Laiza Villaça*
O encontro do heptacampeão com a revelação individual de Audre Lorde
O primeiro domingo do mês de novembro ficou marcado por mais uma homenagem a Ayrton Senna. Na chuva, o inglês Lewis Hamilton conduziu a icônica McLaren MP4/5B no Autódromo de Interlagos. Com a bandeira brasileira ao vento pela pista molhada, não se tratava apenas do piloto revisitando seus sonhos de criança, que tinham Senna como inspiração, mas incluía o público no convite para reviver suas emoções associadas à memória do ídolo.
Hamilton aplica os ensinamentos do herói nacional além das pistas. Mais que um piloto de Fórmula 1, ele assume o papel de liderar seu esporte na luta antirracista.
Contudo, a trajetória pessoal do atleta para alcançar títulos mundiais e sustentar suas opiniões como um homem negro no esporte, foi marcada por doses de silenciamento que exemplificam uma das teses presentes no livro “Irmã Forasteira” da poeta e feminista negra, Audre Lorde: “Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole dia após dia?”
“Quando uma criança negra vence no kart e se torna um problema”
Não ser desafiado jamais foi uma opção para Lewis. Como um dos poucos garotos negros nos ambientes que frequentava, ele foi alvo frequente de ataques racistas desde a infância. “Não há nenhuma forma de você chegar à Fórmula 1. Não há pessoas negras lá”, relembra ele o que ouvia na infância, durante evento de caridade de sua fundação em novembro de 2024.
E não demorou para que ele começasse a incomodar com vitórias no kart. Aos 11 anos, brilhou ao vencer o Programa de Desenvolvimento de Pilotos da Academia McLaren. As respostas do jovem Hamilton de Stevenage ao bullying que sofria vinham à tona apenas quando vestia o capacete, se refugiando atrás do volante em uma desesperada tentativa de esconder a cor de sua pele.
Comentando sobre a estrutura racista que impõe despersonalização a pessoas negras, Audre ressalta: “A visibilidade que nos torna mais vulneráveis é também a maior fonte de nossa força”. Estar em evidência é doloroso ao mesmo tempo que poderoso. Logo, para um garoto que competia com restos de materiais dos pilotos mais ricos e ainda assim vencia, ali estava um sinal de que a linha de chegada não seria o mais longe que iria.
“Não fique surpreso se você ficar meio segundo atrás”
Quando chega à Fórmula 1 em 2007, Lewis ainda engole sua autoexpressividade em busca de escrever seu nome na história. Acostumado à pole position, o novo piloto da McLaren não queria ser marcado como o primeiro negro a compor o grid da categoria.
Crente de que o silêncio iria protegê-lo, Hamilton se fechou. Essa reação é algo também apontado como ineficaz por Audre Lorde, que afirma: “Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você.” Esses primeiros anos são marcados pela sua dolorosa busca por aceitação, onde ainda se afoga em ondas de opressão e encobre sua personalidade para proteger a si e sua família.
O mais novo campeão tinha pouca autonomia, seja em relação à escolha do seu corte de cabelo até o reconhecimento por seus feitos esportivos. Lewis passou a ser definido em tantas palavras. Nenhuma, aliás, que tenha saído de sua própria boca.
No ano de 2008, as inevitáveis questões raciais o encontraram novamente no paddock. Um grupo de espanhóis insultava o piloto. Pintados de preto, insinuavam que eram a “família de Hamilton” durante uma das sessões na Espanha.
Ao reviver a cena de 15 anos atrás, Lewis comentou: “Eu me lembro da dor que senti naquele dia, mas não consegui dizer nada a ninguém. Ninguém disse nada. Eu apenas vi as pessoas seguindo em frente e permanecendo em silêncio.”
Em 2023, no GP de Mônaco, foi feita uma menção ao episódio de racismo direcionado ao jogador brasileiro do Real Madrid, Vinícius Jr. Dividindo a experiência de ser um atleta negro competindo na Espanha, Hamilton declarou apoio ao atacante, elogiando sua coragem e postura em resposta aos ataques: “Ele foi incrivelmente corajoso”, afirma. “A maneira como a geração atual lida com isso, não sendo reativos, mas se mantendo firmes e humildes. Eles sabem que os mais novos estão assistindo.”
Entrelaçados pela negritude, atletas negros encaram no cenário atual a transmissão midiática de episódios que comprovam o quanto ainda se há a tratar no esporte em termos sociais. Quer se posicionem ou não, a indústria seguirá, “tentando os reduzir ao pó”, como escreveu a filósofa negra a respeito da escolha da omissão e como essa escolha não fará do medo menor.
“Eu vejo todos vocês”
Em 2020, o movimento “Vidas Negras Importam” (Black Lives Matter, em inglês) instiga a consciência racial de Lewis, que não se contenta mais com o imaginário e transborda sobre a principal categoria de automobilismo do mundo.
Definindo o ápice de seu emocional, ele relembra durante conversa com o The Guardian em 2020: “Tudo o que suprimi por anos veio à tona”, acrescentando que “Foi libertador”. Já que “Se tivesse acontecido mais cedo, talvez eu não estivesse pronto para falar. Mas agora estou.”
Colocando em ação seus planos em nome da causa antirracista, Lewis propôs a sua equipe que pintasse a memorável Mercedes prata na cor preta. No mesmo ano, reuniu todo o grid da categoria para que se ajoelhassem antes das corridas em nome do movimento social, como também levou para o topo do pódio uma camiseta escrito “Prenda os policiais que mataram Breonna Taylor”. Suas demonstrações de compromisso foram vistas pela FIA (Federação Internacional de Automobilismo), que logo criou uma regra que proibisse o ato.
Através das redes sociais, o heptacampeão mundial assegurou na época: “Quero que saibam que não vou parar, não vou desistir de usar essa plataforma para dar visibilidade para o que eu acredito ser certo”, e concluiu: “A F1 consegue organizar a logística de viajar o mundo, mas não consegue separar um minuto para uma causa importante como essa? Eles só não se importam o suficiente, essa é a verdade”.
Ali está, o “encontro do negro com sua revelação individual à procura de ação” como escreve Audre Lorde. Imerso, Hamilton se encontra no papel de um líder em movimento pelo processo de ressignificação.
O fôlego, por fim, o alcança. Assim como uma nova camada de vulnerabilidade, já que quebrar o silêncio significa um pouco de perigo também, o que se evidencia em 2021, no lançamento da Mercedes F1 da temporada, o piloto promete: “Enquanto eu tiver ar em meus pulmões, farei do automobilismo mais diverso.”
Hamilton consolidou o seu comprometimento com a causa negra ao lançar a “Comissão Hamilton”, uma pesquisa realizada em 2020 para compreender por que tão poucas pessoas negras praticavam o automobilismo, o que apontou menos de 1% na participação em seu primeiro relatório. Sobre as motivações por trás da pesquisa, ele contextualiza que: “No final de 2019, enquanto olhava as fotos da equipe, percebi o quão pouco progresso havia sido feito para tornar o esporte mais inclusivo. Foi quando eu entendi que precisava fazer mais, e a ideia da Comissão nasceu”, conta ele ao MotorSports.
Além disso, durante o GP de Silverstone deste ano, foi divulgada a notícia de que a Fórmula 1 trabalhará ativamente com a “Missão 44”, uma instituição de caridade também fundada por Hamilton, com iniciativas educacionais de empoderar e qualificar jovens pertencentes a minorias para chegarem ao automobilismo. “A justificativa não é a falta de inteligência da comunidade negra, é algo mais profundo”, afirmou, em 2021, quando o relatório da Comissão Hamilton foi publicado.
Ainda o garoto que só desejou ser um piloto de corrida porque Ayrton era um, Hamilton movimenta o universo da velocidade com seu talento e humildade. A homenagem feita por Lewis no último GP de Interlagos celebra o legado histórico do rei da chuva, assim como declara mais uma vez a honra que o mais novo cidadão honorário do Brasil conquistou no esporte.
Para uma modalidade de porte mundial, a Fórmula 1 passou muito tempo justificando que não havia espaço em sua logística para direitos humanos. Mas, então, surgiu Lewis Hamilton. Usando toda sua determinação, o recordista realiza mais do que feitos incríveis nas pistas. Existe, por fim, o uso da vocalidade tão pontuada pela escritora Audre Lorde. Enfrentar um sistema predominantemente branco é assustador, porém, mais aterrorizante ainda, é permanecer em silêncio.
Referências:
AUDRE LORDE, Livro “Irmã Forasteira”, 1984.
MOTORSPORT, “Fórmula 1 fecha parceria com Mission44, Ong de Hamilton, para aumentar diversidade no esporte”. 2024.
Link de acesso: https://motorsport.uol.com.br/f1/news/formula-1-fecha-parceria-com-mission-44-ong-de-hamilton-para-aumentar-diversidade-no-esporte/10631239/
GLOBO ESPORTE, “Hamilton exalta postura de Vini Jr após caso de racismo: “Corajoso””. 2023.
Link de acesso: https://ge.globo.com/google/amp/motor/formula-1/noticia/2023/05/25/hamilton-exalta-postura-de-vini-jr-apos-caso-de-racismo-corajoso.ghtml
MOTORSPORT, “Como as fotos de equipe alertaram Hamilton”. 2021.
Link de acesso: https://www.motorsport.com/f1/news/how-f1-team-photos-acted-as-hamiltons-wake-up-call/6629577/
THE GUARDIAN, “Lewis Hamilton: Assistir a George Floyd trouxe tanta emoção suprimida”. 2020.
Link de acesso: Lewis Hamilton: ‘Watching George Floyd brought up so much suppressed emotion’
REDDIT, “Crítica de Lewis sobre a logística da Fórmula 1”. 2020.
Link de acesso: https://www.reddit.com/r/formula1/comments/hu2o37/lewis_with_some_strong_words_on_the_prerace/?rdt=64919
FÓRMULA 1, “Hamilton promete continuar a lutar pela igualdade em 2021”. 2020.
Link de acesso: https://www.formula1.com/en/latest/article/hamilton-vows-to-keep-pushing-in-fight-for-equality-in-2021.1JcZmh18IFdR5jAhRngIEs
RELATÓRIO DA COMISSÃO HAMILTON, “Acelerando a Mudança: Melhorando a Representação dos Negros no Automobilismo do Reino Unido”.
Link de acesso: https://report.hamiltoncommission.org/interactive-summary/index.html
*Estagiária do Lacon, sob supervisão de João Bessa