Texto: Iris Souza* e João V. Bessa
O coletivo BaixadaCine atua desde 2016 com a missão de proporcionar à juventude de cidades como Belford Roxo e Duque de Caxias o acesso ao fazer cinematográfico. Com esse objetivo em mente, dez jovens se mobilizam para realizar cursos e oficinas voltadas para o ensino e prática das técnicas do cinema, sessões de debate e conversa, além de exibições de filmes. O grupo é diverso, formado por jovens negros, LGBTQIAPN+, oriundos da classe trabalhadora. Por conta disso, o BaixadaCine põe em pauta a representatividade de raça, classe, gênero e sexualidade.
Nesta entrevista realizada por email com representantes do coletivo, tratamos de sua atuação como um importante centro de cultura com sede em Belford Roxo, a cidade do amor. Através da realização de sessões de exibição de filmes de curta e longa metragem, rodas de debate e com a criação de uma escola de cinema, o BaixadaCine busca estabelecer outras relações entre a comunidade da Baixada Fluminense e o universo audiovisual.
Sua atuação nos mostra que, em primeiro lugar, há a desigualdade do próprio acesso ao cinema e aos meios para a realização de projetos audiovisuais na região, em comparação com a capital do estado – principalmente ao centro e zona sul, que concentram o maior número de salas de cinema. Para além disso, a partir de seu exemplo percebemos que a juventude está atenta à sua realidade e disposta a questioná-la, agindo em prol da transformação social e da democratização do audiovisual no estado do Rio de Janeiro.
Confira na íntegra a entrevista:
Como surgiu o BaixadaCine, qual foi a principal motivação para sua criação e quem são as pessoas envolvidas nesse coletivo?
O BaixadaCine surge em 2016 devido a uma urgência de um fazer cinematográfico. Na época não tínhamos nenhuma referência ativa na cidade. Nenhum cineclube, coletivo ou escola voltada para cinema ou audiovisual em Belford Roxo. A fundação se dá a partir de dois moradores de Belford Roxo: Cassiano Sant’Anna e Sandro Garcia. Atualmente o coletivo conta com 10 pessoas.
Quais cursos e oficinas já foram realizados pelo BaixadaCine, e como eles influenciam os planos futuros da escola? Vocês pretendem priorizar a formação prática, teórica ou buscar um equilíbrio entre ambas, especialmente em propostas como roteiro, direção e curadoria?
Nossos cursos são muito pautados em nossa prática. Temos algumas edições da Oficina Cinema de Periferia (abrangendo todos os setores de uma produção) e também oficinas de cineclubismo em parceria com o Cineclube Velho Brejo. Nossas oficinas são idealizadas a partir de trocas dos alunos/participantes com membros do coletivo visando um aprendizado mútuo não hierárquico. Nossa prioridade é a troca.
O “Festival Cinema de Pedreiro” surge como parte da inauguração do BaixadaCine, com o objetivo de descentralizar e diversificar a curadoria cinematográfica. Como o festival busca promover a inclusão de vozes e representações marginalizadas, e de que forma ele se posiciona como uma crítica aos festivais tradicionais, especialmente no que diz respeito à diversidade, equidade nas escolhas de curadoria e à ausência desses eventos na Baixada Fluminense, região historicamente excluída desses espaços culturais?
O festival Cinema de Pedreiro é uma crítica literal a meios de exibição convencionais, como grandes festivais. O festival em sua primeira edição tratou remunerar todos os filmes selecionados, além de premiá-los. O festival busca um debate que coloque o fazer cinematográfico marginal em um cenário de classe-trabalhadora. Seja pagando os filmes, exibindo os filmes na baixada-fluminense, traçando cotas e praticando uma curadoria de filmes que não são exibidos ou ainda não foram assistidos.
A ausência de salas de cinema em Belford Roxo reflete uma negligência histórica com a Baixada Fluminense, evidenciando a exclusão cultural e a falta de investimento em espaços de lazer na região Como o BaixadaCine reage e interpreta a exclusão nesse contexto cultural?
Atualmente Belford Roxo ainda é a maior cidade do Brasil sem uma sala de cinema em número de habitantes. Diante disso, junto ao cineclube velho brejo realizamos sessões desde 2018 colocando em pauta a falta de uma sala
Existe algum tipo de diálogo com órgãos públicos ou instituições culturais em relação ao apoio ao projeto? ? Se não, por que vocês acreditam que esse diálogo ainda não ocorreu?
Sempre estamos abertos ao diálogo. Membros do coletivo fazem parte da Ascine (Associação de cineclubes do estado rio de janeiro), participação ativa no fórum de cultura de Belford Roxo e atualmente somos um ponto de cultura na cidade. Alguns membros também fazem parte da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro).
Vocês acreditam que é possível construir um mercado audiovisual periférico autossustentável? Que condições seriam necessárias para isso?
Sim. Colocando o artista no lugar de classe-trabalhadora. Para além de editais e leis de incentivo, a classe precisa de outros meios de remuneração. Nossos filmes por exemplo, em época de lançamento são distribuídos via Pix. O que viabiliza outro meio de se remunerar.
Em um cenário onde o cinema é frequentemente associado a espaços elitizados, como vocês trabalham para ressignificar a relação da periferia com o audiovisual?
Essa associação a uma elite é frequentemente legitimada pela grande mídia e consequência de uma geração de cineastas que nasceram em berço de ouro. Basta olhar para o filme de um bilionário que está sendo cotado para o Oscar. Quantos filmes nacionais de não-bilionários mereciam ser indicados? Então parte de uma educação crítica. Estar com uma escola de cinema em Belford Roxo já é uma resposta.
Em que medida o BaixadaCine tem fomentado a alfabetização visual e crítica entre os participantes, especialmente os jovens?
Até pra complementar a pergunta acima, nossos conteúdos traçam um objetivo de colocar o cinema em um lugar real. Um cinema possível, saindo desse lugar hollywoodiano. Em nossas oficinas apresentamos para além de nossos filmes, produções que conversam com esse cinema. Produções que não necessariamente visam grandes equipamentos ou estruturas, mas sim um fazer independente do como e porque. O exemplo se torna prático quando olhando para uma retrospectiva, o baixadacine começa fazendo filmes com telefone ou equipamentos não convencionais, e ainda em 2024, mesmo com algum acesso a equipamentos, temos produções que buscam essa metodologia. Em resumo, um cinema possível. Seja com câmera, seja com imagem de arquivo, seja a partir de fotos. Um cinema real e possível para se fazer hoje, e não roteiros que fiquem guardados em gavetas.
Como vocês enxergam o futuro do BaixadaCine? Existe a intenção de integrar novas linguagens artísticas ou expandir o alcance para outras regiões da Baixada?
O BaixadaCine só tem 8 anos, o que consideramos um bebê. Muita coisa ainda vai acontecer. Esse movimento de novas linguagens e de ocupação já é presente. No ICAB já acontecem aulas de outros segmentos das artes.
Pensando em longo prazo, como o BaixadaCine gostaria de ser lembrado na história cultural da Baixada Fluminense e do cinema brasileiro?
Seria legal ser lembrado como um cinema que colocou comida na casa de seus realizadores, que deu casa própria, que deu sustento a suas famílias.
* Estagiária do LACON – UERJ, com supervisão de João V. Bessa