Por Tetê Mattos | Junho 2019

Apesar de termos pouquíssimos estudos sobre os festivais audiovisuais no Brasil, este campo emergente de pesquisa vem se desenvolvendo com trabalhos consistentes nos últimos anos em diversas partes do mundo, em especial no continente europeu. Os estudos acerca de festivais de cinema no âmbito acadêmico até os anos de 1990 são praticamente inexistentes (DE VALCK, 2007). A bibliografia dedicada a estes eventos se limitavam às críticas cinematográficas publicadas na imprensa especializadas ou às publicações de caráter comemorativo produzidas pelos próprios festivais, como aponta a pesquisadora espanhola Aida Vallejo Vallejo (2014). Diante do fenômeno internacional de proliferação dos festivais nos últimos anos iremos nos deparar com o crescente aumento das pesquisas sobre o assunto, em diversos campos acadêmicos, que irão mudar o foco das investigações antes centrados nos textos (os filmes) para centrar os estudos nos contextos. (VALLEJO, 2014, p.16). As diversas abordagens situam-se nos campos dos “estudos cinematográficos, história cultural, antropologia, estudos culturais, estudos de comunicação e gestão cultural” (op.cit., p. 14).

Este caráter interdisciplinar dos estudos dos festivais de cinema se por um lado traz uma riqueza de abordagem, por outro, dificulta nas definições dos marcos teóricos.

Um dos primeiros trabalhos¹ críticos sobre o tema de autoria do pesquisador norte-americado Bill Nichols datam do ano de 1994. Nos artigos “Global Imagem Consumpption in the Age of Late Capitalism” [O consumo global de Imagem na Era do Capitalismo Tardio] e “Descovering Form, Inferring Meaning” [Descobrindo Forma, Inferindo Significado] (1994) Nichols analisa as formas de funcionamento dos festivais audiovisuais, tratando-os como espaços de singularidade de diferentes culturas de um cinema internacional. Para Nichols, a experiência do público frequentador se dá através de uma imersão, e prazer provocado pelo estranhamento frente às obras anti hollywoodianas.

Um dos mais importantes pesquisadores da história do cinema Thomas Elsaesser, também dedicou o seu olhar para o campo dos festivais audiovisuais. No capítulo “Film Festival Networks: The New Topographies of Cinema in Europe”, (2005) analisa a importância da rede de festivais audiovisuais na Europa, como um circuito alternativo de exibição e distribuição de filmes. Para Elsaesser, os festivais de cinema se consolidam como uma “força-chave” e rede de energia na indústria cinematográfica, estimulando o funcionamento de outros elementos ligados à cultura cinematográfica: autoria, produção, exibição, prestígio e reconhecimento cultural. A importância do ensaio de Elsaesser é de que ele irá antecipar uma série de questões que serão desenvolvidas mais detalhadamente em trabalhos futuros, tais como os de MariJke De Valck (2007) e Dina Iordinova (2009).

Para Vallejo (2014) o salto qualitativo dos estudos acerca de festivais cinematográficos foi a publicação do livro “Film Festivals: From European Geopolitics to Global Cinephilia” (2007), de autoria de Marijke de Valck, fruto de sua tese de doutoramento sob orientação de Thomas Elsaesser. De Valck, pesquisadora e professora da University of Amsterdam, aborda o tema dos festivais de cinema de forma diversificada. Com um longo capítulo introdutório De Valck analisa os festivais de cinema através de uma perspectiva histórica abordando-os a partir da dimensão geopolítica, econômica, midiática e cultural (VALLEJO, 2014, p. 17), e centra seu estudo no caso de quatro importantes festivais internacionais – Berlim, Cannes, Veneza e Rotterdam. A autora, a partir da Teoria do Ator Rede, de Bruno Latour, e em diálogo com a ideia de “rede”, de Elsaesser, introduzirá o conceito de festivais como “lugares obrigatórios de passagem” devido à centralidade destes eventos (atores) na composição destas redes cinematográficas.

A contribuição de Marijke de Valck, para os estudos dos festivais também é de fundamental importância. Em 2008, junto com a pesquisadora Skadi Loist, pós-doutora pela University of Rostock, Alemanha, organizaram o Film Festival Research Network (FFRN), onde fizeram um mapeamento dos estudos acadêmicos sobre festivais de cinema, possibilitando assim uma sistematização da pesquisas neste campo de estudo emergente. Desta forma as pesquisadoras além de disponibilizarem uma vasta bibliografia sobre o tema, também promovem um intercâmbio de conhecimento acadêmico na área. Em 2016, junto com Brendan Kredell, da Oakland University, EUA, assinam a organização do livro Film Festivals: History, Theory, Method, Practice, referência obrigatória para os estudiosos do assunto.

A pesquisadora Dina Iordanova da Universidade de St Andrews, na Escócia, se destaca no campo dos estudos sobre festivais audiovisuais. Além de coordenadora da série Film Festival Yearbooks, que a cada número oferece um tema específico², Iordanova é organizadora da publicação sobre o tema The Film Festival Reader (2013), que reune uma coletânea de artigos dos principais pensadores sobre os festivais audiovisuais. O livro trata de uma compilação dos principais ensaios sobre festivais de cinema publicados nas últimas décadas e uma tentativa de estabelecer um diálogo entre estes poucos artigos que até o momento encontravam-se desconectados³.

Não menos importante é o trabalho editado por Richard Porton, intitulado On Film Festivals, e também de 2009. Nesta coletânea encontramos diversos artigos sobre o tema festivais junto com a reedição de textos clássicos como o de André Bazin, publicado na Cahier du Cinéma em 1955, citado em nota anteriormente.

No Brasil ainda são escassos os trabalhos com viéis mais analítico acerca dos festivais de cinema. Em O cinema em festivais e os caminhos do curta-metragem no Brasil (1978), trabalho pioneiro de autoria de Miriam Alencar, observamos considerações sobre a importância dos eventos internacionais e nacionais.

No âmbito acadêmico, somente nesta década é que surgem as primeiras teses centradas em festivais de cinema. Territórios do Desejo (2012), de Marcos Aurélio da Silva, Consumo Fanático: uma análise exploratória nos festivais de cinema fantástico (2013), de João Pedro dos Santos Fleck, O Festival do Rio e as configurações da cidade do Rio de Janeiro (2018), de minha autoria, e É Tudo Verdade? Cinema, memória e usos públicos da história (2019), de Juliana Muylaert Mager, são algumas das pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação em antropologia, administração, comunicação e história, respectivamente.

Recentemente, a SOCINE, um dos mais importantes congressos acadêmicos na área do cinema no Brasil, divulgou a lista de trabalhos selecionados para a edição de 2019, onde quatro deles tem como objeto de estudo os festivais de cinema. Este dado me parece revelador do crescente interesse acadêmico pelos festivais de cinema. Aguardemos!

 

Referências

ALENCAR, Miriam. O cinema em festivais e os caminhos do curta metragem no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Artenova/Embrafilme, 1978.

DE VALCK, Marijke.  Film Festivals: From European Geopolitics to Global Cinephilia. Amsterdam: Amsterdam Univ. Press. 2007.

DE VALCK, Marijke, KREDELL, Brendan & LOIST, Skadi. Film Festival: History, theory, method, practice. London and New York: Routledge, 2016.

ELSAESSER, Thomas. “Film Festival Network: The New Topographies of Cinema in Europe”. In: European Cinema: Face to Face with Hollywood. Amsterdam: Amesterdam University Press, 2005. P. 82-107.

MATTOS, Tetê. “Festivais pra quê? Um estudo crítico sobre festivais audiovisuais brasileiros”. In: BAMBA, Mahomed (org.) A Recepção Cinematográfica – Teoria e estudos de casos. Salvador: Edufba, 2013.

NICHOLS, Bill. “Discovering form, inferring meaning – New cinemas and the film festival circuit”. In: Film Quarterly, vol.47, n. 3, Spring 1994, p.16-30.

NICHOLS, Bill. “Global image consumption in the age of late capitalism”. In: IORDANOVA, Dina (org.) The Film Festivals Reader. St Andrews: St Andrews Film Studies, 2013.

VALLEJO, Aida Vallejo. “Festivales cinematográficos. Em el punto de mira de la historiografia fílmica”. In: Sequencias. N. 39, primer semestre 2014.

 

 

¹O importante teórico André Bazin, em 1955 publicou na Revista Cahiers du Cinéma um artigo intitulado “Du festival considéré comme um ordre” onde relata a experiência do crítico cinematográfico no Festival de Cannes. Este texto foi reeditado em inglês no livro On Film Festivals, da série Dekalog (2009).

²Desde 2009 a série Film Festival Yearbooks foi publicada com os seguintes temas: “O circuito dos festivais” (2009), “Festivais de cinema e comunidades imaginadas” (2010), “Festivais de Cinema e o Oeste da Asia” (2011), “Festivais de Cinema e Ativismo” (2012), “Festivais de Filmes de Arquivo” (2013), “Festivais de Cinema e o Oriente Médio” (2014).

³O livro reedita ensaios seminais do campo, tais como os artigos de Bill Nichols, Thomas Elsaesser,  Marijke De Valck, Janet Harbord e Julian Stringer, entre outros.

Festivais de cinema e os estudos acadêmicos