitos jovens acabam não percebendo que, com essa atitude conseguem estabelecer um vínculo entre duas temporalidades com histórias, valores, crenças e estéticas distintas (DUTRA; MIRANDA, 2013).
Mas, um brechó também é visto como um espaço de pechincha e de barganha. Seria difícil imaginá-lo reunindo essas características e funcionando no meio da rua? A “feira das Brecholeiras”, realizada aos sábados, na sede da CUFA (Central Única de Favelas) e, uma vez por mês, na calçada cultural, ambas embaixo do viaduto Negrão de Lima, em Madureira, coração simbólico do subúrbio carioca, reúne tais elementos.
O evento comercializa de tudo: brinquedos, bolsas e roupas. De um modo geral, as mercadorias estão em ótimo estado, foram higienizadas e custam entre R$ 1 e R$ 50,00. É comum os clientes pechincharem esses preços e a negociação acabar em abraço. Aliás, ele é uma moeda de troca interessante. Em algumas idas à feira, observei que muitos consumidores não tinham o valor exato da mercadoria e as brecholeiras aceitaram o abraço como complemento revelando os brechós como espaços de sociabilidade.
Cada edição reúne, em média, 50 expositores. Mulheres em sua maioria. São as brecholeiras, nome que surgiu da junção de brechós e sacoleiras. É assim que elas se definem. No começo, elas enfrentaram muito preconceito, pois as mercadorias eram expostas no chão da estação de trem de Madureira. As pessoas não queriam comprar, pois tinham uma impressão negativa dos produtos e não estavam acostumadas a adquirir artigos usados, que há bem pouco tempo eram percebidos como produtos de qualidade inferior. Hoje, segundo Luciana da Silva, uma das administradoras, “brechó tá na moda. Acabou aquele conceito de coisa de defunto”.
Os imaginários se multiplicam. Agora eles são percebidos como lugares exclusivos. São os famosos brechós de luxo, que funcionam “escondidos” em apartamentos para uma clientela selecionada. Eles comercializam roupas de celebridades e bolsas Chanel, por exemplo, a R$ 4 mil. A verdade é que o olhar sobre eles é menos pejorativo do que nos longínquos anos 1980, quando estive em um brechó pela primeira vez.
Não há consenso sobre o que melhor os representa. Para uns será sempre um espaço de moda para jovens. Para outros, uma viagem no tempo por ser capaz de reunir peças de tantas épocas reforçando o papel de unir passado e presente no mesmo espaço. Para muitos, uma oportunidade para barganhar preço. E também um espaço exclusivo e até mesmo, uma alternativa para exercitar o consumo consciente. Ou seja, um lugar para se preocupar com questões ambientais no consumo. Independente das percepções, só há uma certeza: é impossível pensar em um único imaginário para os brechós.
Referências:
BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 6. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2014.
DUTRA, Luca de Menezes; MIRANDA, Victor Fernades Duarte. Comunicação, moda e memória: a roupa de brechó como parte do processo de construção da narrativa do indivíduo. Monografia (graduação). Brasília (DF): Universidade de Brasília. Faculdade de Comunicação, 2013.
FAGUNDES, Joyce Corrêa. O RG feminino Impresso no vestuário: a representação feminina no contexto funk. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS), 2014.
Portal Laboratório de Educação (Labedu). Disponível em: https://labedu.org.br/voce-ja-ouviu-falar-no-mercado-de-pulgas/. Acesso: 10 Fev. 2019.