Nossa última entrevista do ano é com Carlos Guilherme Vogel, gaúcho, mestrando do PPGCom/UERJ e produtor audiovisual. Soccer Boys, seu mais novo projeto, foi ganhador do I Edital Doc Futura e repercutiu bastante na imprensa. Confira abaixo a entrevista completa:

 

1 – Soccer Boys, que será exibido no Canal Futura, é seu mais recente documentário e conta a história do primeiro time de futebol do Rio de Janeiro formado exclusivamente por homens gays, os BeesCats.  Conte-nos como surgiu o interesse de pesquisar e documentar essa equipe? E qual mensagem você buscou comunicar com este trabalho?

A ideia surgiu quando li uma notícia, em novembro do ano passado, que falava sobre a realização da I Champions Ligay, aqui no Rio de Janeiro. Como eu sempre gostei muito de futebol, achei que tinha algo interessante nesse campeonato, uma história que deveria ser contada. E aí fui buscar informações, tentar descobrir a história por trás desse campeonato e então cheguei ao BeesCats, que foi o primeiro time gay a se formar aqui no Rio de Janeiro.

A questão da mensagem acho que ela vai sendo descoberta à medida que a gente vai pesquisando sobre o assunto que envolve um filme. A minha ideia inicial era falar sobre a democratização do futebol, a busca de espaço pelo gay no esporte mais popular do país, e que ainda é um universo extremamente machista. Mas conforme você vai se aproximando de um universo, vai conhecendo as pessoas, vai entendendo a luta delas, no final das contas, as ideias iniciais vão se transformando. Então acho que a mensagem principal do filme é falar sobre a importância da união das pessoas em prol de um objetivo, dos movimentos que surgem a partir das nossas lutas diárias. Acho que a luta não só dos BeesCats, mas de todos os times que surgiram em função desse movimento, ela fala sobre isso. Sobre união e luta.

2 – Seu documentário abrange o tema da representatividade LGBT, assunto em evidência diante do atual quadro político do Brasil. Como Soccer Boys se encaixa nesse cenário? Em que medida o documentário pode ajudar na compreensão deste momento?

Acho que o filme tem um papel importante nesse momento. Não só o Soccer Boys, mas também todos os filmes que falam sobre a representatividade LGBTQ+. A gente ainda vive em uma sociedade muito preconceituosa e esse preconceito não está ligado somente à população gay, outros grupos sociais sofrem com isso. Então é muito importante falar sobre estas questões. Acho que o filme ficou pronto em boa (?) hora. Na hora em precisamos nos mostrar fortes na luta contra todos os tipos de preconceitos que existem em nossa sociedade.

E ao mesmo tempo que o preconceito é evidente, acho que o filme consegue mostrar que movimentos como este estão cada vez mais fortes. Como fala um dos personagens do filme, é uma voz que não vai mais se calar.

3 – Em 2012, você e outros ex-alunos da Escola de Cinema Darcy Ribeiro criaram a produtora Peleja Filmes. Você pode nos contar um pouco mais sobre esse projeto?

A Peleja na verdade não é uma produtora. É um coletivo que foi criado com a intenção de viabilizar projetos e posteriormente se tornar uma produtora, o que ainda não aconteceu. Mas apesar disso continuamos desenvolvendo projetos juntos.

O interessante é que a Peleja surgiu de um outro trabalho ligado à questão LGBTQ+, um curta realizado em função de uma atividade da escola, chamado Tutti Frutti, que era para ser apenas um trabalho de sala de aula e que na época circulou por vários festivais. Depois disso fomos desenvolvendo outros projetos, ligados a outras questões, mas acho que sempre tentando discutir algumas coisas importantes. Ou coisas que nós, os integrantes, julgamos serem importantes.

Dos quatro integrantes da Peleja, três estão envolvidos no Soccer Boys. Além de mim, o Fábio Erdos, que é o diretor de fotografia, e o Marcelo Engster, o editor do filme. Mas a Peleja foi fazendo amigos pelo caminho. Para viabilizar a execução deste filme, por exemplo, a gente contou com a Lilian Diehl, que foi quem encabeçou a produção do filme, e que também estudou com a gente na Darcy.

Um filme é sempre uma obra coletiva e a Peleja nos tem viabilizado a realização de vários trabalhos. Mais uma vez a questão da união em prol de uma luta. Fazer cinema no Brasil também é uma luta, claro que numa outra dimensão.

4 – Um dos projetos da produtora Peleja Filmes é o Copinha, um sentimento. O filme conta a história de torcedores do Sport Club Internacional, clube de Porto Alegre, que se reúnem em um bar em Copacabana. Como você fez para captar a essência da paixão torcedora no bar para o documentário?

Eu, o Marcelo e o Fábio nos conhecemos na Darcy Ribeiro, e provavelmente o fato de sermos torcedores do Internacional acabou nos aproximando. Muitas vezes, depois da aula, a gente ia pro Copinha assistir aos jogos do Inter e também nos encontrávamos lá no final de semana. Então essa nossa convivência entre a Darcy e o bar acabou conectando estes dois universos que nos aproximaram, o cinema e o futebol.

No caso do filme sobre o Bar Copinha, a gente já conhecia esse universo porque vivenciava ele. E o fato de que esse bar nos garantia um espaço para continuar torcendo pelo Inter mesmo longe de casa foi o que nos motivou para contar essa história.

Como a gente conhecia as pessoas que frequentavam o bar e sabíamos exatamente o que acontecia ali, o passo principal foi ligar a câmera e captar as imagens. A gente foi pra lá no último jogo da final do Gauchão de 2014 pra filmar o que iria acontecer no bar. Esse foi o nosso plano. As entrevistas e algumas outras imagens de cobertura foram feitas depois, mas o principal do filme está nesse dia, na energia que rolou durante o jogo que culminou na conquista de mais um título regional, na vitória de 4 x 1 sobre o principal adversário local.

5 – Tanto Soccer Boys quanto Copinha são documentários no qual você escolheu abordar temáticas tendo o futebol como plano central. O que te faz querer contar histórias relacionadas ao futebol?

O futebol é algo tão forte pra nós brasileiros, né? Ele está na essência da nossa sociedade. Acho que tão forte quanto ele, somente a telenovela, mas que é um elemento que hoje vem perdendo um pouco de sua força, na minha opinião.

Mas o futebol, por estar tão ligado à nossa sociedade, ele permite discutir diversos outros assuntos. No Soccer Boys a gente fala sobre diversidade, homofobia, sobre luta por espaço… No Copinha, um sentimento a gente fala não só sobre a paixão pelo futebol, mas também sobre socialização, sobre interculturalidade, sobre ocupação de espaços da cidade… enfim, são muitas questões que acabam se conectando ao elemento futebol…

6 – O Oscar só reconheceu em 1942 o gênero documentário em sua premiação, 13 anos depois da primeira cerimônia, o que demonstra uma certa resistência em acolher o gênero documental como parte do cinema. Hoje, esse aspecto é refletido na preferência das pessoas por filmes encenados, ao invés de filmes documentais. Você acredita que o consumo de documentários possa alcançar popularidade dentro das categorias de cinema? Nesse sentido, o Netflix, que possui um extenso catálogo de documentários, aproxima ou afasta no crescimento do gênero?

Sabe, eu acho que isso vem um pouco dessa divisão. O Oscar premia melhor filme e melhor filme documentário. Por que não premiar somente “melhor filme” e envolver todos os gêneros, inclusive documentário, nessa premiação? Porque o documentário é um filme…

O Festival de Berlim, por exemplo, um dos mais importantes festivais de cinema que temos, não faz essa distinção. Em 2016, Fuocoammare, do Gianfranco Rosi, ganhou o Urso de Ouro. Os irmãos Taviani também já ganharam esse prêmio com César deve morrer, um filme que mistura documentário e ficção. Então eu prefiro encarar o documentário como um gênero, assim como a comédia, o drama, o suspense… mas que no fundo são filmes.

Com relação ao Netflix, e também a outras plataformas que vem surgindo, acho que elas têm um grande potencial para introduzir produtos diferentes. Mas não vai ser o Netflix que vai mudar a preferência dos espectadores, acho que as plataformas disponibilizam mais filmes, o que é muito importante, acho que isso abre caminhos. Mas as pessoas só vão se interessar por documentários quando assistirem bons documentários, e indicarem pros amigos, pra família… Nós, que trabalhamos com cinema, temos também uma responsabilidade, que é a de fazer bons filmes.

7 – O Cinema Verdade se aproxima do estilo de documentário que temos hoje. Essa escola de cinema, famosa nos anos 1960, fazia uso de diferentes ideologias que garantiram sua autenticidade, como a crítica a encenação não revelada do modelo Griersoniano (1930). Você acredita que o documentário consegue captar completamente a verdade sem interferência?

Tanto o Cinema Verdade, quanto o modelo utilizando por John Grierson, são estilos de se fazer documentário. Mas existem outras formas, outros modos de se pensar e de se fazer este tipo de filme. Acho que o cinema verdade ou cinema direto é um formato muito utilizado e o que nos vem à cabeça prontamente quando se fala de documentário, mas é preciso que a gente esteja aberto a outras coisas… Valsa com Bashir, do Ari Folman, é um exemplo que eu sempre gosto de utilizar… Somente pelo fato de utilizar a animação ele quebra com a nossa noção de “realidade”.

Quanto à captação da verdade, a gente fala de qual verdade? Da verdade do cineasta? Acho que um filme é a visão de alguém sobre algo. E também tem o fato de que a partir do momento que você liga a câmera, já existe ali uma interferência na realidade, em maior ou menor grau…

8 – Em 2016, você escreveu o artigo “Cinema no Brasil: Aspectos do Mercado e Alternativas para Produções de Baixo Orçamento”. Quais são essas alternativas?

Com as tecnologias que dispomos hoje, fazer filmes ficou mais fácil, de certa forma. Hoje é possível fazer filmes com um celular, por exemplo. É claro que quanto mais recursos tivermos à nossa disposição, melhor vai ser a qualidade técnica do produto. Mas um filme não é só técnica. Um filme envolve conhecimento e, para ter o conhecimento disponível, muitas vezes precisamos contratar pessoas que possuem esse conhecimento. Um diretor de cinema não é obrigado a desempenhar todas as funções em um set, ele tem que saber como as coisas funcionam, mas o diretor tem o papel de um maestro, que vai regendo a orquestra do set. E ele precisa ter bons músicos para tocar sua sinfonia.

É preciso, então, ter condições de contratar pessoas para o trabalho. Se você não pode contratar vinte pessoas, não contrata. De repente duas vão dar conta, se a ideia não for de uma execução complexa. Então pra fazer filme com pouco dinheiro, você tem que ter ideias mais simples, começa por aí. E ideias simples não são sinônimos de filmes ruins. Ideias simples, bem executadas, podem render filmes excelentes.

Mas eu não tenho dinheiro, e aí? Bom, aí depende do que você quer fazer. Existem alternativas, que passam por editais, mas também pelas tradicionais “vaquinhas”, que hoje são chamadas de financiamento coletivo. Você tem uma ideia que agrada a um grupo de pessoas? Se você acha que existem pessoas interessadas em viabilizar sua ideia, entre em contato com elas. No caso do Copinha, um sentimento, por exemplo, a gente viabilizou o filme através de um site de financiamento coletivo, o Benfeitoria. O The Player, que foi o primeiro curta que eu dirigi, eu tinha uma grana pra pagar os atores e o resto da equipe eu formei com amigos que gostaram da minha ideia e decidiram me ajudar.

No caso do Guia prático para escolher o sofá dos seus sonhos, que eu escrevi e produzi, e foi dirigido pelo Marcelo Engster, foi um filme que a gente fez pela Darcy Ribeiro, então a gente tinha os equipamentos da escola e conseguiu montar uma equipe com colegas do curso e outras pessoas que se interessam pelo projeto e entraram nessa simplesmente porque acreditaram no trabalho. Com um prêmio que ganhamos, posteriormente, a gente conseguiu fazer um pagamento simbólico para a equipe, de acordo com o número de diárias trabalhadas. Mas era um filme ligado à escola.

Obviamente não da pra querer que todo mundo entre em projetos de graça. As pessoas precisam pagar as contas no final do mês. Então à medida que você vai ganhando experiência, é preciso que você também vá conhecendo as leis de incentivo, as possibilidades que você tem para viabilizar os filmes. Cinema não é uma arte barata, você vai precisar contratar pessoas para trabalhar. Eu não posso exigir que todo mundo se apaixone pela minha ideia e abra mão de tudo pra ajudar no meu filme. Mas as coisas vão acontecendo…

9 – As produções audiovisuais estão intimamente ligadas às leis de incentivo à cultura. Como você acha que as produções audiovisuais serão afetadas com as possíveis mudanças dessas políticas culturais?

Não vejo a equipe de governo que está se formando como uma equipe que se preocupa com questões culturais. Pelo contrário, me parece que existe uma certa aversão com relação a quem trabalha com cultura, principalmente porque arte e cultura sempre envolvem questionamentos. Quem trabalha na área tem geralmente um perfil questionador, o que assusta os grupos mais conservadores.

Por outro lado, o mercado audiovisual está em crescimento e se solidificando. Gera empregos e movimenta a economia. Talvez por isso não seja completamente ignorado. Mas não vejo os próximos anos como promissores para quem trabalha com audiovisual.

10 – Para os nossos leitores que sonham com a carreira de produção audiovisual, o que você lhes aconselharia?

Primeiro, assistir muitos filmes, séries, novelas… Somente assistindo audiovisual é que se conhece melhor a linguagem, e é preciso ver de tudo um pouco. Saber o que está sendo produzido, não ter preconceitos com formatos, porque a gente precisa conhecer. E assistir coisas produzidas em todos os lugares do mundo. Não podemos nos ater apenas aos filmes hollywoodianos, às novelas da TV Globo ou às séries que bombam no Netflix.

Outra coisa é ler, ler muito, e isso vale pra vida. Se você não tem conhecimento, não fará bons filmes, porque não vai ter sobre o que falar. Ou não vai saber falar sobre o que deseja.

E tem a questão técnica, que você desenvolve a partir do estudo e da prática.

Resumindo: ver, ler e fazer. Sem medo.

Entrevista com Carlos Guilherme Vogel – Soccer Boys