Por Flávia Barroso de Mello | Maio 2019

Para pensar o tema dos imaginários, representações e linguagens sobre a cidade, parte-se da abordagem da história cultural, mais especificamente do pensamento da historiadora Sandra Pesavento (2007, 2014). Para a autora, a cidade não é mais considerada como um lócus privilegiado da realização da produção ou da ação dos atores sociais, “mas, sobretudo, como um problema e um objeto de reflexão, a partir das representações sociais que produz e que se objetivam em práticas sociais.” (PESAVENTO, 2007, p. 3).

Nesse viés, a autora propõe pensar a cidade a partir de três perspectivas: a da materialidade, a da sociabilidade e a da sensibilidade. A cidade é percebida como materialidade quando se reconhece estar diante do fenômeno urbano, em contraposição à realidade rural. Ou seja, quando se identifica uma ação humana sobre a natureza. Para Pesavento (2007), a cidade pode ser compreendida também pelo viés da sociabilidade, com seus atores, as relações estabelecidas entre eles, os grupos, as práticas de interação, as festas, comportamentos e hábitos. E, finalmente, a autora propõe olhar a cidade a partir da dimensão da sensibilidade, ao afirmar que para cada cidade real, concreta, visual, táctil, consumida e usada no dia-a-dia há outras tantas cidades imaginárias, representadas, ao longo do tempo, pela palavra escrita ou falada, pela música, pela imagem, pelas práticas cotidianas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade de seus citadinos, pois

cidades são, por excelência, um fenômeno cultural, ou seja, integradas a esse princípio de atribuição de significados ao mundo. Cidades pressupõem a construção de um ethos, o que implica a atribuição de valores para aquilo que se convencionou chamar de urbano. (PESAVENTO, 2007, p. 3)

 

Muito mais do que uma aglomeração de concreto, portanto, a cidade é um campo simbólico, em que se travam lutas políticas, jogos de representações, identidades e relações de poder, em processo contínuo de construção. Neste viés, entende-se que a construção da identidade de um lugar está diretamente relacionada ao seu passado e ao atual ambiente histórico, político, econômico, legal e cultural em que está inserido. Nos termos de Hall (2014), essa construção tem a ver com a produção não daquilo que somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Assim, as questões sobre “quem podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos nos representar” se sobrepõem às questões relacionadas a “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”. O autor entende identidade a partir de um viés discursivo, como uma construção sempre em processo, em que as dinâmicas culturais provocam suturas e fixações, discursos e práticas que, por um lado, tentam interpelar os atores a assumirem seus lugares de sujeitos sociais e, por outro lado, produzem subjetividades, que os constroem como sujeitos agentes. Ou seja, para Hall (2014), uma identidade nunca é fixa, estável, ela é constitutiva a partir da relação com o “Outro”, a partir da différance ou por meio dela.

A construção cultural de uma identidade, afinal, se dará a partir dos significados atribuídos aos espaços sociais, aos lugares socialmente experimentados, pelas narrativas produzidas por diferentes agentes, a partir das disputas que envolvem a apropriação simbólica da materialidade, dos espaços construídos. Narrar, portanto, como propõe o pensamento de Paul Ricoeur (1994, 1995,1997), significa configurar a existência na vivência cotidiana de nossos atos. Para o autor, narrar é viver cotidianamente e produzir reinterpretações. Em “Comunicação, mídia e consumo”, Barbosa (2009) sinaliza que, para Ricouer, os conectores históricos produzem identidades narrativas em busca da construção do tempo histórico, ou seja, só se narra o que acontece e se desenvolve no tempo (Ricoeur, apud Barbosa, 2009).

Se a construção cultural de uma identidade pode ser entendida como uma narrativa de si e dos outros, em constante construção, cabe, portanto, problematizar o conceito de memória coletiva, de Maurice Halbwachs (1990), uma vez que essas narrativas são produzidas com base no acionamento das memórias de quem as narra. Para o autor, a memória não é puramente individual, ela é um produto da interação social, do meio em que se vive. E é no presente que essa memória é acionada como recurso para a construção de um futuro que atenda às aspirações do presente. Halbwachs (1990, p. 16) afirma que “se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais”.

Problematizando a estruturação da memória coletiva e da identidade, Pollak (1992), assim, como Halbwachs, insiste na memória “como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes” (Pollack, 1992, p.2). Além de socialmente construída, para o autor a memória é “seletiva”, ou seja, há, um trabalho constante de “enquadramento da memória”. É preciso escolher o que vai ser lembrado e o que deve ser esquecido, reforçando que “as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória”.

Como Halbwachs (1990), Pollak (1992) reitera o aspecto de construção da memória como uma estratégia de agentes e agências sociais para ancorar identidades e afirma que a memória é, em parte, herdada, e está fenomenologicamente ligada ao sentimento de identidade (POLLACK, 1992, p.5). O autor aponta, assim, que “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade” (idem) e que, na construção da identidade, é preciso levar-se em conta três elementos essenciais: a unidade física (remetendo à ideia de pertencimento, de fronteiras físicas); a continuidade dentro do tempo (não só no sentido físico, mas moral e psicológico, como destaca o autor); e, finalmente, “o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados” (idem). Assim, conclui Pollack, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (idem). Desse modo, pode-se pensar a construção da identidade não apenas como algo individual ou coletivo, mas como uma constante negociação entre indivíduo e sociedade, sempre em processo de interação e fluxos. Assim, os sujeitos não constroem uma única e estática identidade, mas configuram-se em múltiplas identidades, sempre em relação com sua alteridade.

 

 

Em seus estudos sobre lugares de memória, Pierre Nora (1993) observa que a valorização das ruínas históricas, a procura de vestígios que formem a identidade da cidade, a restauração de patrimônios e a construção de museus são uma necessidade de produzir memória, em contrapartida à aceleração que abarca a sociedade contemporânea. Nora (1993) é defensor da ideia de que a ausência de memória espontânea criou, na contemporaneidade, uma obsessão pela materialização da memória. Assim, na visão do autor, os museus, institutos históricos, casas de cultura, monumentos, textos literários, entre outros, podem ser entendidos como lugares de memória, que objetivam manter acionados os sentimentos de pertencimento e de identificação. Na perspectiva deste autor, lugares de memória (1) precisam ser entendidos como lugares onde se cristaliza e se refugia a própria memória; (2) pertencem, ao mesmo tempo, tanto ao domínio da memória quanto ao domínio da história; e (3) podem ser lugares tangíveis, lugares funcionais e lugares simbólicos, inclusive simultaneamente, variando apenas em graus. Salgueiro (2008), observando as teorias de Nora (1993), afirma que “a memória precisa se enraizar no concreto, isto é, em espaços, gestos, imagens e objetos, num conjunto de coisas palpáveis e perceptíveis, enfim, entre as quais se incluem os monumentos” (SALGUEIRO, 2008, p. 17).

Com efeito, na contemporaneidade, as narrativas midiáticas são agentes definitivos na tessitura das “redes de textualidades entre passado, presente e futuro” (MATHEUS, 2013, p. 45), são elas que dão forma e tornam a cidade visível e identificável no imaginário, tanto dos citadinos, que se apropriam do espaço, quanto dos visitantes que apenas passam por ele. No entanto, para além sujeitos desse processo, os veículos de mídia podem ser entendidos como lugares inscritos tanto na memória quanto na história, uma vez que constroem narrativas que fixam “um instante para o futuro privilegiando aspectos em detrimento de outros (ou seja, produzindo esquecimentos) com a perspectiva de fixar um padrão para um fato que se presume histórico” (BARBOSA, 2016, p. 17). Dessa forma, a mídia faz um trabalho de enquadramento de memória (POLLACK, 1989), em que os usos do passado como estratégias narrativas (BARBOSA, 2016), a opção por priorizar rupturas e/ou continuidades, por privilegiar uma certa maneira de enxergar os fatos históricos, evidentemente, guarda interesses políticos e ideológicos. Por sua intensa narratividade, a mídia possui a capacidade de “produzir uma profusão de sínteses periódicas sobre o cotidiano e de colocá-las em circulação no cotidiano”, como ressalta Matheus (2013, p. 45), e, mesmo assim, “lá se encontram a história e as múltiplas versões do passado, como base constituinte das narrativas jornalísticas que supostamente versam sobre a atualidade instantânea” (MATHEUS, 2013, p. 45). O acionamento de memórias construídas e revitalizadas, portanto, subsidiam os símbolos identitários, conferem sentimentos de poder e coesão a um grupo, a um país, a uma cidade.

 

REFERÊNCIAS:

BARBOSA, Marialva. Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, vol. 6 n . 16 p. 11-27 jul. 2009.

BARBOSA, Marialva. Meios de comunicação: lugar de memória ou na história? Contracampo, Niterói, v. 35, n. 01, pp. 07-26, abr./jul., 2016.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994, 1995, 1997. v. 1, 2 e 3.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.

MATHEUS, Letícia Cantarela. Canecas, relógios e porta-copos: a história como mercadoria jornalística. Revista Mosaico – Volume 4 – Número 7 – 2013.

PESAVENTO, S. J. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de História, vol. 27, n. 53, jun./2007, pp. 11-23.

PESAVENTO, S. J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

SALGUEIRO, Valéria. De pedra e bronze. Um estudo sobre monumentos. O monumento a Benjamin Constant. Niterói (RJ): Eduff, 2008, pp. 17-56.

Pensando a cidade: identidade, memória e narrativas midiáticas