No dia três de julho, entrevistamos o professor Daniel Reis Silva, doutor em Comunicação Social pela UFMG e pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa em Comunicação, Mobilização Social e Opinião Pública. Este ano, Daniel conquistou o Prêmio de Melhor Tese, concedido pela Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e Relações Públicas (Abrapcorp), com seu trabalho intitulado “Relações Públicas, Ciência e Opinião: Lógicas de influência na geração de (in)certezas”. Leia abaixo a conversa que tivemos com Daniel.
Daniel, nos fale um pouco sobre a sua pesquisa no Doutorado, agraciada com o prêmio de melhor tese da Abrapcorp? Na sua opinião, qual seria a importância desse trabalho para o campo acadêmico e para a sociedade?
A pesquisa de doutorado tinha como objetivo central explorar a campanha global de relações públicas capitaneada pela indústria de energia e que busca manufaturar dúvidas acerca da existência do aquecimento global antropogênico. Essa é uma campanha de grande complexidade que tem sido empreendida nas últimas décadas a partir de um emaranhado de atores e iniciativas, incluindo especialistas recrutados, think tanks ideológicos e grupos de fachadas. Em seu âmago, trata-se de uma tentativa de manter a controvérsia climática acesa, produzindo dúvidas na opinião dos públicos sobre o tema para evitar regulamentações governamentais sobre os combustíveis fosseis. Mais do que denunciar a existência dessa campanha, eu parto de uma vasta literatura de denúncia para me debruçar, a partir de uma perspectiva crítica das relações públicas, nas lógicas e dinâmicas que animam essas ações de manufatura de dúvidas. Em especial, dedico atenção para uma lógica de desmobilização: a tentativa existente nessa campanha de criar entraves para o processo de formação e movimentação de públicos – movimento pelo qual se revelam novos aspectos sobre a vulnerabilidade dos públicos na sociedade contemporânea. Acredito que a importância social do trabalho, nesse sentido, seja justamente a tentativa de abrir a caixa-preta dessa campanha de desinformação tão relevante, desvelando algumas das formas com que ela opera para influenciar a opinião pública.
Qual foi sua motivação para escolher pesquisar esse objeto ao longo de quatro anos de doutorado?
Duas motivações foram centrais. Em primeiro lugar, a pouca atenção dada para a campanha de criação de dúvidas sobre o aquecimento global por parte dos estudos de comunicação, apesar da importância do tema para a sociedade contemporânea e da centralidade da comunicação na mesma. Esse ponto significa entender que a controvérsia climática estabelecida nas últimas décadas não é necessariamente uma disputa científica, mas sim um conflito no reino da opinião pública, travado por meio dos media e de estratégias de atores diversos – e que é uma função social do campo de estudos da comunicação abordar esse objeto.
Em segundo lugar, é possível destacar um movimento iniciado já em meu mestrado e voltado para explorar a complexidade das práticas abusivas de relações públicas. Essas práticas acabaram, nas últimas décadas, relegadas a um segundo plano na literatura da área, descartadas como formas rudimentares e arcaicas de manipulação. Esse é um reflexo de um movimento de legitimação da área que opera por meio do apagamento das ambiguidades das relações públicas. Caminhando em uma direção contrária, minha visão, assim como a de meu orientador, Prof. Márcio Simeone Henriques, é que não podemos, como pesquisadores, ignorar essas ambiguidades. Nossa perspectiva deve ser explorar as contradições que marcam as relações públicas, tendo como objetivo de fundo a compreensão sobre os impactos dessa atividade na formação de sentidos e nas disputas de poder. Isso significa, inclusive, direcionar um novo olhar para as práticas abusivas – um olhar menos determinista e linear, que tome essas práticas em sua complexidade como importantes tentativas de exercer influência na opinião pública.
A partir do seu trabalho, quais você julga que seriam os limites de atuação da imprensa? Consequentemente, onde começariam as iniciativas civis de monitoramento?
Um dos primeiros tópicos que deve ser encarado no tratamento de práticas abusivas de relações públicas – como distorções, mentiras estratégicas, manufatura de incertezas, criação de grupos de fachada e de manifestações de públicos simulados, por exemplo – é o papel de vigilância da imprensa sobre essas práticas. Se tradicionalmente esse é um papel atribuído para a imprensa, o que a grande proliferação de iniciativas de vigilância civil sobre o tema nos últimos quinze anos aponta é para a existência de limitações sensíveis nessa função. De fato, parte significativa desses grupos, como é o caso do PR Watch nos Estados Unidos, surge com um discurso bastante direto sobre como a imprensa se mostra incapaz de denunciar e monitorar diversas dessas práticas, falhando em dar visibilidade para tentativas de corromper a boa-fé dos públicos. Tais iniciativas buscam, de maneira geral, colocar os próprios públicos no papel central da defesa de seus interesses, e se tornaram possíveis especialmente a partir das novas possibilidades das tecnologias de comunicação digital.
A ser ver, que desafios e constrangimentos impõem limites às iniciativas de vigilância civil?
Enquanto as iniciativas de vigilância civil apontam a insuficiência da imprensa na sua função de vigilância dessas práticas abusivas, nossa função como pesquisadores é refletir sobre esse tópico e tentar compreender mais sobre os motivos que levam a esse cenário. Para tanto, é importante adotar uma visão sistêmica da imprensa de maneira a evitar julgamentos generalizantes. A partir dessa noção, a imprensa deve ser tomada como um sistema com interesses, economia, gramáticas e modos de funcionamento próprios, mas que interage com outros sistemas sociais, como corporações, governos e a ciência, de maneira complexa. Uma consequência sempre citada e preocupante dessa interação ocorre no terreno econômico, especialmente com o questionamento de como uma imprensa dependente das verbas publicitárias pode exercer vigilância sobre suas próprias fontes de renda. Para além desse tópico recorrente nos estudos críticos de mídia, cabe destacar dois outros pontos. Em primeiro lugar, existe uma comprovada ênfase da imprensa, especialmente a brasileira, na vigilância dos atores governamentais e ligados ao poder público, com uma atenção menor dedicada ao monitoramento de corporações e empresas privadas. Em segundo lugar, muitas das práticas abusivas de relações públicas que abordo são criadas levando em consideração o funcionamento e as lógicas da imprensa – elas são criadas a partir de um conhecimento sobre como a imprensa opera, pensadas para envolver os jornais em sua trama e conquistar visibilidade por meio desses veículos. Isso torna muito difícil para a imprensa compreender suas características, na medida em que ela se torna um agente fundamental para a existência dessas práticas. Por exemplo, observo, na tese, como muitas das práticas que envolvem a manufatura de incertezas se baseiam no ethos da imparcialidade jornalística como estratégia para obter uma cobertura balanceada para pontos de vista marginais dentro da ciência. A indústria do tabaco, em um caso clássico, fazia um monitoramento constante na imprensa para exigir espaços iguais para que seus “especialistas”, que pouco desenvolviam estudos, negassem a existência de vínculos entre o cigarro e o câncer e debatessem com pesquisadores das mais prestigiosas universidades do mundo. Essas duas características fazem com que a imprensa se torne um ator de monitoramento mais frágil, e estão no cerne do surgimento das iniciativas de vigilância civil sobre o tema.
Você poderia nos explicar qual o seu entendimento do termo watchdog, atribuído por vezes à imprensa?
A noção de watchdog, que pode ser traduzida como cão de guarda, é tradicionalmente atribuída para a imprensa e incorporada ao próprio ethos da atividade. Em um horizonte normativo, a ideia de watchdog está relacionada com a função da imprensa de exercer vigilância em nome do interesse público, de maneira a monitorar, denunciar e constranger abusos de poder – seja ele por parte de agentes governamentais, de corporações privadas ou da própria mídia. Essa função, porém, não deve ser tomada de forma generalizante e binária (no sentido de existe ou inexiste), mas sim entendida a partir de suas limitações e dos contextos que cercam a imprensa – diversos fatores podem tanto incentivar quanto criar constrangimentos para a vigilância exercida pela imprensa, como interesses políticos e econômicos, assim como a própria forma de produção do conteúdo jornalístico. Uma discussão recente, por exemplo, diz respeito a como a aceleração da produção de informações característica das mídias sociais digitais enfraquece a função de vigilância da imprensa, que passa a dedicar menos recursos humanos para esse monitoramento.
Explique para os nossos leitores, o que seria o astroturfing?
O astroturfing, prática que abordei em minha dissertação de mestrado e que retorna em alguns momentos na pesquisa da tese, pode ser entendido como uma manifestação de um público simulado. Trata-se de uma prática que tem como objetivo criar a impressão de que existe um público mobilizado se manifestando sobre determinada causa, com o objetivo de influenciar a opinião pública e conquistar cobertura na imprensa. Não é possível determinar exatamente sua origem, mas pelo menos desde a década de 1920 essa prática é utilizada pela indústria de relações públicas ao redor do globo, e se torna ainda mais relevante em um cenário contemporâneo marcado pelas tecnologias e mídias digitais. Nesse sentido cabe destacar, por exemplo, a utilização de bots e perfis falsos em eleições, e mesmo a manufatura de falsos reviews em sites de compras pode ser considerada como uma forma rudimentar de astroturfing. O ponto que mais me interessa, porém, é entender algumas das lógicas dessa prática, especialmente sobre como ela pode dar origem a processos de mobilização no qual são formados públicos mais autênticos – o que torna a prática ainda mais ambígua e difícil de se identificar. Esse é o caso de uma manifestação de um público simulado que convoca outros sujeitos, que desconhecem a origem artificial daquela estratégia, a se juntarem àquela manifestação. Quando essa mobilização ocorre, aquela prática é reconfigurada e ganha novas camadas de complexidade que devem ser estudadas.
Percebemos que em grande parte dos seus textos você trabalha com expressões como “Vigilância Civil”, “Opinião Pública”, “Vulnerabilidade dos Públicos”. Como você define esses termos em seu trabalho? Como se complementam e qual a importância de pesquisarmos esses assuntos?
Todos esses são termos complexos, mas que podem ser entendidos quando retornamos ao ponto básico de todo o pensamento que embasa minhas pesquisas: a noção de públicos, em especial a formação desses agrupamentos e sua movimentação na sociedade. Esse é um pensamento ancorado principalmente na reflexão do filósofo John Dewey, que entende que o público é, em sua forma mais elementar, um conjunto de pessoas que se percebem afetadas pelas consequências de determinadas ações e buscam intervir, a partir do compartilhamento de sentidos e de ações coletivas, nessa situação. Essa é uma visão que coloca a comunicação no cerne dos processos de formação e movimentação de públicos, e meus esforços de pesquisa, alinhados com os do grupo de pesquisa Mobiliza, orbitam ao redor da tentativa de entender melhor as complexas lógicas e dinâmicas desses processos em nossa sociedade, ampliando a compreensão sobre esse importante elemento social. Nessa visão, a opinião pública é tomada não como a opinião geral da população ou como o resultado de pesquisas quantitativas de aferição de opiniões, mas como um elemento atrelado à existência e movimentação desses coletivos – ela se vincula, assim, com os próprios públicos. De forma semelhante, a ideia de vigilância civil é tomada como uma tentativa de determinados públicos de exercerem monitoramento sobre questões que lhes afetam, sendo um processo de movimentação desse público, que busca mobilizar outros sujeitos e de fato intervir sobre uma situação problemática. Por último, a ideia de vulnerabilidades dos públicos está ligada com a busca por compreender as fragilidades e fatores que limitam a formação e movimentação dos públicos de maneira a estabelecer constrangimentos para sua atuação autônoma. Esse último elemento, em especial, é fundamental quando consideramos a posição central que os públicos e a opinião pública ocupam nas democracias ocidentais. A manufatura de incertezas, por exemplo, é tomada como uma tentativa de desmobilizar públicos, criando entraves para sua formação e movimentação, e a forma com que essa estratégia utiliza o discurso científico para atingir seus objetivos aponta para a fragilidade dos sujeitos de entenderem o que de fato se passa nesse campo social.
No artigo “Vulnerabilidade dos públicos frente a práticas abusivas de comunicação empregadas por organizações: limitações para o monitoramento civil”, você, juntamente com Marcio Simeone Henrique, descreve as práticas do conceito de astroturfing. Até onde você acredita que essa prática “engana” ou “influencia” o público? Você acredita que o público tem noção que esse tipo de prática acontece?
Essa é uma questão bastante pertinente: até que ponto uma prática como o astroturfing é efetiva? A resposta para esse questionamento é circunstancial, dependendo das características de cada caso. De maneira geral, é importante abandonar perspectivas deterministas em que os públicos são agrupamentos passivos simplesmente enganados por essas práticas. Ao contrário, os públicos interagem com essas práticas e são dotados de capacidade de resistência, por vezes não acreditando nas mesmas, compreendendo as intenções por detrás dessas estratégias e adotando posturas céticas. Em outros casos, como demonstro na minha dissertação, os públicos atuam sem um conhecimento sobre a natureza artificial dessas práticas, e são enredados por aquelas estratégias que visam, em última medida, enganá-los e fazer com que com que eles acreditem em uma mentira. É possível pensar que a capacidade de resistência aumenta quando os sujeitos possuem maiores informações sobre essas estratégias, incluindo sobre sua existência – públicos que possuem uma maior familiaridade com práticas de astroturfing são capazes de prontamente identificarem algumas características dessas estratégias. É o caso, por exemplo, de iniciativas de vigilância civil que lidam com o tema e que construíram, nas últimas décadas, um conhecimento especializado sobre a prática. Não por acaso uma das principais ações desses públicos é construir e disponibilizar um repositório de conhecimentos sobre o tema (por exemplo, em wikis como a SourceWatch.org) com o objetivo de conscientizar os demais sujeitos sobre as características dessas estratégias.
Para você, qual seria a melhor forma de vigiar e punir as organizações que se envolvem com o astroturfing?
A punição para as empresas que adotam essas práticas é um ponto bastante controverso. Em um cenário ideal, elas passariam por um duplo escrutínio por parte da legislação e da opinião pública, o que resultaria em medidas legais e na perda de reputação. Porém, essas práticas abusivas são ambíguas e difíceis de serem identificadas e punidas. Elas criam interfaces complexas com a liberdade de expressão, e esse ponto carece de maiores debates e discussões. Até que ponto, por exemplo, uma empresa deve ter a liberdade de expressão de mentir deliberadamente e criar um público simulado com a intenção de ludibriar os sujeitos? De forma semelhante, como nós, enquanto públicos, podemos punir de maneira difusa essas práticas? Seriam perdas momentâneas de reputação suficientes? De toda forma, o primeiro passo para responder essas questões parte do reconhecimento da existência dessas práticas e da compreensão de suas características, o que implica uma tematização das mesmas na esfera pública. O atual debate acerca das fake news e do uso de bots, por exemplo, pode contribuir com medidas que sejam capazes de coibir essas práticas abusivas, e é interessante observar como ordenamentos jurídicos variados ao redor do globo começaram, nos últimos anos, a punir práticas como o astroturfing, entendendo-as como crimes corporativos e abusos de confiança.
Qual seria o papel dos comunicadores frente a essa situação? Você acredita que a mídia tem cumprido seu papel de watchdog, mantendo-se vigilante em prol da sociedade?
O comunicador tem um papel de grande importância para evitar a proliferação dessas práticas. Em primeiro lugar, ele precisa entender e estar ciente de sua existência, o que é fundamental tanto para jornalistas quanto para profissionais de relações públicas e publicidade. Além disso, esses profissionais devem discutir e debater os limiares éticos dessas práticas, se conscientizando de seus problemas e riscos. Esse ponto é fundamental para superar uma visão perigosa de que essas estratégias seriam meras “astúcias” ou “espertezas” publicitárias – elas são, como demonstramos, práticas de influência controversas que envolvem mentiras e distorções. A imprensa, em especial, deve buscar superar as limitações e entraves em sua função de vigilância sobre essas práticas, um processo que perpassa a formação de jornalistas capazes de entender e identificar tais estratégias. A academia, nesse sentido, possui uma função importante de estudar essas práticas para colaborar com a formação mais crítica desses profissionais.