Abril, 2025| Por Pedro Della Favera, bolsista de Estágio Interno Complementar (EIC) do LACON
Enquanto os créditos finais de um filme ainda rolam, celulares brilham com avaliações apressadas no Letterboxd, rede social com 13 milhões de usuários, dos quais 2,25 milhões estão na América Latina, segundo dados da própria plataforma, divulgados ao Estadão. No Spotify, o Wrapped 2024 transformou hábitos musicais em cartões virtuais compartilháveis, com novidades como “fases musicais” e mensagens de artistas, consolidando a lógica da performance até no lazer. Entre os adeptos do exercício, ciclistas competem em rankings invisíveis no Strava, enquanto o Pokémon Sleep pontua horas de repouso, exigindo que o celular permaneça na cama para monitorar o sono. Bem-vindo ao lazer produtivo, onde até o descanso virou mercadoria.
A Metrificação do Ócio e sua monetização:
A transformação do lazer em atividade quantificável não é mero acaso. O Skoob, plataforma brasileira adquirida pela Skeelo em 2023, reúne 10 milhões de usuários que ranqueiam leituras como se livros fossem troféus. Já o Letterboxd, com picos de acesso durante o Oscar, dobrou seu tráfego global em cinco anos, refletindo a necessidade de transformar consumo cultural em capital social. Mas qual o preço dessa qualificação?
Diversos estudos apontam que aplicativos de saúde e lazer frequentemente compartilham dados com terceiros, muitas vezes sem consentimento explícito, sob a justificativa de “personalização”. Na prática, o modelo é de mineração de dados, como alerta Shoshana Zuboff em “A Era do Capitalismo de Vigilância”.
Esses números alimentam algoritmos que monetizam gestos íntimos, como destaca Byung-Chul Han em “Sociedade do Cansaço”: vivemos uma era de autoexploração, onde o indivíduo é, ao mesmo tempo, senhor e escravo de si, convertendo até o sono em métrica de desempenho.
Gamificação ou Armadilha?
Jogos como Pokémon Sleep e despertadores interativos como Nintendo Alarmo ilustram a invasão da lógica produtiva no cotidiano. Ao transformar o repouso em competição por recompensas virtuais, o aplicativo exige que o usuário durma com o celular ao lado, fazendo ingenuamente a coleta de dados sobre a qualidade do sono. Não é um caso isolado: smartwatches e aparelhos lembram para “respirar fundo”, mas vigiam a produtividade do descanso, enquanto aplicativos de meditação cobram assinaturas para oferecer calma. A gamificação, que poderia promover o prazer e o engajamento, muitas vezes reforça a lógica da performance, tornando o lazer mais uma tarefa a ser otimizada. O paradoxo: quanto mais otimizamos o lazer, menos descansamos.
Byung-Chul Han e a Sociedade do Cansaço
A análise de Han encontra eco em dados reais. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva afirma que 65% da população não tem nenhum momento de ócio ou sem fazer nada, e, nos momentos de lazer, usar as redes sociais é a atividade mais praticada diariamente, com 79% dos participantes dedicando horas do dia a ela. A mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Letícia Chagas, reforça: a cultura do desempenho gera uma “luta interna”, na qual limites são vistos como fracasso, alimentando ansiedade e esgotamento. O resultado é um ciclo perverso: a tecnologia que promete eficiência rouba o direito à desconexão.
O ócio como ato de rebeldia
Em um mundo onde até o silêncio é interrompido por notificações, abraçar o tédio parece radical. Nada mais revolucionário do que citar Rubem Alves:
“Entregue-se, sem vergonha e sem sentimentos de culpa, às delícias do ócio. Aprenda a andar sem ter de chegar a lugar algum, simplesmente gozando o mundo que nos cerca!”
Resta saber se há espaço para imensa radicalidade em uma sociedade que confunde valor com produtividade. Desacelerar não é um gesto nostálgico, mas uma reivindicação de humanidade. Talvez aí esteja a chave para resgatar o que a lógica do capitalismo vigilante insiste em nos negar: o direito de simplesmente existir.
Referências:
- “Se eu pudesse viver minha vida novamente” por Rubem Alves, 2016
- “Sociedade do cansaço” por Byung-Chul Han, 2015
- “6 em cada 10 brasileiros não têm nenhum momento de ócio na semana, aponta pesquisa” Estadão, 2024
- “Sociedade do Cansaço: como enfrentar os sintomas de uma enfermidade psicossocial?” Revista Arco, 2022
- “Letterboxd: conheça a rede social dos cinéfilos, cada vez mais buscada | CNN Brasil, 2024
- Pokémon Sleep
- Nintendo anuncia lançamento do Alarmo, seu novo despertador interativo | Tecnologia | Galileu, 2024
- Spotify 2024 Wrapped, 2024
- Skeelo e Skoob se unem para transformar a leitura!, 2024
- Yes, those free health apps are sharing your data with other companies, The Guardian, 2013