Texto de Laiza Villaça*

 

No livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (Seguinte, 2020), a autora cearense Jarid Arraes traça narrativas de personalidades como a primeira mulher negra eleita no Brasil e a que curou a doença de um presidente com seus saberes ancestrais. Para celebrar a cultura nacional, especialmente a nordestina, Jarid se utiliza de uma linguagem mais popular e acessível de forma puramente proposital. Em versos alinhados e ritmados, o compasso das histórias ali contadas informam e impactam emocionalmente o leitor ao longo das 176 páginas. Os poemas são escritos em forma de cordel, brincando com inversões sintáticas nas estrofes e garantindo uma musicalidade ao longo da leitura. 

A obra propõe um resgate de guerreiras nacionais, como indica a sua dedicatória “Às heroínas do presente, por acreditarem num futuro possível”.  Ainda na pré-produção do livro, um dos elementos de maior cuidado na pesquisa da autora foi reunir dados como a origem, a família, a trajetória educacional e a ocupação dessas mulheres. Isso embasa a importância histórica delas para a sociedade passada e contemporânea, o que mais tarde seria confirmado nos versos musicados dos cordéis, de assuntos como feminismo negro e atos de resistencia, que colaboram na construção da memoria dessas heroínas. 

A cordelista reescreve o conceito de heroísmo, provocando diferentes percepções a respeito do que constitui um herói, e como tal reconhecimento foi negado às mulheres negras. Uma heroína pode ser uma mãe que deseja mais que uma vida esfomeada, como Carolina Maria de Jesus, assim como pode ser faminta por batalhas pela liberdade como Dandara que rejeitou a rendição. Ato de coragem que, aliás, também fez parte da jornada de Esperança Garcia que acreditou nos direitos humanos – discussão não reconhecida na época -, ao escrever uma carta para o governador denunciando os maus-tratos imposto aos escravos. Como já visto, neste livro o que torna cada uma dessas mulheres em heroínas é a resistência que acompanha suas ações em meio aos cenários que enfrentam.

Quando situado na tese reparativa do livro, o leitor se deleita entre estrofes diversas. Algumas delas são puramente objetivas sobre o que se é contado, na busca de contextualizar quem lê do que se passava na história do Brasil no período que elas viviam, mas também movidas por elogios poéticos a essas mulheres, destacando também a própria indignação da autora pelo apagamento iminente que elas sofreram. 

O livro segue no viés de reparação histórica, de modo que cada ação das heroínas ganham uma linha emocionada celebrando a coragem que elas tiveram de fazer aquilo. Como se, juntos, autora e leitores se encontrem nas ideias das protagonistas. Ao fim de um capítulo como o de Laudelina de Campos Melo, os sentimentos são ambíguos: há a raiva pelo esquecimento ao lado do orgulho de finalmente conhecer mais do que está escrito nos livros que narram a história oficial.

Jarid também cria um diálogo entre o velho e o novo, denunciando a manutenção sistemática de uma história única que retrata as mulheres negras como vítimas, independentemente do tempo em que vivem ou viveram. Quando se depara com  modos errados de se referir a mulher negra — aqueles muito usados antigamente, como “mulata” — a autora corrige a colocação, reescrevendo “negra”, como no cordel sobre Maria Firmina dos Reis. Mencionando também diversas situações a que a mulher negra é submetida, contra sua vontade, a um padrão comportamental,  de maneira a limitar o que ela pode alcançar e ser na vida, o que se familiariza com alguns discursos contemporâneos que visam controlar o corpo feminino. 

A coleção não indica um encerramento, já que, ao fim, propõe ao leitor espalhar o que leu para que as próximas gerações cresçam com o “próprio panteão de heroínas negras brasileiras”, como descrito na contracapa do livro. Um livro como esse, de conscientização racial e de gênero, deveria estar nos planos de ensino desde o início da trajetória escolar. Garotas negras têm o direito de saber as histórias de heroínas negras que fizeram do futuro um lugar possível para que vistam cada pedaço de sua ancestralidade com orgulho. Devem se sentir representadas na história desde seus primeiros anos de vida. Mais do que o público feminino, a consciência é universal. Logo, esse livro também. 

Por muito tempo a comunidade negra teve sua memória saqueada, inúmeras foram as tentativas de diluir a excelência negra à insignificância. O pertencimento não é acessível quando se cresce sem saber a história que nos antecede. A coletânea de cordéis de Jarid Arraes tem um encontro curioso com uma das teses de Beatriz Nascimento no documentário Orí, de 1989, que afirma: “o corpo negro é memória; é identidade e resistência”.  Isso se prova a cada heroína apresentada pela autora. Essas mulheres perdem o acesso material a quem são, mas mantêm viva a memória. Elas sabem quem são e isso as motiva a sobreviver para, então, viver. 

Referências: 

ARRAES, Jarid. Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Seguinte, 2020

SILVA, Gabriela. ALGUMAS REFLEXÕES LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS SOBRE O LIVRO HEROÍNAS NEGRAS BRASILEIRAS EM 15 CORDÉIS, DE JARID ARRAES. Artigo, 2020

ALMEIDA, Lui. AS HEROÍNAS DA NEGRA NAÇÃO DE JARID ARRAES. Artigo, 2021

 

*Estagiária do LACON UERJ, com supervisão de João V. Bessa

Um resgate ancestral: Heroínas Negras Brasileiras