Por Sílvia Helena Belmino | Abril/2019

Cheguei à cidade de Medellín, Colômbia, em 25 de fevereiro de 2019, sem saber ao certo o que me esperava. Ainda impactada pelo medo de voar desenvolvido nos últimos meses, descobri em Bogotá que o avião não aterrissaria em Medellín. O meu voo dirigia-se para o aeroporto José Maria Córdova, cidade de Rionegro, no alto das montanhas que circulam a capital da Província de Antioquia, aproximadamente 35 quilômetros do centro de Medellín. No aeroporto, peguei um ônibus que eu achava que me levaria ao centro da cidade de Medellín, outro equívoco de quem não compreende as referências locais. Na realidade, fui parar no Terminal Rodoviário Norte. Lá, o  motorista, que dirigiu muito rápido o micro-ônibus e parecia falar na mesma velocidade, disse-me para descer, pois aquele era o ponto final. Foi dessa maneira que cheguei ao lugar em que eu passaria os próximos 40 dias para a pesquisa de campo de pós-doutorado. Lembrei-me de uma frase de uma reportagem sobre viagem turística, não era bem o meu caso, mas de certa forma o roteiro servia: a viagem se vive três vezes: quando se planeja, quando se vive e quando se recorda. Eu começava a segunda etapa da viagem.

Viver Medellín era um desejo tanto acadêmico quanto pessoal. E para tal aventura me preparei e fiz planos. Todavia, como nos lembra Gaston Bachelard, o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão (2006). Portanto, a construção social da realidade, ao contrário do que se pensa, é essencialmente simbólica e arquitetada com as informações recebidas cotidianamente. Parte do imaginário que eu carregava sobre a Colômbia, embora tenha trabalhado muito para desconstruí-lo, foi constituído com imagens do livro Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, séries sobre Pablo Escobar, o país da cocaína e de mortes violentas. Essa percepção à distância é parte de um olhar ingênuo, é certo, mas um ponto de partida que não se deve desprezar.

Estudar as mudanças realizadas em Medellín nos últimos anos, e que lhe renderam o título de primeira cidade inovadora do mundo, pode tornar mais denso o olhar de fora. Em 2013, Medellín recebeu o título de cidade do ano em inovação, premiação concedida pelo City GroupThe Wall Street Journal e Urban Land Institute (ULI), em decorrência de projetos desenvolvidos nas áreas de mobilidade e tecnologia.  Ao chegar procurei localizar as imagens que mostravam essas realidades distintas de Medellín. Afinal, eu tentava compreender como imagens produzidas midiaticamente sobre o espaço urbano afetam a construção do imaginário. Assim, minha pesquisa percorre a disputa de sentidos entre os imaginários construídos pelo modelo de inovação e pelo Cartel de Medellín.

Atualmente, Medellín é apresentada aos turistas como o lugar da eterna primavera, durante todo o ano mantem uma temperatura entre 15 e 24 graus, também recebe a denominação de cidade das flores – uma das principais festas da cidade – e “la tácita de plata y empório medico de Sudamerica”. Enfim, a cidade situada no Valle de Aburrá, fundada em 1616 com o nome de San Lorenzo de Aburrá, é objeto de pesquisa acadêmica em diferentes áreas do conhecimento. No Brasil, a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações registra 15 trabalhos sobre Medellín, porém nenhum na área de comunicação.

A cidade também é conhecida como o lugar onde viveu e atuou El Capo, El Patrón, entre outras denominações recebidas por Pablo Emilio Escobar Gaviria, o mais famoso narcotraficante colombiano. Nas décadas de 1980 e 1990, Dom Pablo foi considerado um dos homens mais ricos e mais perigosos do mundo. Quase 25 anos após sua morte, Escobar continua sendo atração para quem visita Medellín. Muito embora os guias governamentais desejem apagar o triste passado de violência e mortes motivadas pela comercialização de drogas, há oferta de mais de 15 tours, entre os quais encontra-se uma visita a casa museu sob comando do irmão de Escobar, Roberto Escobar. As chamadas do tour são interessantes: Pablo Escobar, Secretos de un capo; Tumba Pablo Escobar: Tumbas famosas do Cartel de Medellin; Tour Pablo Escobar completo. São alguns dos exemplos dos percursos oferecidos.

Casa onde mataram  Pablo Escobar. Fonte: Registro feito pela autora.

Fabio La Rocca (2018), ao propor sua climatologia como metodologia de estudo dos fenômenos urbanos, estabelece inicialmente que se tenha um olhar para as situações cotidianas. Para ele, faz-se necessário observar as transformações constantes no ambiente urbano, não somente nas formas, mas também na forma de experimentação dos espaços. Para La Rocca (2018, p. 18 e19):

Trata-se, nesse caso, de produzir uma reflexão ‘ontologia da atualidade’ que determina nosso pensamento e nosso olhar sobre o mundo atual como ele é. Essa ontovisão da atualidade das ambiências urbanas deve coincidir com uma temporalidade própria de uma época.

A proposta de pesquisa é conhecer a ambiência urbana de Medellín e compreender o processo de elaboração simbólica que emerge das práticas dos roteiros turísticos amparados no narcotráfico proposto pelo aplicativo Airbnb como forma de experiência de cidade. Os imaginários midiaticamente construídos são apropriados pelas organizações e se contrapõem as ações de marketing e comunicação das governanças. A ideia é ter uma experiência urbana que contemple a fragmentação de visões sobre a cidade de Medellín.

 

Os Passantes e as Passagens

A flânerie nos conduz para um tempo desaparecido, diz Sergio Paulo Rouanet (1992) ao escrever sobre o flâneur no livro Passagens de Walter Benjamin (2009). Na tentativa de conhecer a cidade em um espaço-tempo delimitado, 40 dias, me desloco ao centro de Medellín, em busca do desconhecido, em busca de experimentar a cidade. Com esse propósito, parti a pé do bairro de classe média alta, Laureles, lugar em que me hospedei na primeira semana, para o Centro. Logo no início da caminhada percebi não haver muros nas casas. São os jardins que delimitam os espaços entre a calçada e a casa. Já no imaginário da maioria dos brasileiros os muros significam segurança. Por que uma cidade indicada em dados estatísticos de 1980 e 1990 como uma das mais violentas do mundo não tem muros? Essa questão me deixou intrigada. Contudo, nem todos os bairros de Medellín são assim, mas de um modo geral (não andei em todos) não há muros. A construção visual inicial da cidade é feita de recolhimentos de algumas imagens do lugar (SILVA, 2001), o que nos possibilita construir imaginários, e para mim a não existência de muros foi à primeira imagem de Medellín.

Fonte: Registro feito pela autora.

Ao flanar pelo centro da cidade, local ideal para compreender um pouco da cidade, me deparei com lugares que, de certa maneira, corroboravam com a hipótese que eu havia levantado sobre o modelo de cidade inovadora, a saber: é mais uma estratégia de mercado com o objetivo de torná-la uma cidade-mercadoria (SANCHEZ, 2010). Na medida em que me aproximava do Centro, local turístico e comercial, observei um significativo número de transeuntes e a distinção clara entre os públicos. Na Praça Botero, local das obras de Fernando Botero, na Casa de Cultura e em frente ao Museu de Antioquia, concentram-se os visitantes. Descendo da estação do Metrô de San Antonio e nos bares e botecos, que circundam a praça, ficam os moradores. Entre as pessoas que estavam na praça havia trabalhadores retornando para casa, vendedores de arepa, mazamorra, empanadas, souvenires, sucos e tinto, nosso conhecido cafezinho. Também havia prostitutas, pedintes e moradores em condições de rua, que poderiam ser tantos dependentes químicos quanto refugiados da Venezuela, todos maltratados. Posteriormente, fui informada por um taxista que me levou para casa que “o governo retirou grande parte dos indigentes para deixar o espaço mais bonito para os turistas, mas com a crise na Venezuela tinha aumentado muito a presença de pessoas no Centro”[1]. Na praça e em volta dela há uma explosão de cores, sons, cheiros e luzes.

Fonte: Registro feito pela autora.

 

Cidade Inovadora

O projeto cidade inovadora apresenta-se como modelo urbanístico para solucionar problemas de mobilidade urbana, sustentabilidade e questões sociais atreladas ao uso de novas tecnologias. Grande parte dos lugares turísticos, bibliotecas públicas, Comuna 13, aeroportos possuem internet gratuita. O Parque Explora é um espaço que, de certa maneira, reflete esse modelo de cidade. É um parque museu de ciências inaugurado em 2007, próximo de vários bairros com experiências interativas de ciências e tecnologias, cujo eixo central é de transformação social e urbana em território margeado pela exclusão social e falta de acesso a serviços fundamentais. Observa-se na descrição do museu no site que há uma integração entre a universidade, empresas e governo:

Construir este sueño integrador de cultura, urbanismo, educación y, por supuesto, poner en el centro de la conversación a la ciencia y a la tecnología, supuso un logro excepcional, aún vigente ,al conectar voluntades políticas, académicas, empresariales y sociales con un equipo de saberes interdisciplinares para iniciar una empresa cultural cuyo activo mayor ha sido la construcción permanente de contenidos.

É possível encontrar propagandas do governo e chamadas à população para colaborar com o novo projeto em diferentes pontos da cidade. Observei isso no metrô, nas praças e no parque aquático.

Fonte: Registro feito pela autora.

 

Como as Diferentes Mídias Produzem Imagens e Imaginários para o Consumo da Cidade?

Medellín possui 16 comunas, que concentram vários bairros. A mais conhecida é a Comuna 13. Uma espécie de vitrine para o modelo de transformação de áreas violentas e com baixo poder aquisitivo.  De acordo com o  Plan de Desarollo local – Comuna 13- San Javier, elaborado pela prefeitura de Medellín em 2014 :

Es de reconocer, que a partir de la inversión social, realizada por la Alcaldía de Medellín, se empezaron a ejecutar iniciativas que buscaban mejorar la calidad de vida de las y los habitantes de la Comuna 13 – San Javier. Proyectos macro como el Metrocable de Occidente, el Parque Biblioteca San Javier, los Colegios de Calidad y diferentes espacios de recreación y encuentro, cambiaron el entorno físico, social y cultural de la comuna, proceso que pudo ser realizado gracias a lacoyuntura favorable a nivel político generada con la negociación en diciembre de 2003 de la dejación de armas de más de 4.000 hombres pertenecientes a las autodefensas.

A minha visita à Comuna 13 foi agendada na internet e consistia em um tour de quatro horas pela comunidade guiada por um morador local. O ponto de encontro era a estação do metrô de San Javier. O guia chamado Jhon reuniu os estrangeiros que participariam do tour- franceses, portugueses, espanhóis, mexicanos, argentinos e brasileiros. O idioma utilizado foi o espanhol e as explicações iniciais procuravam deixar claro que não se deveria ter medo em portar os celulares, carteiras ou câmaras. Além disso, a orientação para não dar dinheiro às crianças. E o mais importante, disse o guia, temos wi-fi grátis. A pé fomos caminhando em direção ao pé da montanha, o início do tour. O guia passou a narrar o surgimento do bairro, as transformações e a participação dos diversos grupos que atuaram, e ainda atuam, nesse território: narcotraficantes, os guerrilheiros da Farc (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia–Ejército del Pueblo), Paramilitares, ELN(Ejército de Liberación Nacional) e os los Pepes (Os Perseguidos por Pablo Escobar).  Ele explicou que as mudanças ocorridas no bairro foram implantadas por meio de uma política pública governamental em parceria com a comunidade.

Para Jhon a violência e as ações desses grupos, que obrigaram muitas famílias a deixar o lugar com medo de morrer e ver seus jovens na atividade do tráfico, fizeram também com que a população resolvesse participar e  propor ações para melhorar a vida no bairro. Várias atividades são desenvolvidas como diferentes esportes, grafiti, danças e projetos de formação profissional. Há escolas, bibliotecas e espaços de lazer.  As imagens do lugar que os turistas mais buscam são os grafitis, as escardas rolantes e o metro-cable. O lugar é uma vitrine desse projeto. Em Santo Domingo, que também é uma comunidade e tem metro-cable, não há uma estratégia de comunicação tão eficiente. O local tem uma paisagem muito bonita que permite ver Medellín de cima para baixo. A minha primeira impressão foi a de me encontrar em um lugar organizado para ser mostrado aos visitantes. Ainda é cedo para emitir uma conclusão.

Fonte: Registro feito pela autora.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, G. A Epistemologia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1977.

BENJAMIN, Walter. Passagens de Walter Benjamin. TIEDEMANN, Rolf; BOLLE, Willi; MATOS, Olgária Chaim Feres (Org.). Trad. Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG/Imprensa Oficial de São Paulo, 2006.

LA ROCCA, Fabio. A cidade em todas as suas formas. Porto Alegre: Sulinas, 2018.

MONGIN, Olivier. A condição urbana – a cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

ROUANET, S. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?Revista USP, (15), 48-75, 1992. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i15p48-75>.

SANCHEZ, F. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó, SC: Argos, 2010.

SILVA, Armando. Imaginários, estranhamentos urbanos. São Paulo: SESC SP, 2015.

______________. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva; Bogotá, Col: Convenio Andres Bello, 2001.

 

Sites:

Airbnb

Parque Explora

Governo de Medellin.

 

[1] Foi uma conversa informal. Apenas utilizei o trecho para ilustrar.

Olhares Iniciais: descobrindo Medellín