Por Flávia Barroso de Mello | Junho/2018

Desde 2007, quando foi indicada para cidade sede da Copa do Mundo de 2014, o mundo voltou seu olhar para a cidade do Rio de Janeiro, que iniciou, então, seu ambicioso projeto de tornar-se um dos destinos mais disputados no mundo. Assim como outras grandes capitais mundiais, problemas estruturais relacionados à habitação, saúde, transporte, saneamento, questões ambientais, educação, segurança pública, entre outros, tomavam a cidade, e o discurso em torno do legado dos megaeventos se tornou um potencializador das estratégias de branding para a construção da marca cidade e dos projetos urbanísticos que pretendem requalificar a cidade para os grandes espetáculos.

Paralelamente às narrativas sobre o legado olímpico, a partir de 2009, observa-se que os temas de cidade, economia e indústria criativa ganham força nas agendas dos atores políticos, tanto na esfera municipal do Rio de Janeiro, quanto nas esferas estadual e federal. Dados do Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, da Firjan, comprovam o crescimento da economia criativa em comparação com a totalidade da economia nacional. Na contramão do cenário adverso, no período de 2013-2015, em que houve queda no crescimento econômico, a área criativa apresentou um crescimento estimado no PIB Brasileiro de 2,56% para 2,64%. Como resultado, gerou uma riqueza de R$ 155,6 bilhões, no ano de 2015. Entre os estados, o Rio de Janeiro se destaca em segundo lugar no ranking, depois de São Paulo, no mercado de trabalho criativo: são 99 mil trabalhadores fluminenses.

Com efeito, observa-se que a economia criativa tem-se configurado em um dos pilares do desenvolvimento preconizado pelo poder público para a cidade do Rio de Janeiro. Os últimos três Planos Estratégicos da Cidade (2009-2012, 2013-16 e 2017-2020) indicam essa orientação através dos programas Rio Capital da Indústria, Rio Capital do Turismo e o projeto Porto Maravilha, um dos mais estratégicos e ambiciosos para consolidar o Rio de Janeiro como cidade inserida no cenário global de cidades. Em direção a uma tendência mundial, portanto, que define a economia criativa como um dos pilares de desenvolvimento para uma cidade que se pretende global[1], se observa, na mídia local, conceitos como Economia Criativa, Indústria Criativa e Cidade Criativa sendo difundidos por agentes internacionais e territorializados por atores locais, ganhando, assim, significado e status de política pública no Rio de Janeiro, impulsionando o discurso econômico e trazendo a cultura à centralidade dos projetos urbanos.

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Figura: Sydney por Eric Dowdle. Fonte: Pinterest

Muitos autores atribuem à experiência australiana o início da discussão sobre os conceitos de “economia criativa” e de “indústria criativa”. O programa “Creative Nation”, de 1994, foi o primeiro a incluir políticas de valorização das indústrias culturais na agenda do Governo Federal, que propunha a busca da identidade cultural australiana através do fomento da cultura nas indústrias culturais (CREATIVE NATION, 1994). Entretanto, foi na Inglaterra que os conceitos se expandiram. Em 1997, o Reino Unido criou uma equipe multissetorial para analisar as tendências do mercado mundial e as vantagens competitivas internas. Neste estudo, foram definidos treze setores da economia que se apoiam na criatividade e no talento, chamados então de “indústria criativa”, que apresentam potencial de geração de riquezas através da exploração de propriedade intelectual e criação de empregos (REIS, 2011). O conceito foi reproduzido em outros países, que passaram a definir, localmente, suas vantagens competitivas, sua identidade cultural e as redes de valor criadas a partir de seus produtos e serviços. Isso explica as diferenças entre os setores considerados criativos definidos por cada localidade (REIS, 2011).

Quanto ao conceito de “cidade criativa”, observa-se, inicialmente, que não há um consenso que permita uma única definição. Ao contrário, autores como John Howkins (2007, 2009), Charles Landry (1995, 2009), Richard Florida (2002, 2003, 2005), Ana Carla Fonseca Reis (2009, 2011) e Elsa Vivant (2012), a partir de confluências e dissonâncias, enriquecem o debate sobre o que se configura como “cidade criativa”. Alguns desses autores sugerem uma relação direta entre a difusão do que se entende por “cidade criativa” e o processo de concretização do modelo de desenvolvimento urbano pautado na “cidade-mercadoria” (SANCHEZ, 2010). Já para outros, é possível, junto a essa perspectiva, identificar ações de resistência ao modelo mercadológico, uma apropriação dos espaços urbanos a partir de “brechas”, latências (DE CERTEAU, 1994), das vivências do lugar (re) apropriado e reconfigurado pelas representações culturais e sensíveis de alguns atores, instituições e ONGs.

Partindo do pressuposto de que a cidade é uma construção cultural e coletiva (PESAVENTO, 2007), um campo simbólico, em que se travam lutas políticas, jogos de representações, identidades e relações de poder, em processo contínuo de construção, e de que a “cidade criativa”, segundo Reis (2011) , “é aquela que oferece um ambiente propício à criatividade e à transformação dessa criatividade em soluções e novas propostas de valor para seus habitantes, trabalhadores e turistas”, surgem questionamentos que perpassam não só os campos da Geografia, Economia, Arquitetura e Urbanismo, Administração e Ciências Sociais (que tem concentrado as pesquisas acadêmicas sobre cidades criativas), mas também o da Comunicação, uma vez que a cidade é o locus em que se concretizam as práticas e relações sociais e de poder, as disputas e tensões políticas, os jogos midiáticos de imaginários e identidades. Destaca-se, dessa forma, a importância de problematizar, no campo da Comunicação, a construção simbólica da imagem do Rio de Janeiro como uma “cidade criativa”, a partir de questões relacionadas à cultura, ao consumo, ao urbanismo, à criatividade e à marca cidade. Sobretudo, neste contexto pós-megaeventos, em que o tão esperado legado parece não ter se efetivado de forma contundente, e, novamente, atributos como a violência, o caos e a crise urbana são associados à cidade e sua marca. Desse modo, torna-se relevante não somente refletir sobre como vem se configurando essa versão carioca de “cidade criativa”, bem como até que ponto os agentes da marca Rio – prefeitura, empresas privadas, veículos de mídia, empreenderores criativos – se articulam de modo a constituir-se em uma alternativa real para fortalecer os processos criativos e experimentais locais ou apenas representar mais uma estratégia que busca a adesão social aos projetos de cidade que se pretende global e, consequentemente, à incorporação do atributo “cidade criativa” à “marca Rio”.

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Figura: Escadaria Selaron, Santa Teresa. Fonte: Pinterest.

 

Notas

[1] A economia criativa tem destaque no foco das discussões de instituições internacionais como a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e é considerado um eixo estratégico de desenvolvimento para os diversos países e continentes, no novo século.

Bibliografia

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LANDRY, Charles; BIANCHINI, Franco. The creative city. Londres: Demos, 1995.

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REIS, Ana Carla Fonseca. Cidades criativas, turismo cultural e regeneração urbana. 2009a. Disponível em: <www.gestaocultural.org.br/pdf/Ana-Carla-Fonseca-Cidades-Criativas.pdf>.

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 VIVANT, Elsa. O que é uma cidade critiva? São Paulo: Editora SENAC, 2012.

Sites visitados:

Plano da Secretaria da Economia Criativa Políticas, diretrizes e ações 2011 a 2014

Unesco

Creative Nation

Firjan

Do Rio Olímpico ao Rio Criativo