Por Flávia Barroso | Outubro/2018

 

 A gente não briga com armas, não briga com faca, a gente briga com a fé, com a roupa branca, com os colares no pescoço. Mãe Edelzuita de Oxalá[1]

A história do porto carioca se confunde com a história da própria cidade do Rio de Janeiro. No período colonial, o porto teve um papel decisivo, pois além de ser um importante ponto de reabastecimento na longa viagem de Portugal rumo ao Rio da Prata e também para as embarcações portuguesas que atravessavam o Atlântico Sul vindas da Europa, alimentou o que foi o principal elemento da economia da cidade ao longo de todo o período colonial, e até boa parte do século XIX: o tráfico de escravos. No começo do século XIX, a chegada da família Real destaca ainda mais a importância do porto para o Rio, tendo em vista que a principal ação política de D. João VI para a América Portuguesa foi a abertura dos portos à Grã-Bretanha. Já na segunda metade do século XIX, quando o Brasil desempenhava um papel importante na crescente divisão internacional do trabalho com a produção e comercialização do café, a importância do porto foi impulsionada pela Abolição da Escravatura e pelo advento da República. Com a queda na produção cafeeira, no entanto, as mudanças que ocorreram na economia afetaram o país e, em especial a Capital da República, que se transformou “num grande centro cosmopolita, ligado intimamente à produção e ao comércio europeus e americanos” (CHALHOUB, 2001, p. 250). Assim, o porto da cidade perdeu sua importância como exportador de café e passou a se configurar em um mercado de consumo, um centro distribuidor de artigos importados (CHALHOUB, 2001), o que justificaria sua remodelação no que se configurou como a primeira grande intervenção urbanística pela qual passou o Rio de Janeiro, já no começo do século XX – a “Reforma Passos”.

Cerca de cem anos mais tarde, a região passou por novas intervenções, numa parceria entre a Prefeitura da cidade, os governos estadual e federal e a inciativa privada. A empresa de capital misto Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária (CDURP) administra a operação urbana do Porto Maravilha[2], cujo projeto contempla quatro eixos na sua execução – estímulo ao uso residencial da região; melhoria na infraestrutura; incentivo às atividades de comércio e à indústria que se desenvolvem na área; e promoção da cultura e entretenimento na região. Observa-se, no entanto, um interesse especial pelas diretrizes relacionadas à cultura e entretenimento, evidenciado tanto pelos discursos de sujeitos envolvidos no processo, como pela materialização desses discursos, através, por exemplo, da construção de dois monumentais equipamentos culturais que abrigam o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, ambos localizados na Praça Mauá. Bem como da criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, cujo grupo de trabalho curatorial se propõe a construir diretrizes para implementação de políticas de valorização da memória e proteção do patrimônio cultural da região.[3] No entanto, para além de sua relevância comercial e do resgate de uma história dita oficial, o Porto é um espaço de disputas simbólicas em busca da (re)construção de sua memória e de sua identidade.

O Cais do Valongo, desde julho de 2017, foi alçado a Patrimônio Histórico da Humanidade, pela UNESCO. “Redescoberto” nas escavações das obras do Porto Maravilha, o sítio arqueológico faz parte do Circuito Histórico de Herança Africana[4], criado pelo Programa Porto Cultural, que é composto ainda pela Pedra do Sal, Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Cemitério dos Pretos Novos e Centro Cultural José Bonifácio.

Figura: Circuito Histórico e Arqueológico de celebração da herança africana. Fonte: Site portomaravilha.com.br

 

Construído em 1811, com objetivo de retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados, o Cais do Valongo foi o principal porto de entrada escravista das Américas, por onde desembarcaram mais de 1 milhão de negros africanos escravizados. Ao longo dos anos, sofreu sucessivas intervenções. A primeira delas, em 1843, foi para receber a Princesa das Duas Sicílias, Teresa Cristina Maria de Bourbon, noiva do (então) futuro imperador, D. Pedro II. Passou, assim, a se chamar Cais da Imperatriz. Com as reformas urbanísticas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, no início do século XX, o Cais da Imperatriz foi aterrado, em 1911.

A relevância histórica do Cais do Valongo é indiscutível, e sua visibilidade, assim como dos demais pontos históricos que compõem o Circuito Histórico Africano, destaca a importância da diáspora africana para a região portuária do Rio de Janeiro, bem como para o Brasil. No entanto, seu resgate pelo poder público se deu no momento em que a cidade estava sendo preparada para megaeventos mundiais, em que o multiculturalismo e a afirmação da diversidade configuram-se em atributos que passam a agregar valor ao projeto de marca da cidade, fazendo parte do receituário para o desenvolvimento de uma cidade global.  A valorização simbólica dos espaços urbanos, que parte de um modelo neoliberal de gestão urbana, pressupõe que as cidades, assim como as empresas, devem criar condições para competir umas com as outras, devem desenvolver e divulgar atributos que atraiam novos negócios, turismo, tecnologia, produtos e serviços, e que as diferenciem no cenário de cidades globais. São cidades tratadas ora como empresa, ora como mercadoria, reconfiguradas por uma gestão global que trata o urbano como um negócio (SANCHEZ, 2010; VAINER, 2000). Esse novo modelo de planejamento urbano privilegia os interesses do mercado através das parcerias público-privadas, que são concretizadas, entre outros, em “revitalizações” de zonas portuárias e centros históricos degradados.

No caso do Cais do Valongo, em notícia do site portomaravilha.com.br, é possível encontrar indicações de que já se sabia desse sítio soterrado, conforme entrevista de Rubem Santos, fundador do Centro Cultural Pequena África, parcialmente transcrita a seguir.

Em 2009, antes de a prefeitura pensar no Porto Maravilha, eu já havia falado com o prefeito sobre o Cais do Valongo. Só que à época ninguém acreditava muito. Eu também não insisti porque não tinha dados concretos.

Vale ressaltar que os pontos escolhidos pela Prefeitura para o turismo patrimonial da cultura negra representam parte da presença histórica dos negros na zona portuária. A região da Pequena África[5] concentra não apenas seis, mas mais de quarenta lugares representativos da cultura afro-brasileira, como aponta o aplicativo “Passados Presentes”, desenvolvido a partir do Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil – um trabalho coordenado por Hebe Mattos, Martha Abreu e Milton Guran, no Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF), com apoio do Projeto Rota do Escravo, da Unesco, em 2014[6]. Dezenove pontos principais estão destacados no mapa, outros 42 podem ser acessados na função “Perto de Mim” do aplicativo.

 

 Figura: Mapa do roteiro Pequena África, do aplicativo Passados Presentes. Fonte: site passadospresentes.com.br

Ao observar as narrativas institucionais propostas pelo site portomaravilha.com.br, identifica-se uma estratégia de comunicação institucional da Prefeitura do Rio que parte dos lugares de memória (NORA, 1993), lançando mão de lugares históricos, como o Cais do Valongo e outros pontos históricos da região, para promover um resgate de repertórios simbólicos coletivos, com vistas a uma reconstrução da identidade cultural na região do Porto. A memória coletiva (HALBWACHS, 2006) é utilizada, assim, como recurso discursivo, se configurando em elemento constituinte do sentimento de identidade. São memórias compartilhadas coletivamente que ajudam a constituir os sujeitos culturalmente como comunidades, coletividades (POLLACK, 1989). O que remete à dimensão política da construção dessas memórias, em que algumas histórias são contadas e outras silenciadas. O que está lembrado e o que está esquecido é a questão chave que orienta o senso de “quem somos” e “quem desejamos ser”. Escolher o que será lembrado, como e quando será lembrado, é traduzir a memória em discursos manejáveis, é acionar, no presente, a memória como recurso para ancorar o planejamento do futuro. Pollack (1989) aponta, ainda, para a possibilidade de se mascarar o caráter uniformizador e opressor quando se estabelece fronteiras sociais e definição de lugares pela memória coletiva. Assim, observa-se que, em relação à Pequena África, os discursos institucionais ecoados pelo poder público se apoiam em vestígios do passado, em enunciações outrora produzidas e que, por vezes, se repetem, para realizar um trabalho de enquadramento de memória (POLLACK, 1989).

Desde 2012, no Cais do Valongo, as “Mães de Santo” conduzem, no primeiro sábado do mês de julho, um ritual de limpeza, purificação e homenagem aos espíritos ancestrais dos escravos que desembarcaram no Rio de Janeiro, no período do Brasil Colonial[7]. Em visita ao Cais do Valongo, a autora acompanhou a 5ª edição da Lavagem do Cais do Valongo[8]. Em 2018, a 7ª edição do evento marcou um ano do sítio arqueológico como Patrimônio da Humanidade.[9]

 

Figura: Cerimônia de 5ª Edição da Lavagem do Valongo. Fonte: Foto de autoria da pesquisadora.

O ritual envolve cantos religiosos, água de cheiro, flores e votos de amor e paz, misturados às batidas dos atabaques dos blocos tradicionais de carnaval Filhos de Gandhi, Lemi Ayó e Orumilá. A presença do poder público na Lavagem do Cais do Valongo resume-se à institucionalização do evento, que passa a fazer parte do calendário anual do porto. Por outro lado, religiosos, transeuntes, integrantes dos blocos se apropriam do espaço de forma criativa, misturados ao consumo de bens simbólicos das barracas de comida e artesanato expostas no local, evidenciando que, para além do resgate de uma história dita oficial, entre o individual e o coletivo, entre as objetividades e subjetividades, o Cais do Valongo é apropriado por diversos atores com interesses distintos. Oferecido ao consumo mundial pelo espetáculo, é um espaço de disputas simbólicas, que segue em busca de sua ancestralidade, de seus valores, suas historicidades[10] e seus significados para a região portuária, mas não sem conflitos.

 

Referências 

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro. Sp: Unicampo, 2001.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.

HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

SANCHEZ, F. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó, SC: Argos, 2010.

VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: Arantes, Otília; Vainer, Carlos; Maricato, Ermínia (orgs). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

www.portomaravilha.com.br, vários acessos

 

Notas de fim

[1] Fala de Mãe Edelzuita de Oxalá aos presentes na 5ª Lavagem do Cais do Valongo. Gravação realizada pela autora (jul/16).

[2] Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Lei Municipal complementar n. 101/2009.  Disponível em  http://www.portomaravilhario.com.br/media/legislacao/2010/06/LC101__23112009.pdf

[3] Ver <http://www.portomaravilha.com.br/circuito>.

[4] Informações sobre o Circuito Histórico de Herança Africana disponíveis em <http://www.portomaravilha.com.br/circuito>, acesso em jan. de 2018.

[5] Expressão cunhada pelo artista e compositor Heitor dos Prazeres, no início do século 20, para designar a região portuária, área de forte presença negra na região central da cidade.

[6] Informações sobre o projeto “Passados Presentes” disponível no site <http://passadospresentes.com.br/site/Site/index.php>, acesso em jan. de 2018.

[7] Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/africadetalhe/cod/3>, acesso em jan. de 2018.

[8] A 5ª Lavagem do Cais do Valongo aconteceu no dia 09 de julho de 2016, na Praça Jornal do Comércio.

[9] Disponível em <https://oglobo.globo.com/rio/lavagem-do-cais-do-valongo-marcara-um-ano-de-conquista-de-titulo-de-patrimonio-mundial-pela-unesco-22859577>.

[10] Entende-se o conceito de historicidade, a partir de Agnes Heller (1993, p. 389), não como “[…] aquilo que acontece conosco, tampouco alguma coisa na qual entrássemos como uma vestimenta”, mas como consciência da ação do homem no mundo que se faz sempre num espaço-tempo.

Cais do Valongo: em busca de identidade, memória e ancestralidade