Por Ana Teresa Gotardo | Agosto/2018
A cidade do Rio de Janeiro é reconhecida mundialmente como destino gay-friendly, tendo sido eleita algumas vezes por sites especializados como destino gay mais sexy do mundo, melhor destino gay do mundo, melhor praia LGBT da América Latina, dentre outros[1]. Em 2011, na esteira dos investimentos em city branding na Marca Rio, a cidade viu no público LGBT[2] uma importante fonte de recursos para o turismo: em 2014, a prefeitura, em conjunto com a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (Ceds), realizou uma pesquisa sobre o perfil e o impacto econômico do turista LGBT no carnaval do Rio de Janeiro, constatando que “turismo LGBT representou 30,75% da receita de R$ 1,5 bilhão gerada durante o carnaval na cidade, o que garantiu um impacto direto sobre a economia local de R$ 47 milhões por dia, já que os gastos deste público ultrapassaram a barreira dos R$ 461 milhões nos dias de folia”.[3]
Em inglês, há uma palavra para definir férias voltadas para o público homossexual: gaycation (união das palavras gay e vacation)[4]. E assim foi intitulada a série documental sobre turismo (travel show ou travel documentary TV series) exibida pelo canal americano Viceland. Mais que um documentário seriado sobre turismo tradicional, Gaycation se propõe a conhecer a cultura LGBT sob a ótica de dois apresentadores homossexuais: Ian Daniel e Ellen Page, homem e mulher cisgêneros, ele de origem estadunidense, ela de origem canadense, ambos erradicados nos EUA.
Especialmente após as eleições do Brasil e do Rio de Janeiro como país e cidade-sede dos principais megaeventos esportivos mundiais (Copa do Mundo e Jogos Olímpicos de Verão), o Rio de Janeiro passou por um importante processo de reconstrução de sua “marca”, sob a perspectiva do city branding, com o objetivo de transformar a cidade em uma mercadoria a ser consumida por meio da busca por ativos intangíveis para a construção de uma reputação mercadológica do território. Os megaeventos, neste processo, tornam-se meio e fim para as mudanças “necessárias”, sob a lógica do city branding, em busca do posicionamento “desejado” da cidade/país no cenário do consumo turístico mundial, estratégia essa que é clara no Plano Aquarela[5], da Embratur[6].
Alguns dos ativos intangíveis percebidos nesta busca pela reconstrução da marca-cidade remontam à Reforma Passos, ocorrida no início do século XX e que precedeu a realização da Exposição Nacional de 1908 e da Exposição Internacional de 1922; no entanto, segundo Amâncio (2000), podemos encontrar referências até nas narrativas fundadoras, como a Carta de Caminha, tais como a ideia do paraíso idílico, da sensualidade, do exótico, imagens estas que se projetam nas telas dos espectadores em Gaycation, assim como nos mais diversos produtos audiovisuais estrangeiros. Na série em questão, os apresentadores visitam o Rio durante o carnaval, grande evento que compõe um dos imaginários mais cristalizados sobre a cidade nos cenários nacional e internacional. Festividade, alegria, liberdade sexual são componentes desse imaginário sobre a festa que atrai milhares de turistas e bilhões em divisas todos anos, sendo mais de 30% atribuídos ao público LGBT.
A alegria da festividade dá o tom ao início do programa, tom este em acordo com os conceitos da campanha Rio de Janeiro, marca registrada do Brasil, lançada pelo Governo do Estado em 2011. Os atributos da Marca Rio, os quais só seriam encontrados na cidade, são alegria, beleza, energia, estilo, inovação, paixão e paz[7]. Esses “atributos” são vividos de diversas formas pelos apresentadores: no sambódromo, no carnaval de rua, na praia, em um bar LGBT, no consumo dos “corpos perfeitos”. No entanto, momentos de dor, tristeza, emoção e medo permeiam todo episódio, fazendo contraste aos mais sólidos clichês de alegria e festividade atribuídos à cidade. Ellen Page ressalta o crescente número de pessoas transexuais assassinadas no Brasil, país com o maior número de pessoas trans assassinadas no mundo. Conclui, então, que o carnaval passa uma “sensação de segurança” por sua “extravagância sem limites”, mas, conversando com algumas pessoas, ela percebe que “o mundo lá fora é bem diferente disto”.
Apesar do reconhecimento no avanço das leis que garantem igualdade às pessoas LGBT no Brasil, o episódio em análise apresenta a violência simbólica e física que acomete o país, líder mundial em assassinato de pessoas LGBT. Falas e imagens otimistas são confrontadas a todo momento com fatos que comprovam a alta taxa de violência contra pessoas LGBT. Em oposição à alegria nata do brasileiro, uma violência naturalizada em discursos políticos e religiosos.
Os contrastes constantes entre alegria, beleza, tristeza, medo constroem uma narrativa de fácil consumo (os estereótipos sobre a cidade, tanto da ordem do belo quanto da ordem do medo, facilitam seu reconhecimento e identificação por parte dos espectadores), mas também colocam em discussão um tema de grande relevância para a sociedade – a LGBTfobia. As narrativas buscam tocar o espectador, de forma a despertar sentimentos e a empatia. Violência e medo também são componentes de grande interesse e repercussão midiática, ingredientes que ajudam a vender, que atraem espectadores, que são fortes argumentos no cotidiano das cidades e das produções midiáticas. Neste caso, vemos ainda a favela representada como o principal lugar da violência na cidade, embora a questão debatida não seja do tráfico, principal elemento norteador dos imaginários sobre medo e crime no Rio de Janeiro. A violência amplamente abordada em Gaycation é de uma ordem distinta daquela que compõe o imaginário internacional sobre a cidade. O documentário contradiz, por exemplo, a ideia amplamente difundida de que as UPPs resolveram os problemas da violência na favela ao apresentar uma entrevista com um ex-policial que mata LGBTs quase como um “esporte”, mas também como ofício. Ainda assim, a favela também é explorada como lugar a ser consumido, um lugar de festa, com clima de aceitação e paz.
A série mistura imaginários cristalizados sobre cidades, países e culturas estrangeiras com descobertas sobre realidades cotidianas muitas vezes repletas de dificuldades e violências as quais tocam pessoalmente seus realizadores. E assim desperta emoções, tais como espanto, indignação, tristeza, dentre outras, tanto nos apresentadores quanto nos espectadores quando se “descobre”, por exemplo, que essa cidade tão premiada como destino gay é, na realidade, repleta de preconceitos, dificuldades, e contribui para as estatísticas de país que mais mata LGBTs no mundo, em crimes de ódio.
Em um momento que documentários internacionais de turismo tentavam vender a ideia de que as UPPs resolveram os maiores problemas de criminalidade e que a cidade é segura para receber os Jogos Olímpicos com seus milhares de turistas, Gaycation não faz questão nenhuma de “mascarar” a violência física e simbólica a que são submetidas as pessoas LGBTs no país da “liberação sexual”. E fazem isso naquele que seria o maior momento desta liberação: durante um outro grande evento que atrai milhares de turistas todos os anos e possui grande repercussão internacional, o Carnaval. Ao relacionarmos essas questões com o fato de o episódio ter sido veiculado poucos meses antes das Olimpíadas (em março de 2016) e com a necessidade mercadológica da cidade-mercadoria de garantir a segurança durante a realização do megaevento, Gaycation desloca os sentidos, os “atributos” construídos para marca-cidade, especialmente quando se tem nas pessoas LGBTs um grande público consumidor em potencial.
Referências
AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.
GAYCATION: Brazil. Temporada 01, episódio 02. Apresentado por Ellen Page e Ian Daniel. Estados Unidos: Viceland, 2016. Extraído de: <https://pt-br.facebook.com/purpurinado/videos/ 587150158118500/>. Acesso em 11 jul. 2017.
[1] Algumas fontes pesquisadas: <https://www.villagevoice.com/2012/04/13/grindr-awards-for-gayest-cities-beaches-and-marital-destinations/> (pesquisa realizada e divulgada pelo aplicativo Grindr, acesso em 17 jul. 2017); <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/rio-e-eleito-pela-segunda-vez-destino-gay-mais-sexy-do-mundo.html> (acesso em 17 jul. 2017); <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/ noticia/2016-09/cidade-do-rio-e-eleita-melhor-destino-de-praia-LGBT-da-america-latina> (acesso em 17 jul. 2017); <http://www.travelchannel.com/interests/beaches/photos/best-gay-beach-destinations> (acesso em 17 jul. 2017).
[2] Fonte: <https://www.theguardian.com/travel/2011/jul/11/rio-de-janeiro-gay-tourism>. Acesso em 17 jul. 2017.
[3] Fonte: < http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=4671593>. Acesso em 17 jul. 2017.
[4] Fonte: <https://www.collinsdictionary.com/dictionary/english/gaycation>. Acesso em 16 jul. 2017.
[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO (Brasil). Plano Aquarela 2020: marketing turístico internacional. Brasília: Assessoria de Comunicação da Embratur, 2009. Disponível em: < http://www.turismo.gov.br/export/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/Plano_Aquarela_2020.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015.
[6] Estas afirmações fazem parte da pesquisa desenvolvida em meu mestrado no PPGCOM/UERJ, sob orientação do prof. Ricardo Ferreira Freitas, cujos resultados podem ser verificados em: GOTARDO, Ana Teresa. Rio para gringo: a construção de sentidos sobre o carioca e a cidade para consumo turístico. 2016. 164 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <http://www.ppgcom.uerj.br/wp-content/uploads/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Ana-Gotardo.pdf>. Acesso em 22 jul. 2017.
[7] O site da campanha (www.marcarj.com.br) não está mais disponível para consulta (tentativa de acesso em 26 de jul de 2017). Em pesquisas anteriores, nota-se que houve uma descontinuidade do programa após a mudança de governo (fim das postagens no Facebook, por exemplo).