Por Gabriel Neiva | Novembro/2018

O presente artigo analisa os caminhos do projeto fotográfico “Rio, eu tatuo”. Em 2014, motivada pelo momento de evidência midiática que observa na cidade, a fotógrafa Julia Assis procurava financiadores e editoras para publicar seu registro de pessoas que tatuaram nos seus corpos “símbolos cariocas”. Posteriormente, contemplada com uma exposição de seus registros fotográficos no Botafogo Praia Shopping, centro comercial localizado no bairro homônimo e uma bem-sucedida campanha de crowdfunding, o livro foi publicado em 2016.

Na introdução do livro, segunda a idealizadora, os típicos cartões-postais da cidade como Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, o Morro Dois Irmãos, bordões como “sou carioca”, “021 é Rio de Janeiro”, “Rio 40 Graus” e as frases popularizadas pelo Profeta Gentileza evidenciam na própria pele a paixão do carioca pela cidade. Para Assis, que também tatuou um desses “símbolos cariocas”, o livro demonstraria “como a cidade está enraizada no corpo e na alma dessas pessoas”.

Neste sentido, o presente artigo não se propõe a fazer um estudo de recepção e interação entre os usuários e os produtores do conteúdo dessas páginas. Não obstante a importância e a sofisticação de estudos desta estirpe, o que se pretende aqui entender como certo imaginário é mobilizado para se compreender os elementos dessa cidade “apaixonante”, e como estes corpos tatuados acabam por mobilizar este tipo de discurso, que, como veremos, usualmente limita a cidade aos seus “cartões postais” no eixo zona sul e jargões típicos de um vocabulário “apaixonado” pela cidade”.

O pertencimento afetivo que as tatuagens em “Rio eu tatuo” engendram são impulsionadas por uma modalidade de consumo das imagens sobre um Rio de Janeiro específico. Desde a sua introdução em que a autora diz que “em todo lugar em que olha, há alguém demonstrando amor pelo Rio de Janeiro” (ASSIS 2016, p. 3), observa-se tradução de uma espécie de “ethos” da “cidade apaixonante”, marcando sobre os corpos ali reunidos as paisagens usualmente selecionadas pelo imaginário do “cartão-postal”. Nesse sentido, a obra de Júlia Assis conecta-se com o projeto “Rio, eu te amo” que, como já referenciado, ajudou a divulgar sua empreitada. Dessa forma, a redescrição de uma “paixão pelo Rio” também se configura como uma ramificação do projeto da “cidade mercadoria”, pois as paisagens visualizadas usualmente ajudam a “vender” o sítio urbano como potenciais sítios turísticos.    

Assim como os outros exemplos citados, o projeto de Assis opera um recorte espacial urbano restrito. Em “Rio eu tatuo”, tal lógica se apresenta não apenas nas tatuagens, mas também na realização das fotos. Nesse sentido, chama atenção a escolha das paisagens em que as tatuagens foram registradas. Em consonância com as marcas tatuadas, os cenários escolhidos apresentam como principal vértice o eixo espacial Zona Sul-Centro. Dessa forma, observa-se no primeiro pólo grande parte das fotos realizadas em lugares como a Praia de Ipanema, Praia de Copacabana, Enseada de Botafogo, Aterro do Flamengo, Lagoa Rodrigo de Freitas, Estrada Mundo Novo (Botafogo), Calçadão de Ipanema e de Copacabana. Já na região central, as paisagens concentram-se em registros na região do Arco do Lapa, Corcovado e nos trilhos do Bonde de Santa Teresa. Fora de tal contorno, encontra-se apenas duas fotos clicadas na região da Floresta da Tijuca. Não por acaso, o recorte Zona Sul-Centro também é predominante nas tatuagens visualizadas, apresentando como únicas exceções, para além de desenhos da própria Floresta da Tijuca, algumas representações imagéticas do desenho arquitetônico do Estádio do Maracanã, situado na Zona Norte da cidade.

Em “Rio eu tatuo”, tal lógica se apresenta não apenas nas tatuagens, mas também na realização das fotos. Nesse sentido, chama atenção a escolha das paisagens em que as tatuagens foram registradas. Em consonância com as marcas tatuadas, os cenários escolhidos apresentam como principal vértice o eixo espacial Zona Sul-Centro. Dessa forma, observa-se no primeiro pólo grande parte das fotos realizadas em lugares como a Praia de Ipanema, Praia de Copacabana, Enseada de Botafogo, Aterro do Flamengo, Lagoa Rodrigo de Freitas, Estrada Mundo Novo (Botafogo), Calçadão de Ipanema e de Copacabana. Já na região central, as paisagens concentram-se em registros na região do Arco do Lapa, Corcovado e nos trilhos do Bonde de Santa Teresa. Fora de tal contorno, encontra-se apenas duas fotos clicadas na região da Floresta da Tijuca. Não por acaso, o recorte Zona Sul-Centro também é predominante nas tatuagens visualizadas, apresentando como únicas exceções, para além de desenhos da própria Floresta da Tijuca, algumas representações imagéticas do desenho arquitetônico do Estádio do Maracanã, situado na Zona Norte da cidade.                                             

As referências aos elementos da natureza reaparecem algumas vezes em “Rio eu tatuo”. Para além dos coqueiros, há inscrições que apresentam desenhos de ondas marítimas, areia e nuvens brancas. O que se observa também que, em dois casos, tais elementos se agrupam numa mesma tatuagem. Constrói-se, então, um tropo metonímico (Rio-Brasil) em que a representação do mapa do Brasil, cujo conteúdo interno remete ao imaginário insular dos cartões-postais: praia, calçadão de Ipanema, desenhos dos morros e os já citados coqueiros.

Por outro lado, o ímpeto “notívago” da região central da Lapa e Santa Teresa opera num polo dicotômico às representações ensolaradas das paisagens da Zona Sul. Tal artifício se opera primeiramente na feitura das fotos, pois, em sua maioria, estas são registradas em preto ou branco ou mesmo durante a própria noite. Além do recorrente desenho dos Arcos da Lapa, presente também em registros fora da região central, nota-se também tatuagens do Bonde de Santa Teresa, em alguns cliques tantos dos trilhos quanto da garagem armazenadora dos carros . Isto posto, há espaços para imagens do “skyline” dos prédios de Santa Teresa como representativo da experiência da arquiteta Frances no bairro em que habita (ASSIS 2017: 28). De certa forma, essa tatuagem se esquiva dos estereótipos dos cartões-postais da Zona Sul e da verve boêmia noturna, expressando simplesmente uma paisagem tipicamente urbana, próxima da representação de outras metrópoles.

Em contrapartida ao recorrente eixo de cartões-postais Zona Sul-Centro, o “Rio eu tatuo” adiciona a representação da favela como uma paisagem presente nos corpos tatuados. Por um lado, a favela faz parte do imaginário sobre o Rio de Janeiro desde, pelo menos, a década de 1930. Porém, vale lembrar que tais interpretações usualmente construíam tal lócus como um ambiente de violência, desigualdade social e miséria social (no cinema, tal representação se desenha desde o perdido “Samba dos meus amores”) (Humberto Mauro, 1935). Porém, ao mesmo tempo que esses discursos (quase) hegemônicos no senso comum cresceram desde então, evidencia-se a contestação de tais estereótipos. Tal processo ocorre por duas razões paralelas. Há um decurso de longo prazo de fortalecimento de organizações não governamentais, militância e principalmente de grupos culturais que tecem, de maneira heterogênea, um debate sobre o direito do morador de favela como cidadão e sujeito do Rio de Janeiro, evidenciando a inevitabilidade de pensar a cidade sem o simbolismo dessas comunidades. Por outro lado, configurou-se, também, a descoberta da favela como ramificação do projeto da “cidade olímpica”, descortinando um possível espaço de novos consumidores e de paisagens a serem consumidas. Não por acaso, o projeto de pacificação das favelas mirou, em primeira instância, nas favelas localizadas no eixo Zona Sul-Centro.

Inserido neste contexto histórico, o “Rio eu tatuo” insere a favela como parte do seu imaginário de “cidade apaixonante”. A paisagem escolhida e as tatuagens incluídas no projeto fazem referência às casas coloridas do Morro do Vidigal, localizado entre os bairros nobres do Leblon e São Conrado e com vista privilegiada para o Morro Dois Irmãos. Diante da confirmação do projeto urbanístico internacional e da implantação da sua UPP em 2012, consagra-se tal espaço como parte do repertório das paisagens cariocas de “cartão-postal”, posicionando-o como uma “favela chique” e consequente sob um avanço avassalador de suas atividades turísticas. Não por acaso, conforme observado na próxima seção, esse mesmo lugar também estará presente na película “Rio, eu te amo”. Por outro lado, o projeto de Julia Assis acaba desdobrando um enquadramento similar à predominância espacial da simbologia da Zona Sul do seu projeto. Dentre as 763 favelas na cidade, segundo o último censo do IBGE de 2010, o recorte aqui operado é ínfimo diante da diversidade de experiências de vivências nas favelas do Rio de Janeiro.       

Nas entrevistas de “Rio eu tatuo”, encontram-se também narrativas de moradores que deixam a cidade e decidem registrar sua paixão em forma de tatuagem. A partida de Andrea para a Austrália mobilizou suas amigas Antonia Canto e Dani Cantagalli para registrarem os pontos turísticos do Cristo Redentor, Pão de Açúcar e Pedra da Gávea (ASSIS, 2016, p. 31). Já o grupo formado por Fernanda Reis, Angela Pereira, Ticiana Campana e Gabriela Small, mobilizado pela partida da última para Miami, decidiu “celebrar 30 anos de amizade intensa e verdadeira entre Leblon e Ipanema” (ASSIS, 2016, p. 38) tatuando o desenho do Morro Dois Irmãos nos seus respectivos braços. Tais lógicas narrativas estereotipadas reaparecem em “Rio, eu te amo”: forasteiros que se apaixonam pela cidade e moradores ufanistas dos seus pontos turísticos fazem parte dos personagens desenvolvidos pela película. 

Em seu relato, Ana Luisa Mansour conta que, ao dialogar com um catador de lata na saída de um teatro na região da Lapa, este lhe disse que “a humildade te eleva ao estado mais elegante”. Fotografada durante a noite, em consonância com a correlação Noite-Lapa, Mansour também exibe uma inscrição “(55) (21) Since Rio de Janeiro 1989”, fazendo menção ao código telefônico da cidade, o nome da própria e sua data de nascimento.

No mesmo relato de Mansour, ao rememorar sobre o encontro com o catador de lata, ela diz que “aprender a sair da Vieira Souto para a Lapa, para o Viaduto de Madureira, isso é o que o Rio de Janeiro tem de mais especial” (ASSIS, 2016, p. 18). Não obstante alguma regulação da legitimidade da fala da entrevistada, tal trajeto não é transcrito nas tatuagens retratadas em “Rio eu tatuo”, pois tal espacialidade dá conta principalmente do eixo Zona Sul-Centro. Conforme já mencionado, as únicas exceções fazem referências ao Estádio do Maracanã e Floresta da Tijuca. O próprio Viaduto de Madureira e outras representações da Zona Norte e mesmo da Zona Oeste não se configuram como paisagens a serem consumidas pelas tatuagens dos jovens urbanos neste projeto e, consequentemente, não são parte das experiências afetivas sobre a urbe em que habitam.

*As fotos reproduzidas neste texto são de autoria de Julia Assis.

“Rio, eu tatuo”: A cidade inscrita (e escondida) em jovens corpos