Conceição de Souza | Julho 2020

Em qualquer sociedade, a  comida possui um código linguístico, portador de valores, que vai além do viés funcional/nutricional. E provavelmente reside aí a sua potência, no âmbito social e cultural. Alguns pesquisadores denominam esses valores como acessórios ou adicionais. Contrapondo essa ideia, ou indo além dela, acredito que os significados simbólicos (não funcionais) são, em realidade, os primordiais.

A Feira de Refugiados Chega Junto é um excelente locus para se observar essa potência, presentes nas diversas sociabilidades que ocorrem em torno da comida, uma vez que ali ela é a protagonista. Cada um dos atores sociais presentes atribui à comida uma carga simbólica distinta. Para os visitantes é o contato com outras culturas, onde, nesse momento todos os sentidos estão alertas. O contato com o diferente ocorre por meio da visão, do tato, do olfato e, principalmente, do paladar. De outra forma, para os imigrantes-refugiados é sobrevivência, identidade, vinculação (física e simbólica) e memória. Acredito que dentre os vários elementos que compõe a cultura de um povo, a comida seja um dos mais significativos, no que tange à capacidade de  aproximar as diferenças. Ela tece e mantém vínculos sociais e afetivos, além de favorecer a troca de práticas culturais, se apresentando como um decisivo signo identitário e um efetivo instrumento comunicacional.

Antes da pandemia, a Feira ocorria mensalmente no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. A maioria das pessoas que lá trabalham são imigrantes-refugiados que, ao fixarem residência no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, optaram por garantir sua sobrevivência com a produção e comercialização de comidas típicas de seus países de origem. Na experiência da Feira e no ritual da comensalidade, a comida assume a centralidade de uma prática comunicacional e transcultural, tornando evidente nossa natureza gregária e convivial, favorecendo a troca de significados e sentidos.

O termo comensalidade deriva do latim mensa, que significa conviver à mesa e compartilhar alimentos. Como um sistema simbólico complexo e característica  significante da sociabilidade humana,  envolve elementos sociais , políticos, culturais e morais, bem como compartilhamento de experiências e sentidos.

No ritual da comensalidade são criados vínculos com que produz e com quem consome a comida. Poulain, em sua obra “Sociologias da alimentação” diz que a comensalidade estabelece e reforça a sociabilidade. Para o autor, ao produzir, numa sociedade, os aprendizados sociais mais fundamentais, permite sua transmissão e a interiorização de seus valores. Dessa forma, a comensalidade é um elemento fulcral da sociabilidade.

É importante ressaltar que há uma diferença simbólica entre comida e alimento. DaMatta, na obra “O que faz do Brasil, Brasil”, discorre sobre esta diferença dizendo que o alimento traz em si as particularidades das substâncias nutritivas, enquanto que a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo, uma classe ou uma pessoa. Dessa forma, toda a comida tem em si, elementos de um alimento, mas nem todo alimento é uma comida.

Na Feira, por meio da observação e participação, é possível perceber as várias camadas da comida. Por meios das interações sociabilidades e socialidades, a comida emerge, como numa pátina que vai sendo raspada, em suas várias camadas. Apresenta-se como alimento, onde é possível inferir sobre seu valor nutricional (consumo físico) e como comida (consumo simbólico), evidenciando os valores identitários e culturais dos atores sociais envolvidos. A entrega da comida e sua ingestão pelo outro denota, numa camada mais sutil, aceitação e alteridade.   Essa perspectiva aumenta, significativamente, as possibilidades simbólicas da comida.

Dentro do âmbito simbólico, o ato de ingerir confere intimidade entre a comida e o corpo. Podemos ir além e imaginar que ingerir a comida do outro pode indicar uma expressão de intimidade que passa para aceitação. Aceitação do outro com todas as diferenças inerentes. Comer a comida do outro é comer sua cultura, suas diferenças, seus temores, seus anseios. É aceitar a diferença como algo normal numa sociedade globalizada e intercultural. Nesse momento há o sentido de compartilhamento de uma mesa que, antropologicamente falando, é um dos primeiros sinais de pertencimento a um grupo, onde as diferenças são aceitas e bem vindas. Na obra “Ensaio sobre a dádiva”, Marcel Mauss  faz referência à  “Távola Redonda”, do mito de Artur. De acordo com o autor, a simbologia do formato circular da mesa ajudava os cavaleiros e se perceberem como iguais, conferindo à ela a perspectiva de espaço vivido.

A mesa assume nas nossas vidas cotidianas as mais variadas formas: um tampo com pés, uma toalha estendida no chão ou uma rodinha de amigos. Dessa forma, entendo a Feira como uma grande mesa posta, se transfigurando, de forma vívida e como num mosaico societal, num locus de interações, comensalidade, reidentificações identitárias, compartilhamento de sentidos, aceitação e alteridade.

Fonte: página da Feira de Refugiados Chega Junto no Facebook.

Disponível em: https://www.facebook.com/search/photos/?q=feira%20chega%20junto&epa=SERP_TAB.

Fonte: Acervo da autora (2019).

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Conceição de Souza é doutoranda em Comunicação no PPGCom da Uerj.

 

Referências:

POULAIN, Jean Pierre. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Ed. UFSC, 2013.

DaMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1966.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: ______________. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac-Naify, 2003.

FLANDRIN; MONTANARI (orgs.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

Comensalidade, identidade e alteridade