Por Ricardo Ferreira Freitas | Setembro/2018

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Fonte: PUCRS

Contemporâneo de Durkheim, o alemão Georg Simmel (1858-1918) oferece uma visão diferente sobre a sociedade e sobre o objeto da ciência que pretende estudá-la. O conceito fundamental da sociologia, para Simmel, é a “interação”, vista como ação recíproca entre os indivíduos (Castro, 2014, p. 39).

Simmel entendia o dinheiro como um agente de socialização e um meio de interação social. Na visão de Simmel, o dinheiro é meio e expressão de relações e dependências recíprocas entre os indivíduos, gerando uma cumplicidade na qual a satisfação dos desejos de um está sempre ligada à do outro. O dinheiro pode ser entendido, a partir dessa perspectiva simmeliana, como meio e processo de comunicação, tanto do ponto de vista da opressão/submissão como do ponto de vista da troca democrática baseada no bem de todos. O dinheiro é perverso e alentador, assim como outros meios de comunicação.

O dinheiro ocupa, segundo Simmel, um lugar na sociedade no qual as coisas mais opostas, mais paradoxais, encontram seu ponto comum quando entram em contato com os indivíduos, causando-lhes interesse. Quanto mais um objeto serve de meio de troca, reunindo em si os fatores do crescimento do valor, mais esse objeto possui a qualidade do dinheiro; puro meio, o dinheiro representa a síntese máxima do objeto (Simmel, 1987a, p. 249). O dinheiro é meio para se adquirir valores concretos, mas também deixa o indivíduo à vontade para escolher o momento no qual quer gastá-lo.

[…] Sendo o equivalente a todas as múltiplas coisas de uma e mesma forma, o dinheiro torna-se o mais assustador dos niveladores. Pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de ‘quanto?’. O dinheiro, com toda a ausência de cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores; arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade, seu valor específico e sua incomparabilidade (SIMMEL, 1987b, p.16).

A “Filosofia do Dinheiro”, referência nas ciências sociais, é considerada uma das maiores heranças intelectuais de Simmel. Antes de sua publicação em 1900, Simmel já havia divulgado alguns artigos[1] nos quais sustentava a ideia de definir a metrópole como sede da economia monetária (Jonas e Weidmann, 2006, p. 166). O termo “economia monetária” é empregado por Simmel no lugar de capitalismo, mas representa mais do que isso, visto que corresponde a uma verdadeira perspectiva histórica de longa duração na qual, para além dos diferentes sistemas econômicos que puderam existir, se desenvolve um processo de monetarização que induz ao processo de modernização e de civilização da sociedade.

Na virada do século XIX para XX, ao trabalhar sobre as cidades de arte como Roma, Florença e Veneza, Simmel ressaltava o quanto a abordagem metodológica sobre o dinheiro contemplava sua filosofia e sua sociologia, com especial atenção às questões da estética. As relações do dinheiro com a cultura, com o ritmo de vida metropolitano e com o sexo são questões altamente presentes nos textos que antecederam a “Filosofia do Dinheiro” e os imediatamente posteriores. Nessa época de sua produção intelectual, as interrogações sobre a relação entre o valor do dinheiro e a metrópole, sob o ponto de vista metodológico e epistemológico, não apontam a uma preocupação de ordem estrutural ou funcional, mas de ordem sócio-afetiva, de maneira a tentar compreender como o estilo de vida do citadino é determinado pela experiência urbana.

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Figura: Vista da capital italiana, Roma. Fonte: Musement

Sobre o plano econômico, a metrópole é a forma geral que assume o processo de racionalização das relações sociais, incluindo os sistemas de produção capitalista, em clara influência de Marx no pensamento de Simmel nessa época. Mas, a metrópole exprime, ao mesmo tempo, uma intelectualização (Vergeistigung) da vida do cidadão e um novo lugar de emergência do homem racional moderno. Essa intelectualização visa a preservar a vida do cidadão das metrópoles diante dos novos aspectos qualitativos e quantitativos do cotidiano urbano, possibilitando a autonomia e a singularidade, face à padronização imposta pelo mundo racional moderno.

Em um dos artigos precedentes à Filosofia do Dinheiro, intitulado “O dinheiro na cultura moderna” de 1896, Simmel apresenta de maneira sintética seu pensamento sobre o papel do dinheiro e sua dimensão cultural na vida econômica. Diferentemente do materialismo histórico de Marx que entende o conjunto do processo cultural dependente das condições econômicas, o estudo do dinheiro pode nos ensinar profundas consequências à formação cultural de um período diante de sua vida econômica, mas, que, de outra parte, essa mesma formação recebe a influência dos grandes fatos históricos (Simmel, 2006, p. 39). Segundo Bruno e Guinchard (2009, p. 23), Simmel demonstra, nesse artigo, que o dinheiro e a cultura tem, no seio desses grandes fatos históricos, um papel e um lugar essenciais. Em 1898, Simmel já tornava público um dos textos que viriam a compor a obra Filosofia do Dinheiro – “O papel do dinheiro nas relações entre os sexos” -, no qual analisa situações da sociedade em que o amor ou sexo são trocados ou avaliados pelo dinheiro, como no caso da prostituição feminina e dos casamentos com dote. O crescimento da vida nervosa nas cidades e a intensificação do erotismo implicam revoluções sexuais e de costumes, agregando uma nova moral e novas políticas sociais na modernidade.

Efeitos culturais do dinheiro

Figura: Edição do livro Filosofia do Dinheiro. Fonte: Desenvolvimento em questão.

Simmel critica a hipótese de que os homens teriam uma tendência natural às trocas. Segundo ele, a troca não é tão natural, lembrando que o homem primitivo tinha quase uma aversão à troca, por medo de ser enganado nos processos de câmbio e pela falta de parâmetros de comparação (1987a, p. 355). A maioria dos objetos que ele possuía era fabricada por ele próprio, o que implicava trocar uma parte de si mesmo ao negociar um objeto por outro. Ele prefere, então, o autoconsumo e a doação ou a contra-doação. Ele só se transforma em homem que troca para combater a penúria de determinadas necessidades que vão sendo criadas com a transformação da sociedade e com o desenvolvimento de valores culturais em cada grupo social. Nesse caso, a cidade é o lugar próprio de um estágio cultural do homem no qual a troca é essencial e mesmo a única forma de sobrevivência em nome da objetividade que as metrópoles passam a impor ao longo dos séculos. Com a industrialização das cidades, o dinheiro passa a ser uma forma social, categoria cara na obra de Simmel, dado que nas ciências humanas e sociais a compreensão da experiência do homem é mais importante do que a observação sobre um objeto com o qual ele se relaciona. Nesse contexto, o dinheiro induz a três efeitos culturais: discriminatório, visto que existe uma correlação entre intelectualidade e economia monetária; espacial, devido às modificações na noção de distância que o dinheiro oferece; e de ritmo, com as contradições entre regularidade e diversidade de tempos. Esses três efeitos são aprofundados ao longo da Filosofia do Dinheiro e podem nos dar pistas para novas perspectivas aos estudos de comunicação com particular atenção à polissemia e à pluralidade que estão por trás da palavra “meio” nas metrópoles (Bruno e Guinchard, p. 39).

A economia monetária, termo que Simmel emprega quando se refere ao capitalismo, favorece a emergência da sociedade de consumo que, décadas mais tarde, será estudada com grande destaque nas ciências sociais e nas teorias da comunicação, especialmente pelas construções entre o mundo dos homens e das coisas. O dinheiro realiza, na área econômica, a correlação universal entre o desenvolvimento do indivíduo e a extensão do grupo.

Simmel não chegou a construir uma verdadeira teoria do consumo, mas, em sua Filosofia do Dinheiro, apresenta várias pistas que podem ser úteis aos estudos dos processos de consumo contemporâneos.

 

Referências bibliográficas

BRUNO, Alain; GUINCHARD, Jean-Jacques. Georg Simmel: vie, oeuvres, concepts. Paris: Ellipses, 2009.

CASTRO, Celso. Textos básicos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

JONAS, Stéphane e WEIDMANN, Francis. Simmel et l’espace: de la ville d’art à la métropole. Paris: L’Harmattan, 2006.

SIMMEL Georg. Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1987a.

SIMMEL. Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio G. (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987b.

SIMMEL, Georg. L’argent dans la culture moderne et autres essais sur l’économie de la vie. Paris: Coleção «Philia», Maison des sciences de l’homme/Presses de l’Université de Laval, 2006.

 

Notas

[1] Em 1896 sobre O dinheiro e a cultura; em 1897 sobre O dinheiro e o ritmo da vida; em 1898 sobre O Dinheiro e o o sexo (Jonas e Weidmann, 2006, p.166).

Simmel, dinheiro e comunicação