No dia três de julho, entrevistamos a professora Flávia Barroso de Mello, doutoranda em Comunicação pelo PPGCom/UERJ e pesquisadora associada ao Lacon. Este ano Flávia conquistou o prêmio de melhor dissertação da Abrapcorp com o trabalho intitulado “Em busca de sentidos para a ‘marca Rio’: as narrativas do site portomaravilha.com.br”. Sua dissertação tratou da reurbanização da zona portuária e como isso influenciou na marca Rio. Tivemos a oportunidade de entrevistá-la para a edição de julho do boletim Lacon. Leia abaixo.

Como surgiu a ideia de fazer uma dissertação sobre a construção da marca Rio, tendo como enfoque a revitalização do Porto Maravilha?

As inquietações que inspiram minha dissertação estão relacionadas às atividades profissionais que exerci, ao longo de vinte anos, em empresas de diversos segmentos, agências e veículos de comunicação, sempre com uma relação muito próxima às estratégias de gestão de marca. E o Porto Maravilha me pareceu, em função do contexto em que o projeto estava inserido, um laboratório privilegiado para refletir sobre os planos que se pensam para a cidade.

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Fonte: Porto Maravilha

A revitalização do Porto Maravilha aconteceu em um período em que a crise afetava principalmente os servidores públicos da saúde e da educação. Notícias sobre esse assunto foram veiculadas em diversos meios de comunicação. Para você, qual foi a principal ação de branding que possibilitou uma reconstrução da imagem do Estado diante desse cenário?

Acredito que o argumento legitimador do legado foi fundamental para promover o apoio popular à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A realização de projetos como o Porto Maravilha, por exemplo, não encontrariam respaldo para execução, em tão curto espaço de tempo, se não estivessem ancorados pelo discurso do legado.

 

Em sua opinião, realmente aconteceu uma mudança da imagem do Rio a longo prazo ou o branding da marca RIO surtiu efeito apenas nos períodos dos megaeventos?

Em tempos de megaeventos, especialmente os esportivos, busca-se, através dos esforços de comunicação, localmente, exacerbar os sentimentos de identidade, orgulho e patriotismo; e, internacionalmente, desenhar a imagem de uma cidade asséptica, higienizada, sem conflitos, atraente aos investimentos e à visitação. Como observa Fernanda Sanchez (2010), uma das autoras que embasam a discussão sobre “cidade mercadoria” que apresento na dissertação, o clima de otimismo que toma conta das cidades escolhidas para sediar os megaeventos é utilizado tanto para atrair o olhar externo quanto para potencializar o que a autora chama de “patriotismo de cidade’”. Mas, aproximadamente um ano após o término das Olimpíadas, começaram a surgir as acusações de corrupção e endividamentos, corroboradas pela crise social e financeira que atinge a cidade. Os veículos de comunicação que, antes e durante os megaeventos, propagandearam a promessa do legado, trouxeram à tona a realidade do não-legado que a cidade herdou, desconstruindo, assim, esse sentimento de amor à cidade que se consolidou durante o período olímpico e pré-olímpico.

 

Qual a importância das mídias tradicionais, como o rádio e a televisão, para a construção da marca da cidade? Como o site Porto Maravilha contribuiu nesse processo?

É inegável que os megaeventos esportivos configuram-se tanto em vitrine midiática quanto em catalisadores para a reestruturação física e econômica da cidade sede. Mas, é importante refletirmos criticamente sobre o papel assumido pelo tema dos legados e seus efeitos generalizadores, sobretudo porque, como já disse, se configuram na retórica legitimadora de estratégias que impactam tanto na dimensão material quanto na dimensão social e simbólica dos espaços urbanos. O papel da grande mídia, nesse caso, é o de reverberar os esforços da comunicação institucional, positiva ou negativamente. Consequentemente, tem papel fundamental na formação da opinião pública sobre os megaeventos. O site portomaravilha.com.br, por sua vez, é um espaço importante e estratégico de visibilidade organizacional, contribui para a formação das imagens sobre o Porto Maravilha, reforça ícones e símbolos da região, uma vez que concilia os caráteres informativo e mercadológico da comunicação, a partir de discursos de cunho pedagógico-educacional.

 

Como você observa a percepção dos moradores do Rio de Janeiro acerca das mudanças pelas quais a cidade foi submetida para sediar megaeventos esportivos como a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016?

Minha dissertação não contemplou, de forma sistemática, um olhar sobre a recepção dos discursos promovidos pela Prefeitura para a marca Rio. Mas, a partir da observação dos espaços reconfigurados do Porto Maravilha, que foi meu objeto de estudo, foi possível identificar que há uma apropriação dos espaços a partir das “brechas” cotidianas, uma ressignificação dos espaços, promovendo a resistência aos processos institucionais impostos, que objetivam programar a vida social na região, a partir da lógica cultural do consumo. Assim, em visitas ao Porto Maravilha, pude presenciar, por exemplo, meninos mergulhando no espelho d´água da Baia da Guanabara, ao lado do Museu do Amanhã, um dos ícones da “reurbanização” da região portuária (esse evento foi notícia na grande mídia local) ou skatistas que encontraram no piso liso e cimentado espaço ideal para sua prática, atribuindo assim, novos significados aos espaços construídos. Dessa forma, apesar dos valores hegemônicos impostos, que se propõem a ditar as regras e dinâmicas do espaço e a forma de consumi-lo, é possível observar as táticas latentes de resistência em busca de novos usos para esses espaços.

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Fonte: Extra Online

Ao observarmos sua trajetória acadêmica desde a conclusão da graduação, percebemos que você circulou por diferentes temas de pesquisa. Mais recentemente, nos parece que você tem optado por uma análise mais crítica em relação à cidade e as transformações pelas quais vem sendo exposta. Você poderia nos contar um pouco mais sobre como se deram suas escolhas de pesquisa e a forma como trabalhou com cada objeto?

Ao sair da Faculdade de Comunicação, com minha habilitação em jornalismo, ingressei no universo corporativo, atuando na área de marketing e publicidade. Por isso, senti necessidade de uma especialização na área. Mais adiante, circulei por diversos braços do marketing, inclusive treinamento de equipes promocionais e de vendas, o que me despertou o interesse acadêmico pela educação corporativa e me levou a uma outra especialização, dessa vez em mídia-educação, campo de estudos que engloba tanto os saberes da comunicação quanto da educação, não deixando de lado meus interesses acadêmicos iniciais. Sempre tangenciei com a marca e suas estratégias, mas no papel de enunciadora dessas marcas. Finalmente, percebi que minhas demandas por conhecimento iam além da visão empresarial e corporativa, e me direcionavam para o entendimento mais crítico do consumo e seu papel na sociedade contemporânea.

 

Atualmente você está produzindo sua tese de doutorado que tem como título “Da cidade olímpica à cidade criativa: uma análise do Distrito Criativo do Porto”. Você poderia nos falar mais dessa pesquisa e quais são seus resultados prévios?

Minha tese de doutorado ainda está muito embrionária. Estou me aproximando do tema escolhido – cidades criativas –, mas ainda não tenho resultados. Acho que em mais alguns meses poderei falar com mais propriedade de alguns frutos.

 

O inglês Charles Landry, criador do termo “cidade criativa” e autor de A arte de fazer cidades, considera cidade criativa como um lugar onde as pessoas podem se expressar e crescer, e onde o poder de decisão e planejamento são compartilhados entre os cidadãos. Você está trabalhando com essa definição de cidade criativa em sua tese? Que outros autores você tem empregado até o momento para definir o que seria a cidade criativa?

Na pesquisa bibliográfica inicial estou buscando me aproximar de diversos autores, uma vez que não há um consenso que permita uma única definição de cidades criativas, a priori. John Howkins (2007, 2009), Charles Landry (1995, 2009), Richard Florida (2002, 2003, 2005), Ana Carla Fonseca Reis (2009, 2011) e Elsa Vivant (2012), são alguns autores que enriquecem o debate sobre cidades criativas.

 

O Brasil, de modo geral, vem enfrentando uma grave crise político-econômica. Você acredita que esse ambiente de crise pode, de alguma forma, motivar a cidade e os cariocas a serem mais criativos? Como você vê isso acontecendo no Rio?

Dados do Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, da Firjan, comprovam o crescimento da economia criativa em comparação com a totalidade da economia nacional. Na contramão do cenário adverso, no período de 2013-2015, em que houve queda no crescimento econômico, a área criativa apresentou um crescimento estimado no PIB Brasileiro de 2,56% para 2,64%. Como resultado, gerou uma riqueza de R$ 155,6 bilhões, no ano de 2015. Entre os estados, o Rio de Janeiro se destaca em segundo lugar no ranking, depois de São Paulo, no mercado de trabalho criativo: são 99 mil trabalhadores fluminenses.

De fato, a economia criativa tem-se configurado em um dos pilares do desenvolvimento preconizado pelo poder público para a cidade do Rio de Janeiro. Os últimos três Planos Estratégicos da Cidade (2009-2012, 2013-16 e 2017-2020) indicam essa orientação. Resta-nos entender como vem se configurando essa versão carioca de “cidade criativa” e de que forma o poder público se articula aos demais agentes da economia criativa para desenhar, de fato, uma alternativa que fortaleça os processos criativos e experimentais locais. Esse é um dos questionamentos que buscarei esclarecer na minha tese.

Mapeamento da indústria criativa no Brasil
Fonte: Firjan

 

Para finalizar, você acredita que as revitalizações do Porto Maravilha tenham contribuído para tornar o Rio uma cidade criativa (ou mais criativa)?

A região portuária requalificada tem evidente importância nas ações de atração de investimentos para a formação de clusters criativos e para a dinamização do turismo na cidade. Paralelamente, porém, é fundamental salientar que as ações de políticas públicas, em parceria com a iniciativa privada e empreendedores e criativos da área (que já estavam lá antes das reformas urbanas), podem também se revelar frágeis, configurando-se em um processo de gentrificação urbana e também cultural, ao invés de um meio para a promoção de um programa sustentável, que objetive fortalecer os processos criativos e experimentais, tão importantes para a reinvenção e riqueza cultural da região e da cidade do Rio de Janeiro.

 

Referências

FLORIDA (2002). The economic geography of talent. Annals of the Association of American geographers, 2002.

FLORIDA, R. (2003). Entrepreneurship, creativity, and regional economic growth. The emergence of entrepreneurship policy, p. 39-58.

FLORIDA, R. (2005). Cities and the creative class. Routledge. Disponível em : <http://creativeclass.com/rfcgdb/articles/4%20Cities%20and%20the%20Creative%20Class.pdf>. Acesso em 14 out. 2016.

FLORIDA, R.; GATES, G. (2003). Technology and tolerance: The importance of diversity to high-technology growth. Research in Urban Policy, v. 9, n. 1, p. 199-219.

HOWKINS, John. The Creative Economy: How People Make Money From Ideas. Pinguim Press, 2007. _______.Creative Ecologies: Where Thinking is a Proper Job. Queensland: UQP, 2009a.

_______.”Creative Ecologies”. In: REIS, Ana Carla Fonseca; KAGEYAMA, Peter (orgs.). Creative City Perspectives. São Paulo: Garimpo de Soluções & Creative City Productions, 2009b.

LANDRY, Charles; BIANCHINI, Franco. The creative city. Londres: Demos, 1995.

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_______. “The Creative City: The story of a concept”. In: REIS, Ana Carla Fonseca Reis; KAGEYAMA, Peter (orgs.). Creative City Perspectives. São Paulo: Garimpo de Soluções & Creative City Productions, 2009b.

SANCHEZ, F. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó, SC: Argos, 2010.

VIVANT, Elsa. O que é uma cidade critiva? São Paulo: Editora SENAC, 2012.

Entrevista com Flávia Barroso de Mello – Porto Maravilha e cidades criativas