Por Daniela Neiva | Setembro 2019

Impressionante a importância do documentário “A Pedra” para reflexão sobre a temática do racismo em nossa sociedade. Como foi a experiência em participar deste projeto? 

O fato de eu ter criado o programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais, a lato sensu em Educação para as Relações Étnico-Raciais e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros do CEFET/RJ, me proporcionou a oportunidade de ter contato com um grande número de jovens negros que produzem cultura em suas mais diversas vertentes. Há alguns anos, tive a possibilidade de conhecer um grupo que fundou o Coletivo “Siyanda Cinema Experimental do Negro”, que é formado por jovens produtores e produtoras de cinema negro. Um dia, o Hugo Lima, que era a pessoa do coletivo de quem eu tinha mais proximidade, me falou que o Davidson Candanda, diretor de “A Pedra”, queria me filmar e fazer um documentário curta metragem, cujo tema seria racismo e educação. Conheci o Davidson e aceitei fazer o filme, sem pensar nas consequências. Foi quando eu vi o filme pronto que me dei conta da potência que tudo que está ali havia adquirido. Primeiro: o curta metragem tinha virado um longa. Isso já foi um impacto. O filme mostra partes de minhas aulas, parte da arguição de mestrado de uma ex-orientanda,  traz a minha defesa para a carreira de Titular e traz fragmentos de minha vida. Embora o professor esteja sempre exposto, essa exposição pelo filme é bem distinta de todas a que eu havia experimentado. Foi muito estranho me ver na tela. Preciso ressaltar que Davidson é um gênio e conseguiu fazer a montagem de tal forma que pode sugerir a impressão de que houve ensaio, de que combinamos falas, mas isso não aconteceu em nenhum momento. Como desde 2005 tenho me dedicado a produções que estejam ligadas ao combate ao racismo, ver o filme com as minhas falas, as de Heloíse e as de Adelson e de Rejane, me proporcionam, e eu falo no presente porque ainda provoca isso, um prazer imenso de pensar que pelo filme nós estamos fazendo pessoas refletirem a respeito dessa desgraça que é o racismo e de alguma forma espero dizendo para pessoas negras que outras histórias são possíveis, a despeito do racismo, da exclusão, da miséria, da pobreza… A experiência de fazer o filme é divertida, é inusitada, mas é também política, pedagógica, didática e necessária. Quando penso que o filme envia mensagens educativas para pessoas brancas e pessoas negras, fico grato de ter tido a oportunidade de entrar nessa viagem com essas outras pessoas lindas que fizeram esse filme existir. 

É de grande relevância levar esse tema para discussão em outros fóruns, como a Mostra Itinerante de Cinema Negro – Mahomed Bamba, em Salvador, Visões Periféricas 2019 e a 3ª Mostra do Filme Marginal. Qual a sua expectativa para esses encontros?

Além desses, o filme está selecionado também para “Cine Tamoio – Festival de Cinema de São Gonçalo” e para o “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe”, que é o maior encontro de cinema negro da América Latina. A questão mais importante, a meu ver, não está ligada diretamente ao “A Pedra”, mas ao que tenho visto em relação a essa juventude negra, que tem conseguido chegar a espaços e a posições que a minha geração não conseguiu. Eles e elas são capazes de reconstruir esse mundo a partir de seu trabalho, de suas narrativas, de sua potência. Fico encantando com o fato de esses/essas jovens não terem recursos financeiros e, ainda assim, produzirem filmes tão fantásticos. Estamos passando por um momento importante de inflexão social e também de mudança de cognição social, pois hoje já é possível no Rio de Janeiro entrar em espaços culturais como cinema e teatro, e também ir a eventos acadêmicos como congressos, palestras, colóquios, e encontrar uma população majoritariamente negra nesses espaços. Outro importante exemplo é o da “Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras” que consegue congregar em seus encontros bienais algo em torno de 2000 pesquisadores e pesquisadoras negras. O que quero dizer é que a relevância está nisso… o corpo negro deixou de ser objeto e deixou de ser falado a partir da voz exclusiva de pessoas brancas. Negros e negras falam de si e contam suas histórias. 

“O negro quando ele caminha, ele caminha com todos os outros e todas as outras também!” Essa sua frase marcou a apresentação do documentário na UERJ, durante a aula aberta Corpo e Racismo na Universidade, promovida pelo Nectar, no dia 8 de maio. O que o inspirou a criar essa frase? 

A inspiração vem diretamente de Angela Davis. É uma paráfrase da célebre frase dela: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Há uma questão sociorracial nisso, sobre a qual precisamos refletir. Todas as pessoas brancas têm referências de sucesso desde sempre, mesmo as mais pobres conseguem encontrar em quem se inspirar, seja na televisão, seja na escola, nos hospitais, seja onde for. Totalmente diferente das pessoas negras, para quem essa nação tem executado um grande e sofisticadíssimo projeto genocida desde que os primeiros africanos chegaram aqui sequestrados e escravizados. Inventaram que o padrão de beleza é branco, que honestidade é branca, que a inteligência é branca e isso foi consolidado de tal forma em nossas subjetividades que virou verdade quase que absoluta. Tanto é que presos da lava jato, por exemplo, são brancos, mas isso não é valor para a sociedade. Em consequência disso, a vitória, o sucesso, o destaque positivo de qualquer pessoa negra informa, principalmente aos jovens e às crianças negras, que uma outra realidade é possível, a despeito do racismo, da exclusão e da desumanização de pessoas negras. 

Conte-nos suas reflexões sobre o preconceito racial e social que perduram no Brasil. 

É muito comum ouvirmos as pessoas dizerem que o racismo e os diferentes preconceitos são frutos da falta de educação formal ou falta de informações provenientes da família. Em parte pode ser isso, mas está longe de ser uma consequência exclusiva desses fatores. No entanto, vemos pessoas de altíssimo nível de educação que são racistas, homofóbicas, misóginas… não é isso… isso é fruto exclusivo da ignorância. O racismo, por exemplo, se sofistica de acordo com a época e o local. Vivemos hoje aquilo que Mbembe chama de racismo sem raça. Não é necessário você assumir que odeia a pessoa por causa das marcas fenotípicas. Basta você dizer que a cultura dela é inferior, demonizar as religiões que essas pessoas praticam, ridicularizar a estética que ele prefere simplesmente pelo fato de não ser a estética branca, tentar padronizar até mesmo o tom de voz, a maneira de rir… Temos de estar muito conscientes de que somos seres preconceituosos e essa consciência precisa ser um exercício para nos afastarmos de nossos preconceitos. 

Quais são os projetos futuros para divulgar e trazer à discussão esse importante tema?

Sou professor e pesquisador. Neste trajeto tenho trabalhado em diferentes posições na luta antirracista. Sou membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, tendo sido secretário da Associação por duas gestões e no momento atuo como diretor de áreas acadêmicas na Associação de Investigadores Negros e Negras da América Latina. Sou também professor do Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais, onde tenho um grupo de pesquisa sobre cinema negro. Dessa forma, eu, o programa, nosso alunos, professores e toda um rede de pesquisadores negros temos nos dedicado à divulgação e à discussão de temas referentes à luta antirracista.

 

Entrevista com Prof. Roberto Borges – A Pedra