Pedro Diniz | Novembro 2019
A publicidade pode ser um instrumento valioso para a reflexão sobre a sociedade de consumo em que vivemos. Os discursos propagados por ela podem ser analisados como parte da produção discursiva da sociedade como um todo, em um diálogo permanente com a cultura na qual foi concebida e à qual se dirige (GASTALDO, 2002, p. 86). Um diálogo, evidentemente, supõe certa bilateralidade na interação entre duas partes. Nesse sentido, a publicidade não impõe um discurso, mas sim propõe representações sociais com as quais podemos nos identificar ou não.
Considerando o contexto globalizado contemporâneo, nota-se que, marcas consideradas multinacionais por sua penetração ao redor do mundo, possuem um grande desafio de comunicação: desenvolver estratégias que se adaptem às culturas locais, mas sem perder a coesão da marca a nível global.
Um campo interessante para a observação desta dinâmica é o esporte. Focando a análise no setor de materiais esportivos, percebe-se que este é constituído por um oligopólio, onde poucas empresas dominam uma porcentagem majoritária do mercado. Segundo dados da agência Sports Value, apenas a Nike e a Adidas representam, somadas, aproximadamente 70% do faturamento total.
Tomando a marca Nike como exemplo poderíamos citar o contraste entre duas campanhas publicitárias desenvolvidas entre as Copas do Mundo de 2010 e 2014, a “Vive Le Football Libre” e “Ouse Ser Brasileiro”, na França e no Brasil, respectivamente. Nestas campanhas estão em jogo representações das identidades nacionais dos países e sua relação com o futebol. Entretanto, nota-se também a convergência de ambas para um posicionamento global da Nike para sua atuação como marca no futebol.
Em um breve histórico da empresa, verifica-se que desde que entrou no mercado futebolístico de forma mais significativa na década de 1990, a abordagem discursiva adotada em suas produções publicitárias foi a de se diferenciar das outras marcas através da associação do futebol com a arte, abandonando os discursos clichês da associação com a competição e a guerra por exemplo. Dessa forma, a Nike buscava se associar à prática de um futebol plástico e criativo, que poderia ser acessado pelo consumo de seus produtos. Essa dinâmica é apontada por Kellner, que aponta o objetivo da publicidade em “associar os produtos anunciados com certas características socialmente desejáveis e transmitem mensagens referentes às vantagens simbólicas obtidas por aqueles que consomem o produto” (KELLNER, 2001, p. 323).
Nesse sentido, um passo importante foi dado quando a Nike passou a ser a patrocinadora oficial da seleção brasileira de futebol, já possuidora do capital simbólico de representante do futebol-arte. A partir de então a imagem dos atletas brasileiros passaram a ser intensamente exploradas. Consumir a Nike significava consumir o futebol-arte brasileiro incorporado pela empresa. Alguns anos depois, outro passo importante foi dado, quando em 2008 a Nike tira da Adidas um de seus patrocínios mais valiosos: a seleção francesa. Vejamos como a Nike incorporou os elementos das identidades locais dessas marcas poderosas em sua identidade de marca global.
No caso francês, como no brasileiro, são explorados símbolos das identidades nacionais. No vídeo de lançamento da campanha “Vive Le Football Libre”, nota-se a declamação de um trecho da peça Cyrano de Bergerac, escrita por Edmond Rostand em 1897. O protagonista da peça é uma personagem de grande identificação com os franceses por representar um homem que nutre o desprezo pelos poderosos, que encarna os ideais de coragem e de sacrifício individual pelo coletivo. O próprio nome da campanha é baseado na frase icônica de Charles De Gaulle, em um momento histórico importante da França: “Vive La France Libre”. Nos cartazes, há a mesma representação de símbolos franceses aliados a exaltação de um futebol que remete à valores nacionais, manipulados para caberem dentro de uma narrativa global desenvolvida pela marca, de incentivo a um futebol movido pelo talento, audácia e criatividade.
Na campanha “Ouse Ser Brasileiro”, observamos uma narrativa com diferenças significativas que buscam a adequação a um novo ambiente cultural. A campanha busca enfatizar o futebol-arte como o aspecto original do futebol brasileiro, marcado por uma linguagem corporal mais livre, caracterizada pela “ginga” brasileira. Ousar ser brasileiro significaria, portanto, um reencontro com nosso próprio estilo, praticado não pelo aperfeiçoamento ao longo do tempo, mas por uma característica inata. Um exemplo claro está no vídeo de lançamento da campanha, onde cada vez que um dos atletas patrocinados pela Nike recebe a bola, entramos na cabeça do jogador, que é transportado de volta a “suas origens”. Vejamos o caso de Thiago Silva.
Nessa sequência o zagueiro carioca recebe a bola e, ao “entrar em sua cabeça”, percebe-se que ele vê a realidade da partida como se estivesse em um jogo de rua, onde o jogador personifica o estereótipo do malandro, recorrentemente associado ao brasileiro. Isso acontece devido à uma característica do discurso publicitário, onde “as particularidades locais são representadas estereotipicamente” (ALABARCES, 2012, p. 198). Seguindo o argumento do autor, concluímos que as “mercadorias globais destacam, de forma excessiva em muitas ocasiões, seu caráter local”.
Em síntese, a partir dos dois casos, observa-se como o discurso publicitário está permanentemente em diálogo com a conjuntura em que é produzido. Analisar estes discursos, tendo em vista as dimensões locais e globais de sua produção, pode fornecer instrumentos para a reflexão crítica sobre questões contemporâneas, como as dinâmicas entre a sociedade de consumo e as identidades nacionais.
Referências Bibliográficas: