Iris Souza*
O relatório Pele Alvo¹ revela que, no estado do Rio de Janeiro, uma pessoa negra morre em decorrência da intervenção policial a cada 13 horas. Em 2023, foram registradas 871 mortes desse tipo, com um recorte alarmante: 97,7% das vítimas eram homens, e 403 tinham entre 12 e 29 anos, evidenciando o impacto devastador sobre a juventude negra. A violência policial continua atingindo principalmente as populações periféricas e faveladas, com a capital registrando 376 mortes, seguida por Duque de Caxias, com 104 casos. Apesar de a redução no número de vítimas em relação aos 1.814 óbitos registrados em 2017 indicar uma queda significativa², os números expõem a persistente letalidade policial, que ainda atinge de forma desproporcional a população negra no estado.
Além disso, o relatório aponta que no Rio de Janeiro, por exemplo, os negros (que compõem 57,8% da população) representam 86,9% das mortes decorrentes de intervenção do Estado. O argumento superficial de que os negros são mais vitimados pela violência policial apenas por representarem a maior parte da população é falacioso. Os dados mostram que a proporção de negros mortos pela polícia é significativamente superior à sua representatividade na população, evidenciando a desproporcionalidade brutal e o racismo estrutural nas ações policiais.
Esses números são um reflexo da brutalidade de um sistema de segurança pública que, em muitos casos, considera a vida negra como descartável. Entre as vítimas, destacam-se também 52 crianças negras entre 0 e 17 anos, representando 6% das mortes ocorridas no estado. A estatística aponta um padrão persistente de violência e negligência, especialmente contra os mais vulneráveis.
O destino de um jovem negro nunca é fruto de escolha. Ele nasce numa guerra que já começou muito antes dele chegar à vida. Como bem retratam as palavras de LEALL em Esculpido a Machado³, “Que hoje eu vi a morte passar na minha frente / Com quantos milagres terei um futuro?”. O futuro de muitos de nós, negros, parece ser desenhado por forças além de nossa vontade, em um sistema que já se configura para nos fazer vítimas desde o nascimento. As mortes de crianças negras, especialmente no Rio de Janeiro — onde 52 vidas de crianças e adolescentes foram ceifadas no ano passado — são um reflexo direto de uma política criminosa do Estado, que ignora essas vidas com uma crueldade assustadora. Elas são estatísticas, números que passam despercebidos, sem que a sociedade se indigne. O o corpo negro não causa comoção.
A Necroinfância, conceito desenvolvido por Achille Mbembe (2018), revela o genocídio e o abuso infantil consentidos pelo Estado, que nega às crianças negras o direito à infância. Sob o olhar apático de uma sociedade que raramente se comove diante desses assassinatos, o Estado não apenas tira a vida dessas crianças, mas também desumaniza o ato de maternar para as mulheres negras. Mães que não dormem, dilaceradas pela dor, e mulheres negras que nem sequer sabem o que é a experiência de maternar em sua plenitude têm seus direitos usurpados. Tornar-se mãe nessas circunstâncias parece uma missão quase impossível, em que a luta incessante pela dignidade do filho e da família se torna uma batalha solitária contra um sistema que perpetua o luto e transforma o amor maternal em uma resistência diária.
Como mulher negra periférica, que já foi uma criança negra favelada, conheço de perto o peso de uma realidade invisível para muitos. Cresci em um lugar onde via sangue nas ruas ao voltar da escola; vestígios de confrontos que, para mim, pareciam quase cotidianos, mas nunca menos aterrorizantes. Senti o medo visceral ao ver um policial apontar um fuzil em minha direção, um gesto que representava mais do que uma ameaça imediata: era o símbolo de um poder que nos desumaniza e torna nossas vidas descartáveis. A violência muitas vezes chega de forma silenciosa, mas sua marca permanece. O medo constante de que, a qualquer momento, o estado possa roubar de mim a Paz Quilombola — conceito tão essencial trazido por Beatriz Nascimento (2021) — assombra até os dias mais comuns. Essa paz, idealizada como um espaço de segurança e resistência, é sistematicamente ameaçada por forças que veem nossos corpos como alvos e nossas vidas como meras estatísticas.
Essas experiências, ainda que difíceis, não são isoladas. Elas ressoam com tantas outras histórias que atravessam as vidas de pessoas negras nas periferias do Brasil. A violência, que se disfarça de rotina, é o reflexo de um sistema que se alimenta da dor do corpo negro e da marginalização da nossa humanidade. Cada vida ceifada, cada criança assassinada, é um grito sufocado, um lamento que muitas vezes não chega aos ouvidos da sociedade. Como LEALL diz em Cadeia ou Morte: “Onde sua mãe se frustraria menos? / Cadeia ou morte?” – esta pergunta pungente ecoa em cada esquina, em cada favela, em cada corpo negro perdido. E é exatamente isso: a sociedade não se importa, porque essas vidas são feitas de dor, e o luto que nos atravessa é ignorado, subestimado e apagado.
As mortes de crianças negras, como as que o relatório Pele Alvo destaca, são uma tragédia cotidiana, mas raramente geram comoção ou protesto. Essas vidas não são valorizadas. Elas são tratadas como uma estatística, como um número que se perde na desumanização da nossa realidade. Em muitas partes do Brasil, essa violência se apresenta como algo natural, aceito, até ignorado, num ciclo sem fim que remonta a um passado escravocrata e que ainda perdura, invisível, mas visceral.
Por isso, ao refletir sobre a morte dessas crianças, vejo que o problema não é apenas a violência policial, mas o sistema que a sustenta, que a naturaliza. Como pode um jovem negro ser visto como uma consequência inevitável da desigualdade? O assassinato de crianças, ainda tão pequenas, como justificar a morte de uma vida que mal começou? Em um país como o Brasil, onde a vida negra é tratada como descartável, é impossível não perguntar: por que suas vidas importam tão pouco? O Rio de Janeiro, com sua longa história de letalidade policial, é um reflexo doloroso de uma nação que, até hoje, não vê a vida negra como igual, como valiosa. A cada morte, o lamento se torna mais abafado, e o sistema continua a se alimentar da dor, como bem canta LEALL em Portas Abertas, Caixão Fechado: “Homicídio me parece uma arte cultural / Uma espécie de ensino natural / Onde a criança aprende a olho nu”.
Essas palavras de LEALL, com a dureza de quem vive na periferia e conhece os caminhos da violência, trazem à tona a crueldade da normalização da morte nas favelas e bairros periféricos. A violência não é só uma consequência de um conflito, é uma prática que atravessa gerações, que impõe aos jovens que a única coisa certa no futuro é o risco constante de morte.
Por isso, o debate sobre as mortes de crianças negras precisa ser levado a sério. Não podemos mais aceitar que a vida de uma criança negra seja apenas mais uma estatística ignorada. As ruas precisam ser tomadas por protestos em nome dessas vidas perdidas. Não podemos mais silenciar o luto coletivo da comunidade negra. Cada vida perdida é uma luta que, em vez de ser vista como uma perda irreparável, continua sendo apagada, diluída em números e ignorância. LEALL nos chama à resistência, à conscientização e, acima de tudo, à denúncia: “Ei, madame, não vou ser mais um jovem negro morto”.
Que a morte dessas crianças negras não seja esquecida. Que suas vidas sejam lembradas, como uma exigência por políticas públicas eficazes, como uma forma de resistência diante de um Estado genocida que, mais uma vez, silencia o lamento da dor. Que sua memória seja nossa força e nosso lembrete diário da luta por um futuro em que nossas crianças, finalmente, possam crescer e viver com dignidade e segurança.
*Graduanda em Relações Públicas e estagiária do Lacon – UERJ
Texto escrito sob supervisão de João V. Bessa
Notas:
(1) A Rede de Observatórios da Segurança, composta por nove organizações de diferentes estados, monitora segurança pública, violência e direitos humanos. Inspirada no Observatório da Intervenção do CESeC, a Rede acompanha indicadores e divulga dados em relatórios. Além do CESeC, integra organizações como o Grupo ILHARGAS e a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, promovendo diálogos com diversos grupos sociais e institucionais.
(2) Desde 2017, o Estado do Rio registrava mais de mil mortes por intervenção policial. Em 2023, pela primeira vez, o número caiu para 871, comparado a 1.814 em 2019.
(3) Leall – “Esculpido a Machado” (2021). Selo: Covil da Bruxa. Gênero: Hip-Hop, Rap, Grime.
Referências:
Necroinfância: por que as crianças negras são assassinadas?
Duas crianças negras assassinadas, e o país que não reage | Metrópoles
Racismo estrutural: as crianças negras mortas pela cor da pele
Quem tem o direito de viver no país da necroinfância? | Nexo Políticas Públicas
https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27997/15491
Crítica | LEALL: “Esculpido a Machado” – Música Instantânea
Review: Leall – Esculpido a Machado – Inverso