Entrevistamos o professor Fernando Segura Millan Trejo, que atualmente leciona na Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás, além de ser pesquisador associado ao Departamento de Administração Pública do Centro de Investigación y Docencia Económicas no México e ao laboratório VIPS da Universidade Rennes II na França.  Fernando Segura Trejo é doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, com tese sobre a Homeless World Cup (Copa do Mundo das pessoas em situação de rua) e o Campeonato de luta contra a exclusão social na região de Paris, torneios internacionais e locais de futebol que têm lutado pela integração de pessoas socialmente vulneráveis. Este ano o sociólogo esteve presente na Copa 2018 na Rússia e compartilhou suas observações sobre aspectos gerais e particulares do Mundial. Leia abaixo a conversa que tivemos com ele sobre sociologia dos esportes e o futebol:

 

Pode-se dizer que seus interesses de pesquisa desde o início de sua vida acadêmica perpassam questões ligadas a dilemas sociais. Em seu mestrado, o enfoque esteve nas abordagens acerca do desenvolvimento social e humano. Desde então, suas produções acadêmicas trouxeram essas preceptivas para o mundo do esporte. Em diversos artigos e projetos de sua autoria, você ressalta a importância do futebol para integração do individuo com a sociedade. De onde surgiu esse seu interesse pelas questões sociais e, na sua opinião, qual a importância da promoção do esporte para a solução de problemas sociais?

Boa pergunta, para respondê-la tenho que recuar bastante na minha vida. Acho que nessa trajetória tenho associado dois interesses que estavam presentes desde meus estudos de graduação entre a Argentina e a França, isto é, as abordagens sobre enfoques de desenvolvimento social e humano, em particular o enfoque teórico das capacidades do autor Amartya Sem e a perspectiva empírica de Muhammad Yunus, sobre os quais fiz um trabalho de conclusão e depois o continuei para apresentá-lo num concurso do Conselho de Ciências Econômicas da Cidade de Buenos Aires. Já no mestrado no CIDE no México, aprofundei essa linha de pesquisa e fiz uma dissertação sobre alguns programas de desenvolvimento local, sempre com esses autores Sen e Yunus como referência, somados à ideia da construção do capital social do Robert Putnam, um enfoque que descobri durante um intercâmbio na Universidade de Bergen na Noruega. Foi precisamente quando estava terminando essa dissertação que pensei que podia combinar meus interesses sobre desenvolvimento social e humano com o estudo do esporte. Isso aconteceu em 2005. No momento desta entrevista, em 2018, estou reparando que levo quase 13 anos estudando a área denominada em inglês como Sport for Development em diferentes contextos.

 

Em sua viagem a Moscou, você observou o Festival da Fundação da FIFA que reuniu 48 organizações não governamentais de 38 países. A partir de sua visão sociológica, como você encara a intenção da organização em promover por meio desse evento uma causa social?

O Festival reuniu organizações não governamentais, ONGs, que trabalham o ano todo e já há vários anos, inclusive, com o futebol como uma ferramenta, entre outras tantas, para acompanhar e incluir crianças de ambos sexos em programas de desenvolvimento social. Cada contexto é diferente e depende das problemáticas locais, mas o futebol é transformado em diferentes metodologias para fazer campanhas de prevenção de saúde, conscientização de questões de gênero, integração de refugiados e minorias, acompanhamento escolar e formação de jovens líderes entre outras questões. O que é interessante é que o futebol passa para um segundo plano, o que importa realmente são os conteúdos sociais que são tratados nesses projetos. O festival aconteceu na periferia de Moscou num centro olímpico chamado Olimpiet. Já tinha observado vários festivais dessa natureza com a mesma rede de ONGs. Durante a Euro Copa 2016 na França, houve um festival na cidade de Lyon da mesma rede de ONGs, ligadas a Streetfootballworld. Naquele festival, fiz uma observação de campo que será publicada em breve na Sociology of Sport Journal. A mesma coisa tinha feito no Festival Football for Hope no Rio de Janeiro 2014 [1] durante na Copa no Brasil, e anteriormente em Salvador, na Bahia, num festival latino-americano de futebol, sediado pelo Instituto Fazer Acontecer[2],  em dezembro 2013.

Fonte: Festival Fifa Foundation Moscou 2018

Em Moscou, você teve a oportunidade de acompanhar o trabalho de alguma ONG que trabalha com futebol? Como foi essa experiência?

Sim, depois do festival, inclusive com a Copa já terminada, fui visitar a sede de uma das ONGs russas que participou no festival – Downside Up, uma ONG com mais de 20 anos de experiência de trabalho social com crianças com síndrome de down e suas famílias. Quatro crianças participaram no encontro das delegações, mas o que eu queria era entender um pouco mais o trabalho que desenvolvem durante o ano. A ONG oferece serviços para as crianças, espaços de lazer e diversas terapias para as famílias. Foi muito interessante ver que eles têm parcerias com o setor público, o setor privado e várias associações de outras cidades da Rússia. O futebol é só uma nova ferramenta, complementar de um trabalho social mais amplo dentro de uma estrutura que envolve várias dimensões. Por exemplo, eles têm toda uma área de pesquisa e uma série de publicações, algumas para comentar as notícias do mês e outras mais especializadas que são dirigidas para as famílias das crianças.

Fonte: Acervo pessoal de Trejo.

Ainda sobre esse tema, como você explicaria o conceito de futebol social? Qual o panorama de iniciativas nesse sentido ao redor do mundo?

É um futebol, ou várias formas de futebol, eu diria, que são utilizadas dentro de um conceito mais amplo. Para ser mais preciso, o conceito é esporte para desenvolvimento social com foco no futebol. O objetivo não é praticar futebol em si, o objetivo é trabalhar com questões sociais a partir do futebol. Isto é, importam mais os objetivos traçados a respeito da inclusão social que a prática do futebol. Os projetos são em geral levados a frente por ONGs. Existem experiências documentadas sobre programas que tiveram apoios de agencias internacionais, como as Nações Unidas em Ruanda e na Libéria após as guerras civis para fomentar a paz. Na França, quando cheguei para fazer meu doutorado em Sociologia sob a orientação de Patrick Mignon, descobri uma rede de associações na região de Paris chamada Remise en Jeu, que utilizava o futebol como atividade de lazer e de acompanhamento social de pessoas em situação de vulnerabilidade, a maioria refugiados, clandestinos, ou pessoas em reabilitação de drogas e álcool. Esse projeto participava, aliás, com a delegação da França no Mundial das pessoas sem teto naquela época.

Existem projetos que surgiram há 20, ou inclusive 30 anos, em diferentes contextos. Um dos projetos mais conhecidos é aquele que nasceu com o nome Football4Peace na Palestina. Na cidade de Medelim, na Colômbia surgiu na década dos anos 1990 o projeto Fútbol por la Paz, uns anos depois apareceu na grande Buenos Aires, Argentina, o projeto Defensores del Chaco. Dessas ONGs pioneiras foi criada a rede Streetfootballworld. No Brasil, desde que cheguei em 2013 para fazer um pós-doc na FGV no Rio de Janeiro, tenho visitado várias ONGs que entram nessa tendência do esporte para o desenvolvimento humano e a inclusão, como o Instituto Fazer Acontecer, na Bahia, a ACM no Rio Grande do Sul, o projeto Craque do Amanhã em São Gonçalo e no Rio de Janeiro, que frequentei entre 2014 e 2015, e o programa Bom de Nota Bom de Bola da Associação Pro Esporte e Cultura em Ribeirão Preto, que pude visitar várias vezes entre 2014 e 2017.

Estou interessado particularmente em aqueles projetos que vão realmente além do futebol. O futebol pode integrar, certo, mas também pode excluir. Daí que as modalidades lúdicas têm mais potencialidade para fins de inclusão que as versões competitivas do futebol, tanto para a mistura de meninos e meninas no campo, quanto para integrar pessoas com capacidades diferentes. É, nesse sentido, que o trabalho das ONGs tem muito potencial para políticas públicas.

Fonte: Programa Bom de Nota Bom de Bola.

Os clubes europeus investem milhões em jogadores oriundos de diversas partes do mundo. Podemos dizer que a Europa é o grande símbolo do futebol enquanto indústria de entretenimento, pautado pela lógica neoliberal. Diante disso, você acredita que a Europa apresenta um panorama positivo quanto ao futebol social? A seu ver, o futebol profissional ajuda ou atrapalha na promoção de ações ligadas ao futebol social?

Bem, o futebol profissional, particularmente na Europa, é uma super indústria, com algumas lógicas que só podem ser explicadas em termos de conceitos capitalistas e de mercados competitivos. Uma forma sociológica de observar esse mundo é partir da ideia de Pierre Bourdieu, isto é, vários campos de poder que estão em competição e onde sempre vão ter atores lutando pelas posições dominantes. Mas, às vezes, as grandes instituições reitoras do futebol e os clubes podem ajudar algumas iniciativas de caráter social e cidadãs. Existem boas práticas impulsionadas, por exemplo, pela Federação de Futebol na Alemanha, que tem incitado os clubes a receber migrantes. Alguns clubes na Alemanha têm criado serviços sociais para refugiados. Na Inglaterra também existem muitos laços entre os clubes e suas comunidades. Estou querendo nos meus próximos passos de pesquisa estudar as atividades de lazer, os espaços para crianças vulneráveis e inclusive para pessoas idosas que alguns clubes da Inglaterra têm desenvolvido. O mundo do futebol é parecido com o mundo das empresas, algumas acreditam na responsabilidade social, outras fazem ações por conta da imagem corporativa e outras tantas não fazem nada.

 

Em uma preparação para um evento competitivo, até mesmo o futebol social, diversos sentimentos podem emergir, como o de pertencimento a uma coletividade ou a insegurança pessoal. Apesar de ser um evento que promove uma causa social importante, o esporte não deixa de ter a competição como um fim para os atletas. Em sua opinião, a busca pela vitória pode tornar o ambiente de uma delegação instável e eventualmente romper ou desgastar o objetivo primordial de eventos com fins sociais/solidários? A preparação da equipe deve incluir planejamento e definição de metas, traçados em conjunto pela equipe técnica e jogadores. Levando em conta a natureza peculiar do futebol social, quais medidas os organizadores e as delegações precisam adotar após o término de um evento com propósitos humanitários, para evitar tensões e diminuir as decepções entre os participantes das equipes que saíram “derrotadas”?

Essa é realmente uma questão a levar em consideração, uma questão profunda sobre a qual os projetos que têm objetivos sociais através do esporte devem refletir um pouco mais. Até mesmo porque o esporte envolve competição e seleção nos seus princípios, claro que não é só isso, mas existe uma tensão quando você pretende misturar esporte e desejos de inclusão social. No meu modo de ver, a forma de encontrar um equilíbrio é reduzir a tensão competitiva mediante esforços que tendam na direção de práticas lúdicas. Tenho observado alguns projetos que procuram sinceramente ser inclusivos, mas onde prevalece a ideia do esporte competitivo. Acho que apesar de atingir alguns benefícios sociais, sob os formatos do esporte tradicional perde-se potencial para a inclusão. Para uma análise sociológica é importante ver as diferentes situações que se produzem a partir da ação social. Com a ajuda do meu orientador Patrick Mignon e levando em conta as opiniões dos membros da banca na defesa da minha tese tentei refletir sobre a experiência da derrota esportiva em eventos e projetos sociais. Num artigo, posterior à tese, que escrevi com o referencial teórico do Erving Goffman, descrevo junto com meus coautores algumas situações diante da derrota esportiva nas delegações da França que acompanhei em três edições da Copa do Mundo das pessoas sem teto. Em momentos de derrotas repetidas, os jogadores lembravam-se de velhas situações traumáticas nas suas trajetórias de vida [3]. O interessante para mim foi que para o projeto na França o futebol não era o eixo central; depois de alguns anos as atividades se desdobraram em outras opções oferecidas para os participantes, algumas dessas ONGs só praticam futebol de forma ocasional e têm incorporado outras práticas como ioga, passeios culturais, ou outras modalidades que visam certa diversidade nos processos de apoio social e psicológico das pessoas.

 

Em seu artigo “As situações na Copa do mundo dos sem teto em perspectiva: uma análise a partir das experiências e olhares dos jogadores”[4], você realizou um trabalho de campo,com acompanhamento de diversos jogadores em algumas edições da Homeless World Cup. A partir dessa experiência, qual a história de vida ou episódio mais marcante para você?

Sim, exato, essa é parte da experiência a qual fazia alusão na resposta anterior. Foi uma experiência de pesquisa e sobretudo uma história humana das mais relevantes na minha vida. Eu era um estudante estrangeiro em Paris, encontrei uma rede de ONGs que me acolheu muito bem. Trabalhei, ou colaborei aí cinco anos no total, inclusive além da defesa da tese. Com os jogadores do campeonato contra a luta contra exclusão social e aqueles com quem viajei para a Copa do Mundo, desenvolvemos uma relação de confiança e empatia. Ainda tenho contato com vários. O elemento mais marcante foi talvez quando apresentei meu trabalho para toda a rede numa conferência na Federação Francesa de Futebol, uns meses antes da defesa da tese, depois de quatro anos de trabalho de campo intenso. Na conferência havia jornalistas, mas o que mais marcou foi que estavam todos os jogadores que tinha entrevistado e com quem compartilhei muitos momentos. Além disso, estava junto ao meu orientador e a Emmanuel Petit, quem me ajudou muito também em todo esse período. O trabalho está escrito em francês, mas o coloquei à disposição no site brasileiro do Ludopédio, que inclui algumas fotos de toda essa etapa [5].

 

Você esteve durante a Copa do Mundo de 2018 na Rússia, um país que não possui leis sobre a violência doméstica e que tem uma relação problemática com a diversidade sexual e de gênero. Qual foi a impressão que ficou após os dias que você passou em solo russo?

Ouvi muito falar disso, e deve ser realmente um tema pendente. Como muitos que viajamos para Rússia fui com preocupações. Porém, ao observar o contexto da Copa do Mundo, fiquei impressionado com a capacidade do país. Eu me digo, agora, que eles são capazes de resolver outros problemas, suas questões internas complexas, que todos os países têm. Mas sãos os próprios países que devem resolver seus problemas, abertos a debates, seguindo seu próprio caminho na resolução madura e plural das questões. Durante minha visita, que só se pode resumir numas semanas, tive a oportunidade de conversar com alguns voluntários e com russos em geral sobre o impacto, ou pelo menos a importância, da Copa. Senti que as opiniões foram sinceras, sobretudo quando destacaram a importância de receber tantos turistas e mostrar outra imagem da Rússia. Não podemos esperar que um evento, por maior que seja, mude as estruturas das sociedades. O que pode ser, sim, é uma vitrine para falar de vários aspectos, tanto positivos como negativos. Volto a destacar o ambiente festivo que se viveu na Copa, num clima de segurança, mas de muita disposição dos voluntários, da polícia, do pessoal dos restaurantes e museus para auxiliar os turistas. Também devemos valorizar que não houve episódio algum de hooliganismo, que era uma das preocupações, sobretudo depois da Euro Copa na França em 2016, onde russos e ingleses brigaram nas ruas de Marseille. Aproveitando esta pergunta sobre minhas impressões, visitei a cidade de Rostov-Don, no período das semifinais, onde a Copa já tinha terminado ali, pois o último jogo foi nas oitavas. Realmente vi vários aspectos positivos do legado da Copa em Rostov. Um legado ambiental de valorização de todo o passeio que está sobre o rio Don, perto do qual o estádio foi construído. Nesses dias, vi passear muitas famílias, desfrutando do lugar com calma, com toda a tranquilidade, além de muitas instalações esportivas e de lazer que foram agregadas nesse lugar, segundo me explicaram ali.  

Fonte: Rostov-Don (acervo pessoal de Trejo)

Durante a Copa da Rússia 2018, os jornais brasileiros repercutiram um caso de assédio que viralizou nas redes sociais e na imprensa internacional. Os torcedores brasileiros usaram palavras de baixo calão e frases degradantes ao gênero feminino foram direcionadas a uma russa, que estava com eles e não entendia português. Sabemos que cânticos de torcida repletos de preconceitos são entoados em estádios entre as torcidas com frequência. Em sua opinião, por que os torcedores de modo geral reproduzem essa “cultura” de inferiorização dos adversários por meio de discursos machistas, misóginos e, por vezes, homofóbicos?

Muitas vezes reproduzem, infelizmente. De forma inconsciente algumas vezes e outras de forma completamente consciente. Alguns acham que é só brincadeira, que é parte de uma cultura do “futebol”. Eu particularmente não concordo com isso. Reconheço a importância dos espaços para liberar tensões da vida quotidiana nas nossas sociedades. Segundo a tese do Norbert Elias, umas das funções do esporte, no que se refere aos espectadores, é o relaxamento das normas sociais. Quando os torcedores vão para o estádio, eles podem se permitir certa liberação de emoções. Porém, os discursos misóginos e homofóbicos estão indicando nos nossos contextos latino-americanos uma clara mostra dos complexos que existem com a ideia da masculinidade dominante.

Acho importante entender a história das torcidas e suas formas de expressão. Os trabalhos do Henrique Toledo e do Bernardo de Hollanda são muito ilustrativos no que se refere à disseminação das torcidas, para entender como certas práticas, discursos e formas foram mudando ao longo das décadas. Algumas dessas mudanças trouxeram estilos de agressividade e machismo. Mas não é um problema só da reprodução de discursos dos torcedores, a mídia em geral e alguns jornalistas “importantes” têm incentivado muito os discursos de inferioridade dos adversários. As insinuações machistas têm estado presentes nos discursos midiático;, vários jornalistas e ex-jogadores que viraram comentaristas têm contribuído, muitas vezes, para gerar climas histéricos e intolerantes no futebol.

 

Na festa de comemoração da vitória da Copa 2018, a França teve dois mortos, 292 pessoas presas e 45 policiais e agentes de segurança ficaram feridos. Conhecendo a cultura francesa, a que você atribui esses números? A partir de suas pesquisas sobre violência no futebol, como você interpreta a correlação entre as comemorações esportivas e as manifestações violentas?

Eu vejo esses números como episódios tristes dentro de um clima geral de celebração. A vitória da seleção da França na Copa da Rússia provocou um clima de excitação generalizada. A excitação exagerada pode levar a situações tensas também, dado que o limite entre celebração e confusão pode mudar em questão de minutos às vezes. O que eu confirmo em diferentes contextos é que a mídia faz tudo para mostrar imagens de violência e confusão, é uma prioridade absoluta e uma notícia muito importante para as telas de televisão e os jornais. Na celebração, houve milhões de pessoas que comemoraram, não só em Paris, mas nas pequenas cidades, e na imensa maioria de lugares não aconteceu nada de violência.

Voltando ao âmbito do futebol, existem várias campanhas contra a violência há anos, impulsionadas pela Federação Francesa de Futebol, todo um trabalho de prevenção, conscientização e informação nas ligas juvenis e no futebol amador para evitar agressões contra juízes, adversários e provocações contra o público presente. Isso pode passar despercebido no olhar dos discursos midiáticos, pois não estamos falando do futebol do mais alto nível. Mas às vezes, as grandes vitórias das seleções nacionais têm raízes no trabalho, em conjunto, do futebol de base. A vitória da seleção, com seus jogadores tão novos no campo, é também produto de um trabalho de estruturação do futebol na França. Depois do “escândalo” da eliminação na primeira fase e do comportamento de alguns jogadores na Copa do Mundo em 2010 na África do Sul, todo um trabalho foi feito no futebol de base francês.

 

Sabemos justamente que você está na França neste momento. O que você poderia nos contar sobre a cobertura da mídia após vitória francesa? Quais discursos foram acionados pelos jornais para contar a história de uma equipe multiétnica em um momento de crescimento da extrema-direita xenófoba na Europa?

Essa questão foi muito interessante para observar. Quando a França ganhou a primeira Copa do Mundo em 1998, a mídia e alguns discursos políticos, principalmente do partido no poder do presidente Jacques Chirac, falaram muito sobre a vitória do modelo da integração francesa através de um time composto por black, blancs, beurres, isto é, negros, brancos e árabes. Porém, isso suscitou muitas polêmicas e caiu em desuso como slogan. Prestei atenção essa vez as capas e os discursos sobre a vitória na mídia e acho que o que prevaleceu foi o elogio ao sistema tático, à solidariedade e ao talento do time. Quer dizer, a vitória foi celebrada desde o plano esportivo, com certa cautela para não cair em discursos políticos e grandes narrações da nação. Foram justamente alguns jogadores que nas celebrações gritaram Vive la France, Vive la République. As polemicas vieram mais de fora, sobre o fato de muitos jogadores terem origens africanas, mas foram também os próprios jogadores que responderam dizendo que eles nasceram na França e se consideram, portanto, franceses. Dessa vez, a extrema direita, encarnada pelo Front National, não se pronunciou como aconteceu depois de 1998, quando o Jean Marie Le Pen, pai da Marine Le Pen, disse que os jogadores de origem estrangeira, leia-se os afrodescentes e os árabes, estavam usurpando a seleção da França. Por outro lado, o presidente Emmanuel Macron, que viajou para a semifinal e para a final na Rússia, não pôde realmente aproveitar a glória do time, pois três dias após a vitória em Moscou explodiu um escândalo com um dos seus mais próximos colaboradores, Alexandre Benalla, que foi filmado na manifestação do 1º de Maio batendo em manifestantes, disfarçado de policial e visto também no ônibus que transportou o time campeão a l´Elysée, a casa de governo do presidente, quando chegaram da Rússia. O escândalo, l’affaire Benalla, fez com que o governo em turno não tivesse tempo de falar da vitória des Bleus, pois teve que lidar com uma crise política e de imagem inesperada, talvez.

Fonte: Julien Richard

Para finalizar, atualmente algumas das suas pesquisas têm estado voltadas também para a questão da violência no futebol. Qual a sua perspectiva acerca desse tema no cenário atual do futebol brasileiro? Em comparação à situação na Europa, como você avalia as ações dos clubes e do poder público para lidar com essa questão?

Estou trabalhando nisso na minha passagem pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFG, através de algumas disciplinas já ministradas sobre o estudo dos casos europeus de transformação e gestão da violência no futebol, mas também a partir de uma pesquisa de campo em Goiânia para observar as relações complexas entre os atores do futebol. No Brasil, como em outros lugares, existem cenários muito complexos sobre esse assunto. Porém, existem também tentativas interessantes como a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg), a qual conheci no Rio de Janeiro e tem integrantes em algumas torcidas do estado de Goiás. O cenário goiano chamou minha atenção em vários sentidos, pois o número de mortes ligadas a brigas relacionadas ao futebol é alto. Essa relação entre mortes e futebol é uma questão que tenho estudado bastante na Argentina, com meus colegas da ONG Salvemos al Fútbol[6]. Mas, ao mesmo tempo, fui convidado no início de 2018 para observar um seminário de mulheres no futebol onde foram discutidas questões de gênero e achei um potencial interessante para pensar em diferentes pontes e alternativas.

Junto com um grupo de alunos na UFG tínhamos já começado uma pesquisa de campo em agosto 2017 e estamos, agora, entrando na fase final da coleta de dados mediante observações e questionários. O processo tem sido muito interessante com um número pequeno de alunos, alguns regulares da pós em Sociologia, alguns de outras áreas, quadros do Batalhão de Eventos da PM de Goiás e alguns membros de torcidas que participaram nas aulas. Para divulgar a pesquisa, faremos algumas oficinas entre o final de 2018 e ao longo do ano que vem. Deixo então essa questão aberta para a próxima conversa. Agradeço muito pelo espaço e prometo compartilhar os dados coletados em Goiânia num marco mais amplo, comparativo.

 

Notas de fim

[1] O letor pode ler o artigo dessa observação, publicado em 2016 junto com Adriana Islas, na revista brasileira Podium Review: http://www.podiumreview.org.br/ojs/index.php/rgesporte/article/view/147

[2]  Um artigo que descreve esse festival e outras observações dentro dum panorama internacional pode se ler, “Apuntes sobre la utilización del fútbol como recurso social”: https://cide.repositorioinstitucional.mx/jspui/bitstream/1011/289/1/000130940_documento.pdf

[3] Para ver o artigo original na International Review for the Sociology of Sport ir ao link: http://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/1012690215611084

[4] Publicado na revista Tríade em 2016: http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/triade/article/view/2497

[5] https://www.ludopedio.com.br/biblioteca/la-homeless-world-cup-et-le-championnat-de-lutte-contre-lexclusion-sociale/

[6] O leitor pode consultar dois artigos sobre esta temática, um escrito em português para a revista Publicatio da UEPG, “Entre a violência e a festa popular no futebol da Argentina”: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/sociais/article/view/10181 Assim como o artigo com o estudo dos episódios de violência identificados e as mortes no futebol da Argentina entre 2006 y 2017, publicado na International Review for the Sociology of Sport:  “Violence and Death in the Argentinean soccer in the new Millenium”: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1012690217748929?journalCode=irsb

Entrevista com Fernando Segura Trejo – Copa do Mundo da Rússia e futebol social