Abril de 2025 | Pedro Della Favera, bolsista de Estágio Interno Complementar (EIC) do LACON
Na sombra do Estádio do Maracanã, um prédio histórico neoclássico na Rua Mata Machado representa, há quase duas décadas, um marco na luta indígena em contexto urbano. A Teko Haw Maraka´na, também conhecida como Aldeia Maracanã, ocupa este espaço desde 2006, tornando-se símbolo da resistência dos povos originários contra o apagamento sistemático imposto pelo Estado brasileiro;
A transformação de um museu em território de luta
O prédio foi inaugurado oficialmente em 19 de abril de 1953 como Museu do Índio, em comemoração ao então chamado Dia do Índio Americano, atual Dia dos Povos Indígenas. Sob a direção inicial de Darcy Ribeiro, o museu integrava o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão fundado por Marechal Rondon e posteriormente substituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Entre as décadas de 50 e 70, o museu consolidou-se como referência nacional em cultura indígena, recebendo diversas coleções etnográficas e realizando pesquisas significativas. O destino do espaço mudou em 1978, quando o Museu do Índio foi transferido para Botafogo, com a justificativa de que o terreno seria utilizado para a construção da estação de metrô Maracanã.
O prédio, abandonado após a transferência do museu, foi doado em 1984 à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e, posteriormente, cedido ao Ministério da Agricultura. Permaneceu sem uso efetivo até 2006, quando indígenas de diversas etnias – guarani, guajajara, pataxó e tukano – ocuparam o espaço, estabelecendo a Aldeia Marak’anà.
Copa do Mundo e a tentativa de remoção
Com os preparativos para a Copa do Mundo de 2014, o governo do Estado do Rio de Janeiro, sob a gestão de Sérgio Cabral, adquiriu o prédio em 2012. O plano oficial era demolir o antigo museu para “facilitar a circulação de torcedores” no entorno do estádio – uma ação que evidenciava a priorização de um evento temporário sobre os direitos dos povos originários.
O ano de 2013 foi marcado por duas violentas reintegrações de posse realizadas pela Polícia Militar. Após as remoções, o governo prometeu transformar o casarão em um Centro de Cultura, compromisso nunca cumprido. A operação policial cindiu o movimento, mas grande parte dos indígenas permaneceu na resistência, agora denominada Teko Haw Maraka’na.
Resistência contínua
Durante uma das operações de desocupação, o Corpo de Bombeiros precisou retirar, após 26 horas de resistência, o indígena Urutau José Guajajara, que havia subido em uma árvore na área do antigo Museu do Índio em protesto contra a remoção. Após ser retirado no dia 17 de dezembro de 2013, Urutau foi encaminhado ao Hospital Municipal Souza Aguiar e autuado por desobediência na 18ª Delegacia de Polícia (Praça da Bandeira). Além dele, outros 25 indígenas e apoiadores foram autuados por resistirem à ação policial de remoção.
A persistência da ocupação
Mesmo após as remoções forçadas, parte dos indígenas retornou ao prédio, mantendo a ocupação até hoje. Em 2013, o prédio foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela prefeitura do Rio, reconhecimento oficial que, contraditoriamente, não se traduziu em medidas efetivas de preservação.
Atualmente, a Aldeia Marak’anà abriga cerca de 12 famílias indígenas de diferentes povos. O espaço funciona como lugar de acolhimento e fortalecimento cultural para indígenas em contexto urbano, além de desenvolver atividades produtivas, educativas e culturais. A ocupação transformou-se em movimento social e universidade indígena, representando a luta contra a marginalização dos povos originários nas cidades.
A batalha judicial e cultural continua
Em 2024, Urutau José Guajajara, representando o movimento, apresentou à diretoria do Museu informações sobre a ação judicial que visa à demarcação do terreno como terra indígena e solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) voltasse a ingressar no processo. Paralelamente, os indígenas lutam pelo reconhecimento da Universidade Indígena Pluriétnica estabelecida no local.
A Associação Indígena Aldeia Maracanã (Aiam) reivindica o restauro do casarão histórico para abrigar o Centro de Referência da Cultura Viva dos Povos Indígenas – demanda que permanece ignorada pelas autoridades.
Visibilidade no carnaval
Apesar da falta de ações concretas por parte do poder público e das constantes ameaças, a Aldeia Marak’anà ganhou visibilidade significativa em 2025. A resistência indígena no Maracanã tornou-se foco do enredo da escola de samba Unidos de Bangu no Carnaval carioca, com o samba “Maraka’anandê Resistência Ancestral”. O desfile na Marquês de Sapucaí não apenas ampliou o debate público sobre a resistência dos povos originários, tema já abordado no enredo de 2024 do Salgueiro – “Hutukara”, baseado no livro “A Queda do Céu”, escrito pelo líder Yanomami Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert – mas também ressaltou o direito à cidade e à memória desses povos, elevando a luta indígena a um dos palcos culturais mais importantes do Brasil.
A Aldeia Marak’anà permanece como o principal espaço de referência indígena na zona norte do Rio de Janeiro. Enfrentando ameaças constantes de remoção, disputas políticas e especulação imobiliária, o movimento mantém viva a luta ancestral e a memória dos povos originários. Seu significado transcende a questão da moradia: representa a recusa ao apagamento cultural, histórico e territorial sistematicamente imposto pelo Estado brasileiro, por meio de políticas de remoção, deslegitimação e violência institucional.
Graffiti na Aldeia Maracanã, Rio de Janeiro, 2014.
Foto: AmandaLemosNeuroMat