Por Ana Teresa Gotardo | Julho 2019

No dia 25 de abril de 2019, durante um café-da-manhã com jornalistas no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil “não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias” e complementou sua fala dizendo que se alguém “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”[1]. As falas foram publicadas por sites como O Antagonista e Revista Crusoé, que estavam presentes no evento, e reverberadas por diversos outros veículos, além de terem ganhado, no dia, grande atenção nas mídias sociais.

A fala me chocou não apenas como mulher e cidadã, mas também como pesquisadora. Desde que ingressei no mestrado, em 2014, eu investigo os processos de construção e desconstrução da marca Rio em documentários internacionais de televisão. Na minha dissertação (disponível aqui), analiso documentários seriados de turismo. No doutorado, o corpus foi ampliado, incluindo documentários (seriados ou não, de turismo ou não) feitos por ocasião dos megaeventos (entre 2013 e 2018).

Apesar de uma construção de imagem muito problemática e passível de várias críticas, como venho demonstrando através de publicações em revistas científicas e livros, a gestão de imagem da marca Rio é fruto de demanda e de potencial do mercado turístico, estratégia defendida por fazer a economia crescer e gerar empregos. Sim, podemos criticar a forma como essa marca foi pensada, estruturada e gerida, mas é necessário reconhecer que há (ou havia) uma potência em sua existência, na promessa de desenvolvimento de um setor econômico que ela traz (ou trazia). Muito se investiu na construção da marca em termos de não apenas de dinheiro, mas também de política, de relacionamento, dentre inúmeros outros que não cabem elencar neste texto.

Tendo isso em foco, podemos começar a mapear os imensos impactos negativos que essas falas trazem ao esforço de construção da marca. Neste momento, eu gostaria de focar em apenas dois, especificamente, que dizem respeito diretamente à fala de Bolsonaro e a meu trabalho como pesquisadora.

  1. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay”.

A construção do Rio como destino gayfriendly foi um ponto muito tratado nos documentários turísticos, especialmente em Brazil with Michael Palin (2012). A ideia de que o Brasil é o país da diversidade e da liberdade sexual. Palin, em seu programa, visita o projeto Rio sem Homofobia e participa da Parada Gay. O ex-prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, investiu muito no desenvolvimento desse atributo para a marca, embora esse imaginário pareça estar diretamente ligado a outro mais antigo: o do povo sensual que goza de liberdade sexual. Nesse contexto, a cidade do Rio de Janeiro foi eleita algumas vezes por sites especializados como destino gay mais sexy do mundo, melhor destino gay do mundo, melhor praia LGBT da América Latina, dentre outros[2]. Em 2011, na esteira dos investimentos mercadológicos na Marca Rio, a cidade viu no público LGBT[3] uma importante fonte de recursos para o turismo: em 2014, a prefeitura, em conjunto com a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (Ceds), realizou uma pesquisa sobre o perfil e o impacto econômico do turista LGBT no carnaval do Rio de Janeiro, constatando que “turismo LGBT representou 30,75% da receita de R$ 1,5 bilhão gerada durante o carnaval na cidade, o que garantiu um impacto direto sobre a economia local de R$ 47 milhões por dia, já que os gastos deste público ultrapassaram a barreira dos R$ 461 milhões nos dias de folia”[4].

Esse imaginário, no entanto, é desmistificado em Gaycation (2016), documentário de Ellen Page que ganhou as mídias sociais por trazer uma entrevista com o então deputado federal Jair Bolsonaro, no qual ela demonstra que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT no mundo e como pessoas comuns (não famosas) não consideram “normal” ver casais homoafetivos se beijando, por exemplo. Segundo a narrativa, o preconceito é parte da cultura brasileira, embora tenha tentado se construir o país como destino gayfriendly pelo lucro que ele gera. Em um país com milhões de desempregados e no qual as minorias morrem por sua orientação sexual, ou pela sua identificação de gênero, onde mulheres sofrem estupros corretivos por serem lésbicas, ao invés de campanhas educativas e ações afirmativas, o presidente reitera ainda mais o preconceito (tanto em sua entrevista no documentário quanto em sua fala já como presidente), com o risco potencial de dar ainda mais aval para toda a violência, além de negar todo potencial econômico que a população LGBT representa para o turismo.

Resultado de imagem para Gaycation
Poster de divulgação do documentário Gaycation. Fonte: Study Breaks
  1. “Se quiser vir fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”

O imaginário do corpo colonial disponível, especialmente no que se refere ao estereótipo da “mulata” (entre aspas para salientar a dupla opressão de gênero e raça que o termo carrega), representa um retorno ao discurso utilizado pela Embratur dos anos de 1960, quando se começa a explorar o turismo no Brasil de forma institucional e o corpo feminino é explorado como atributo desse lugar. Apesar de todo esforço institucional e legal (vide a proibição de cartões postais com fotos de mulheres seminuas nos anos de 1990) feito ao longo dos anos para mudar esse imaginário (que remete inclusive às narrativas fundadoras, como a Carta de Caminha, que fala da perfeição dos corpos dos nativos), os corpos femininos “disponíveis” sempre estiveram presentes nos documentários internacionais. Anthony Bourdain disse algo mais ou menos assim em No Reservations (2012): “aqui parece que ninguém trabalha, todo mundo é bonito demais pra ter que trabalhar […] todo mundo parece que acabou de transar ou está a caminho para o sexo”. Novamente, haveria que se investir na mudança dessa narrativa (lenta, é verdade, tendo em vista os mais de 500 anos de sua construção), mas o presidente acaba por ratificar esse imaginário a despeito de todas as conquistas dos movimentos feministas.

Durante as Jornadas de Junho de 2013, parte das manifestações girava em torno do gasto excessivo para os megaeventos. Parte desse dinheiro foi “investido” na construção da marca Rio, marca que por inúmeros motivos já estava passando por processos de desconstrução. Uma fala como essa representa o retorno a políticas já há bastante tempo superadas, fere princípios de igualdade, fere a imagem de uma marca já muito desgastada e que agoniza e provavelmente trará perdas em termos de resultados financeiros em torno da economia do turismo e geração de empregos, além de ser uma fala homofóbica e misógina.

Não bastasse esse quadro, em 15 de maio de 2019, o governo retirou do Plano Nacional de Turismo 2018-2022 o incentivo ao turismo LGBT[5], transformando a fala do presidente em política. Política do retrocesso e do preconceito em um país com mais de 13 milhões de desempregados que ignora todo potencial econômico de um grande público potencial e todo investimento público feito na construção da marca-cidade.

 

Notas de fim

[1] Fonte: Portal Terra. Acesso em 08 jul. 2019.

[2] Algumas fontes pesquisadas: Village Voice (pesquisa realizada e divulgada pelo aplicativo Grindr, acesso em 17 jul. 2017); G1 (acesso em 17 jul. 2017); Agência Brasil (acesso em 17 jul. 2017); Travel Channel (acesso em 17 jul. 2017).

[3] Fonte: The Guardian. Acesso em 17 jul. 2017.

[4] Fonte: Prefeitura do Rio. Acesso em 17 jul. 2017.

[5] Fonte: G1. Acesso em 10 jul. 2019.

“O Brasil não pode ser um país de turismo gay” e a Marca Rio