Isabela Carvalho | Setembro 2021
Alguns dias atrás fomos surpreendidos pela notícia de que finalmente uma versão brasileira de RuPaul’s Drag Race estaria sendo produzida, mas o que causou grande estranheza foi a informação de que Xuxa Meneghel seria a escolhida para comandar o reality. Em época de mídias sociais, a reação dos fãs do programa foi imediata, questionando qual a legitimidade de Xuxa para apresentar um programa de drag queens. Ela não é drag queen, tem pouquíssima relação com essa forma de arte e representa toda uma conformidade social (hétero, branca, loira e rica) que em nada teria a acrescentar ao público que o programa pretende atingir.
Pelo ponto de vista capitalista e publicitário da coisa, como bem disse o jornalista Sandro Nascimento em sua coluna do portal UOL:
“um programa de TV é produzido para dar lucro. No Brasil, ainda não existe, infelizmente, uma personalidade queen que tenha o torque publicitário de captação de anunciantes como Xuxa tem. À frente do Drag Race, a loira estará trazendo e agregando a sua capilaridade de mídia e prestígio, que são indiscutíveis, para uma arte que ainda não tem o devido reconhecimento. A questão é ampliar públicos e não segmentar ainda mais” (NASCIMENTO, 2021, online).
Eu não poderia concordar mais com esse trecho. Talvez outra pessoa, nos mesmos moldes, que poderia estar à frente do programa e representaria muito bem a comunidade drag seria Paulo Gustavo, que infelizmente teve sua vida levada por falta de políticas públicas sanitárias adequadas ao enfrentamento da covid-19. Sua personagem de maior sucesso, inspirada em sua mãe, era uma drag queen (apesar desse fato passar meio despercebido). Seus filmes são campeões de bilheteria, era bem aceito em diversas camadas sociais e ainda trazia o apelo familiar que o brasileiro tanto ama.
Entretanto, a cultura drag, antes de Paulo Gustavo, também não era novidade para o espectador brasileiro. Ela faz tão parte do nosso mundo de fantasia que nós, crianças dos anos 90, convivemos com o filme Priscilla, a Rainha do Deserto (1993, de Stephan Elliott) indo ao ar na Sessão da Tarde. E quantas outras figuras também não passaram pela telinha das famílias brasileiras, como Nanny People, Isabelita dos Patins, Jorge Lafond e Mamma Bruschetta. Nessa lista, eu também gostaria de adicionar Elke Maravilha e Walter Mercado. Apesar de nunca se identificarem como drags, a dramaticidade de suas roupas os coloca no mesmo imaginário que as figuras citadas anteriormente pelo público brasileiro. O próprio Silvio Santos em seus programas de calouro também sempre contou com a participação de drag queens para fazer a alegria de seus espectadores.
Em vista do histórico brasileiro, Xuxa apresentar uma versão de RuPaul’s Drag Race não teria problema algum, a não ser de um questionamento que eu gostaria de trazer sobre: a partir de que olhar estaria esse programa?
RuPaul’s Drag Race, apesar de parecer uma grande comédia, analisa os participantes de forma profissional, com os jurados proferindo críticas bem duras em algumas ocasiões. O objetivo do programa é encontrar a próxima “Super Estrela Drag da América” (América do Norte, tá, gente? Imperialismo aqui não!). As características que ela (pois são personagens que dão a ilusão de uma mulher, então se tratam no feminino) tem que ter são: carisma, singularidade, coragem e talento. No primeiro episódio da primeira temporada, RuPaul diz que nasceu uma criança negra e pobre na Califórnia, e contra todas as estatísticas se tornou uma drag queen de grande sucesso, e que agora deseja dividir esse sucesso com outras drag queens. Então, por mais palhaçada que tenha no programa, o objetivo ali é bem claro.
Mas voltando ao questionamento que propus, para muito além de Xuxa apresentando, a que essa versão brasileira se propõe? Apesar do extenso histórico do brasileiro com drag queens, elas sempre estiveram no lugar da alegoria, do exótico e diferente. Bell Hooks nos traz o conceito de “outridade”, que, no caso, ela fala do lugar de mulher negra enquanto observa a cultura branca comodificar outras expressões populares como forma de incrementar a própria cultura. Segundo ela própria, a cultura branca é uma “merda insossa”. Encontram no Outro uma forma de confrontar o que conhecem como mundo, como se fosse um rito de passagem, um transcender, uma forma de se aventurar, de serem transgressores e avançarem por fronteiras simbólicas pouco exploradas – ou seja, os outros são apenas instrumentos de sua evolução.
O engraçado é que a cultura drag também circula por essas fronteiras, mas como forma de protesto, e não como uma cerimônia de antropofagia cultural, elas são a própria transgressão. Brincam com o conceito de feminilidade (algo tão imposto às mulheres e ridiculamente artificial), desafiam velhos costumes e, assim como a cultura negra, são resistência.
O RuPaul’s Drag Race original é pensado e produzido por alguém que quer que a cultura drag seja valorizada, evolua e se perpetue. Ele apresenta os artistas e a arte drag ao grande público exatamente da forma que ela é, sem a necessidade de deixá-la palatável, para que quem esteja chegando agora entenda exatamente os ônus e os bônus dessa profissão (muitas drags têm um segundo emprego para sustentar a sua personagem). E, para muito além de quem vai apresentar o programa, é com isso que devemos nos preocupar: de que forma esses artistas serão retratados.
Referências:
HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante Editora, 2019.
NASCIMENTO, Sandro. Com Xuxa, Drag Race Brasil será o pontapé para arte drag atingir novos públicos na TV. UOL, Coluna do Sandro Nascimento, 27 ago. 2021, online. Disponível em: <https://natelinha.uol.com.br/colunas/coluna-do-sandro/2021/08/27/com-xuxa-drag-race-brasil-sera-o-pontape-para-arte-drag-atingir-novos-publicos-na-tv-168616.php>.
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Isabela Carvalho é graduada em Relações Públicas pela UERJ e apresentou a monografia intitulada “RuPaul’s Drag Race: uma mudança do cenário de drag queens no mundo” em julho de 2018. E-mail: isaumcosta@gmail.com.