Por Igor Lacerda | Maio 2019

No carnaval de 2018, cenas de crimes foram narradas por diversos veículos de comunicação. Especialmente no jornal O Globo, a exuberância dessa festa popular dividiu seu espaço com casos de arrastões, roubos e espancamentos. Conectadas, mesmo sem nenhuma ligação, esses acontecimentos violentos formavam uma trama produtora de sentidos. Combinadas, produziam e fomentavam temores, gerando uma sensação de caos no urbano. Então, a intervenção militar vinha responder a esses medos, sob o comando do presidente Michel Temer e do general Walter Souza Braga Netto, com o aval do governador Luiz Fernando Souza (Pezão), da Câmara e do Senado. 

Importante lembrar!!

A intervenção é um procedimento regulado pelos artigos 34 e 36 do capítulo VI da Constituição Brasileira (CRFB) que nunca tinha sido utilizado pelo governo brasileiro. Em condições usuais, o governo federal não teria autonomia para intervir nas decisões dos Estados e de ditar os rumos de áreas como a segurança pública. Todavia, conforme o artigo 34, essa situação pode ocorrer para manter a integridade do território brasileiro; reorganizar as finanças de uma unidade da federação e/ou repelir um ataque estrangeiro. No caso do Rio de Janeiro, foi invocado o inciso três do artigo 34, que permite uma intervenção federal para amenizar “grave comprometimento da ordem pública”. Uma ordem pública que em princípio estaria comprometida pelo aumento da violência num estado em crise, com dificuldade para manter os agentes de segurança e garantir o funcionamento de seus postos de trabalho.

E o que muda com a intervenção? O ex-secretário de segurança pública do Rio, Roberto Sá, foi exonerado no dia 19 de fevereiro de 2018, e o general do exército Walter Souza de Braga Netto assumiu seu cargo, passando a ser responsável pela secretaria de segurança pública, pelas polícias civil e militar, pelos bombeiros e pelo sistema prisional. Entendemos essa intervenção como militar, pois, segundo Rocha (2018), a militarização é um processo viabilizado por justificativas morais e ideológicas que traz o “campo de batalha” para dentro das cidades a fim de combater um exército inimigo formado por gangues, milícias, quadrilhas armadas e outros grupos. Assim, a militarização utiliza agentes treinados para a guerra no combate de “crimes comuns”, tornando habitual a presença de soldados do Exército nas ruas, nas reuniões que estabelecem os parâmetros da segurança e na organização da vida de pessoas que vivem nas cidades.

Voltando ao medo…

Em Narrativas do medo: o jornalismo de sensações além do sensacionalismo, Letícia Matheus explica que o medo está presente no jornalismo contemporâneo por ter subsistido à imprensa como um novo regime de publicização. Esclarecendo, ainda, que na Europa do século XVII, uma espécie de literatura entre o oral e o escrito teria transformado parte da cultura popular em cultura de massa. Como exemplo, cita o colportage francês e os pliegos espanhóis (primos próximos do nosso famigerado cordel), que entretinham o público da época com narrativas sensacionais que remontavam tragédias e fábulas, descrevendo assassinatos, demônios, tecendo blasfêmias e sátiras às cidades e às pessoas, adaptando-as ao gosto popular e às limitações de leitura.

A autora lembra que no século XVII o teatro melodramático ganha um novo ânimo, sendo uma estrutura dramática semelhante aos impressos colportage e pliegos. A burguesia assumia à época um novo papel como espectadora, supostamente absorvendo as essências políticas e filosóficas das obras, enquanto os populares continuavam expressando suas emoções de forma excessiva, com berros, gargalhadas e lágrimas. O melodrama era justamente um teatro de ação, sem diálogos – proibidos durante um tempo como uma forma de conter os afetos do público. Por essa razão, para substituir as falas, os dramaturgos recorriam a estratégias como figurinos estereotipados, mímicas, efeitos sonoros e outros recursos.

Então, Matheus clarifica que essa estrutura se baseia em arquétipos sociais e na polarização entre personagens bons e maus. Os arquétipos eram quatro: o traidor, que encarnava o mal, gerador de medo; o justiceiro, responsável pela proteção da vítima; a vítima, representante da dor; e o bobo, encarregado das críticas e dos risos. Assim como no jornalismo, o medo, o terror e o mistério eram os temas prediletos desse teatro, por isso acreditamos que seja possível fazer uma aproximação desses melodramas com as narrativas contemporâneas de O Globo sobre a intervenção militar no Rio.

No teatro melodramático, os personagens traidores eram sedutores, agressores, a própria expressão do capiroto. Nas reportagens de O Globo, as milícias e os traficantes aparecem como os traiçoeiros, os responsáveis pela onda de violência no Rio. São ameaças abstratas e difusas, potencializando a difusão de pavores nos/dos espaços públicos. O governador Pezão também pode ser entendido como um traidor, embora com baixo poder de sedução (literalmente). Pois, incapaz de gerir uma cidade em crise, optou por diminuir a verba destinada a áreas essenciais como saúde, segurança e educação, vitimando significativamente uma parte da população.

O fato de o mal não ser personificado rapidamente em atores concretos leva essas narrativas a encenar universos ainda mais fantásticos, potencializando a capacidade de difusão do pavor. Ou seja, apesar da expectativa informativa em relação aos jornais, o fantástico e o sensacional estão longe de serem antiéticos ao jornalismo. Pelo contrário, são seus pilares mais sólidos (MATHEUS, 2011, p. 39).

Nesse cenário, ironicamente, o presidente Michel Temer pode ser considerado um justiceiro. Ele era representado pelo jornal como fraco e impopular, em especial por suas reformas trabalhista e previdenciária – que, juntas, aumentavam o tempo de contribuição e retiravam uma série de direitos dos trabalhadores. Temer também assume o papel de anti-herói na medida em que aceita o compromisso de livrar o estado do Rio de Janeiro (a vítima) da sedução dos traidores. E aí, quando falamos do presidente, também nos referimos ao seu general, Braga Netto.

O jornal, supostamente representando a sociedade, denuncia essa espécie de fracasso do justiceiro, que precisaria tomar a dianteira da história. Por outro lado, tal fraqueza pode ser entendida como um jogo retórico para mostrar que, na realidade, quem é o protagonista da história, capaz de salvar a cidade indefesa, é o próprio jornal, reafirmando seu poder simbólico (MATHEUS, 2011, p. 40).

No jornal, a vítima sente uma dor sempre injusta, provocada sobretudo por traficantes, milicianos e/ou por políticos. Políticos traficantes e milicianos. Políticos milicianos. Políticos traficantes. Mas, dependendo da boa vontade do dramaturgo, a sofredora também pode ser transformada em heroína pela edificação de seu sofrimento. Às vezes, sem a identificação de personagens específicos, esse papel é bem encenado pela população indefesa no geral. Em outros momentos, a vítima é alguém com nome e sobrenome que foi eliminada por essa violência.

Até aqui, impossível negar que o Globo flerte com o melodrama no que se refere ao medo. Isso pode ser percebido quando os dramas são conectados, mesmo quando são isolados… Ou cada vez que alguns aspectos dramáticos são estrategicamente trazidos à memória, enquanto outros são silenciados… E assim, o jornalismo vai produzindo sentidos a esse grande teatro público, gerando amores e ódios, apatias e compaixões.

A sensacionalização das notícias assegura o reconhecimento do leitor com determinados personagens e a rejeição de outros, promovendo o compartilhamento de uma noção de experiência comum e íntima. O melodrama participa, assim, do aparato simbólico de interpretação da cidade (MATHEUS, 2011, p. 42).

Opa! Já ia esquecendo!

E por fim, tem o bobo. Se no passado ele era crítico e risonho, agora é apenas crítico. O riso está comedido, fraco, acanhado. A gargalhada está ausente não só pela estrutura das reportagens jornalísticas, por uma questão de estilo ou de mercado, mas pelo alto teor de dramaticidade empregado aos casos narrados. No fundo, sabemos que bobos são todos aqueles que se esforçam para analisar de forma crítica, no meio dessa loucura toda, o conjunto de fenômenos sociais que resultam das relações que os sujeitos estabelecem entre si e com a natureza. Bobo sou eu. Bobo é você.

 

Referências:

ROCHA, L. Democracia e militarização no Rio de Janeiro. In LEITE, Marcia. Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Marula, 2018.

MATHEUS, Letícia. Narrativas do medo: o jornalismo de sensações além do sensacionalismo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

 

Intervenção militar: um teatro melodramático nos jornais